Jana Sá: Os Meios de Comunicação e a Guerrilha do Araguaia

O direito à informação é uma das liberdades fundamentais de todo ser humano. Desse princípio decorre o direito do público de conhecer fatos e opiniões, em particular os acontecimentos que lhe afetam diretamente a vida, que têm efeitos políticos, econôm

No entanto, faça o que eu digo, mas não o que faço deveria ser o lema daqueles intitulados guardiões dos cidadãos. As suas pregações são uma inversão, em toda linha, da práxis da atividade. Todos os princípios, todos os valores, todos os ideais cultivados e pregados ao longo dos tempos são, sem hesitação nem dores de consciência, postos por terra quando observado a sua aplicabilidade. Democracia, direitos humanos são instrumentos de barganha, recurso de propaganda.


 


Os veículos de comunicação, descritos e aceitos por muito tempo pela sociedade como mecanismos de ajuste, tornam-se suspeitos de violência simbólica e passam a serem encarados como meios de poder e dominação. Divulgam apenas o que lhes interessam e da forma como julgam conveniente.


 


O artigo Memória Afogada, de Leandro Fontes, na revista Carta Capital, revela o modo ineficaz com que a imprensa convencional cobre o mundo contemporâneo ao levantar um debate relevante para a democracia no Brasil, mas esquecido em um canto qualquer das redações: a construção da Usina Hidroelétrica Santa Isabel “nas terras onde, provavelmente, estão escondidas as ossadas dos guerrilheiros do PCdoB. A barragem da usina vai inundar uma área de 24 mil hectares de terras às margens do rio Araguaia”.


 


Uma tentativa de apagar os vestígios que as classes populares e os opositores vão deixando ao longo de suas experiências de resistência e de luta, num esforço contínuo de exclusão da atuação desses sujeitos na história.


 


Faz-se necessário, então, como afirma Marilena Chauí citada no livro Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964 “desvendarmos o modo como o vencedor tem, ao longo dos tempos, produzido a representação de sua vitória e, sobretudo, como a prática dos vencidos participou desta construção”.


 


Tal é o caso da Guerrilha do Araguaia, cujo percurso é tão sinuoso quanto o do rio que lhe empresta o nome. Movimento guerrilheiro de contestação política ao Regime Militar, concebido, planejado, organizado e dirigido pelo Partido Comunista do Brasil, entre os anos de 1966 e 1975, no sul do Pará, a Guerrilha é hoje evocada sempre que se trata de passar a limpo a história do país e iluminar os porões do Regime Militar.


 


Em três décadas, a Guerrilha do Araguaia foi indexada em milhões de páginas por inúmeras reportagens, estudos, pesquisas e, a cada ano, novas revelações incrementam a curiosidade persistente em torno do tema. Informações que não revelam todas as verdades sobre o movimento, já que para isso seria necessário a abertura dos arquivos do Exército, mas que atestam a derrota mais profunda da história oficial que, em mais de 500 anos da formação do povo brasileiro, tratou de obscurecer incontáveis lutas, menosprezadas como episódios sem significação que firmariam a passividade como conceito diante da tirania e da desigualdade. No entanto, nem o curso do tempo parece ter tratado de limpar mais o terreno infestado de equívocos e preconceitos.


 


A inundação viria, assim, terminar o trabalho que a imprensa vem desenvolvendo: a destruição da memória de um povo, com uma irreversível perda histórica.


 


Tal ocorre em meio ao cinismo máximo que não há a menor intenção de vergonha. Karl Marx, século e meio atrás, dizia que a vergonha já é uma quase revolução, porque é uma espécie de cólera voltada contra si mesmo. Quem espera essa atitude dos jornalistas?


 


Contudo, a tentativa de destruição do cenário da Guerrilha do Araguaia não se completará. Simplesmente porque não se destrói a memória de um povo. Porque seus atores, presos vivos, escapam, mesmo mortos.


 


por Jana Sá – de Natal