Artigo: A barbárie servida no café da manhã

“Se todo animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens?”

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A humanidade chega ao século XXI mostrando que aprendeu muito com o
século que a antecedeu. Aprendeu a matar para se impor; aprendeu que a
guerra é o instrumento mais eficiente da eliminação do direito à
diferença, do direito à liberdade. Celebramos um novo milênio,
assistindo, enquanto tomamos café da manhã (ou os que ainda conseguem
fazê-lo), à barbárie instituída, à morte banalizada, o discurso
opressor prevalente.

Por que não nos indignamos? Esta guerra não nos diz respeito? Está muito distante? Afinal, não pertencemos à mesma espécie, a desastrada espécie humana? Lembro-me de uma citação do Martin Niemoller, que bem ilustra o que desejo expressar:

Primeiro, os nazistas vieram buscar os comunistas, mas, como eu não era comunista, eu me calei. Depois, vieram buscar os judeus, mas, como eu não era judeu, eu não protestei. Então, vieram buscar os sindicalistas, mas, como eu não era sindicalista, eu me calei. Então, eles vieram buscar os católicos e, como eu era protestante, eu me calei. Então, quando vieram me buscar… Já não restava ninguém para protestar.

O massacre humano promovido pelo Estado de Israel e patrocinado pelo arsenal bélico dos Estados Unidos é algo perturbador. Não podemos nos acomodar diante do que nos mostram os noticiários.

O Holocausto promovido por Hitler e sua horda nazista indicou a trilha a ser seguida, ou o caminho que jamais deveremos novamente tomar. E justamente um dos alvos mais perseguidos pelo ideário nazi-fascista é quem estabelece a força bruta e o extermínio em massa como instrumento de diálogo. Os milhões de judeus mortos pagaram com o sangue e a vida pela intolerância de um paranóico manipulador. A intolerância mudou de lado? O desejo de se impor justifica a morte de milhares de palestinos?

Causou-me horror a declaração do ex-premier e atual presidente israelita Shimon Peres, ao dizer que “a força e a intensidade do nosso ataque fará com que acabe o apetite palestino de nos atacar”. Será que alguém, em sã consciência, pode de fato crer em absurdo argumento? O temido 'ataque palestino', a que se refere Shimon Peres, matou quatorze judeus. Israel eliminou mais de mil palestinos. 1000 X 14. Este é o funesto placar da guerra imposta por Israel.

A distância abissal do poder de fogo entre Israel e Palestina constrói um cenário imagético tenebroso. Crianças brutalmente assassinadas; outras, que sobrevivem, apresentam um olhar de perplexidade e temor que corroem a alma de qualquer bicho minimamente sensível. Vamos fechar os nossos olhos para tamanha desconsideração com o povo palestino? Como engolir o pão a cada manhã com tamanha injustiça atravessada na garganta?

Sei que cada lado defende uma posição irreconciliável. Mas sinceramente, os meios não justificam os fins. Karl Marx já há tempos nos alertava, ao dizer que “Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem… a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. É preciso repensar a rota que a humanidade traçou para si própria. Ainda há tempo de estabelecermos novos princípios, mais justos e mais fraternos. Como nos ensinou Che Guevara, “Os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera inteira”.

Tomar consciência é o primeiro passo. Não nos indignamos muito por que desconhecemos. Quantos de nós sabemos o que se passa entre Israel e Palestina? Quais os motivos do conflito? Quantos de nós temos idéia dos verdadeiros massacres humanos cotidianamente vividos na África?  Quantos dos nossos jovens se preocupam com isto?

A balada na Avenida. Sanitária, regada a uísque com energético, não teria mais muito sentido frente ao sofrimento extremo de boa parte dos nossos irmãos, palestinos, africanos, pobres, negros, mulheres e crianças, de todo o mundo. Irmãos sim. Pois quanto mais ignorarmos a nossa consangüinidade planetária, mais corremos o risco de vermos o nosso quintal transformado em uma Faixa de Gaza.

Para mim, no fundo, o que vale mesmo, como regra e dever, são as palavras do poeta Thiago de Mello:

Estatutos do Homem

(Ato Institucional Permanente)

 
Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade. 
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

 
Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana, 
inclusive as terças-feiras mais cinzentas, 
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

 
Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante, 
haverá girassóis em todas as janelas, 
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra; 
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, 
abertas para o verde onde cresce a esperança.

 
Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem. 
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento, 
como o vento confia no ar, 
como o ar confia no campo azul do céu. 
Parágrafo único: 
O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

 
Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira. 
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras. 
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

 
Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos, 
a prática sonhada pelo profeta Isaías, 
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

 
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade, 
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

 
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

 
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

 
Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa, 
a qualquer hora da vida, 
o uso do traje branco.

 
Artigo XI
Fica decretado, por definição, 
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo, 
muito mais belo que a estrela da manhã.

 
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido, 
tudo será permitido, 
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela. 
Parágrafo único: 
Só uma coisa fica proibida: 
amar sem amor.
 
 
 

 
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras. 
Expulso do grande baú do medo, 
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

 
Artigo Final. 
Fica proibido o uso da palavra liberdade, 
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas. 
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio, 
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Utopia? Pode ser. O que desejo mesmo, de verdade, é apenas tomar o meu café da manhã com a alma em paz.

Georgino Neto, ex-secretário de Esportes de montes Claros