Entre curvas e retas
Oscar Niemeyer completou 101 anos, que beleza. Parabéns mestre! Reconhecido e admirado no mundo inteiro pelo seu traço genial, gostaria de falar aqui do seu lado literato. Artigo – Martinho da Vila*
Publicado 19/12/2008 19:19 | Editado 04/03/2020 17:05
Ganhei da minha assessora de imprensa, Rejane Guerra, o livro “Crônicas” do Oscar, uma publicação de fácil leitura. Como eu, ele prefere a linguagem simples do cotidiano dizendo: “A literatura se engrandece quando se aproxima da linguagem oral”. Eu poderia ler o livro em poucas horas, mas foram três noites, embora não inteiras, porque é uma literatura que leva à reflexão e eu passei um bom tempo meditando ao fim de cada crônica e relendo.
Eu tenho o privilégio de ser amigo do escritor, nosso arquiteto-mor, e, ao ler seu livro, parece que o ouço falar com sua voz mansa, doce e terna, mesmo quando manifesta suas revoltas contra as mazelas do mundo que tanto o atormentam.
A primeira crônica, intitulada “Nuvens”, foi a que mais me encantou e me fez refletir sobre a vida quando escreve: “Nascer, crescer, lutar e desaparecer, para sempre”. Me atraiu porque, coincidentemente, tenho prazer de olhar para o céu. Com o movimento das nuvens, tenho a impressão de que estou vendo as imagens que estão dentro da minha cabeça e o Oscar narra a visão de uma mulher que, na minha ótica, quer se recriar nos seus traços. “Não sei por quê, o desenho me acompanhou a vida inteira. Lembro, quando era garoto, ficava, olhando para cima, a desenhar no ar, e minha mãe me perguntava: ‘Menino, que está fazendo?’ E, tranquilamente, como se fosse coisa natural, respondia: ‘Estou desenhando’”. (sic)
O livro mexe com meus sentimentos. Ora sofro quando se reporta a um menino de rua ou a um típico temporal no Rio, quando fiquei um tanto “para baixo”, porque nele o tempo límpido da crônica anterior muda de repente e uma chuva forte inunda a Cidade Maravilhosa, amolece as encostas e é dramática a situação dos pobres que moram em barracos. Sempre me preocupa o drama em que vivem, em tais ocasiões, os meus inúmeros amigos favelados.
Quando fala dos maus políticos, nota-se a sua intenção de tocar-lhes o coração, sensibilizá-los. Referindo-se ao prefeito Cesar Maia, com quem estava tendo confronto judicial por desrespeito à sua obra, escreveu: “Confesso que, talvez pela idade, não guardo mágoa do que está acontecendo. Afinal, como eu sempre digo, todos nós – ele também – temos um lado bom”.
Oscar critica o capitalismo e o desordenado crescimento urbano do Rio com uma ressalva: “É claro que não pretendo cair no pessimismo, que desagrada aos cariocas e a mim próprio, orgulhosos desta cidade magnífica, para nós a mais bela do mundo”.
Fala de si e de sua arquitetura sem nenhum resquício de vaidade. Em “Lembrando o carnaval”, o mestre revela o entusiasmo com que acompanhou a passagem da Unidos de Vila Isabel com a monumental escultura de Simon Bolívar e, por modéstia, não se refere ao próprio busto que a escola fez desfilar no Sambódromo, saído de sua prancheta, ao ser homenageado com o enredo “O arquiteto no recanto da princesa”. Falando nisso, sou grato ao Oscar por ter doado à Vila Isabel um projeto arquitetônico, para a construção de um centro cultural que será tão importante para o Rio de Janeiro como o Museu de Arte Contemporânea de Niterói. É um sonho que ainda realizaremos, espero.
Suas crônicas parecem poemas, que se deve ler e reler:
“Não é o ângulo reto que me atrai
Nem a linha reta, dura e inflexível
Criado pelo homem
O que me atraí é a curva livre e
Sensual
A curva que encontro nas montanhas
do meu país
Nos cursos sinuosos dos rios
Nas ondas do mar
No corpo da mulher preferida
De curvas é feito todo o universo
O universo curvo de Einstein.”
O gênio não se zanga, até gosta, quando alguém comenta que a sua obra tem traços femininos e é inspirada nas formas da mulher. E eu vejo a sua literatura, além do mais, como pura poesia.
* Martinho da Vila é cantor e compositor
Publicado originalmente no jornal O Globo (19/12/208)