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Régis Bonvicino: mídia esportiva é catimbeira e comete falta

Li um comentário de Antero Greco (um jornalista acima da média em sua área), no Estado de S.Paulo, sobre a propaganda de cerveja feita por Ronaldo: “Pelé pisou na bola em muitas ocasiões. Mas em favor do Rei é necessário reconhecer: nunca fez

Há em comum entre as duas a inflexão moralista pequeno burguesa. Torero talvez tenha ultrapassado o limite do exercício regular de direito e provocado constrangimento em Ronaldo.


 


Insisto que, com exceção de Tostão, e de alguns jornalistas do “SporTV”, como Paulo Cesar Vasconcellos, a mídia esportiva é pior do que o futebol em si. Os jornalistas pensam, escrevem e se expressam mal. Se fosse possível vertê-los para a linguagem das chuteiras, equivaleriam a um time pequeno, que, num ferrolho, joga cometendo muitas faltas, xingando o árbitro e “catimbando” por falta de imaginação.


 


Um dos cacoetes da ala “cult” dessa mídia é questionar a gestão institucional do futebol, sem, no entanto, fazê-lo de modo objetivo: importa mais perseguir certas personagens (facilmente perseguíveis) do que se confrontar com a estrutura do dia-a-dia desse esporte-espetáculo, ou seja, confrontar-se com a estrutura dos clubes, que se relacionam, em termos trabalhistas, com os atletas, com um século de atraso.


 


Os jogadores são submetidos a um regime chinês de trabalho: muitas obrigações e poucos direitos. Essa ala não quer se incompatibilizar com os torcedores, seus leitores inerentes. Outro de seus cacoetes é considerar o futebol uma “expressão artística”, quando a arte pressupõe espírito crítico e reflexão e tem seus próprios atributos definidores. Essa é uma das maiores barbaridades que conheço: ataca a arte e ao mesmo tempo esvazia o futebol de suas características positivas. Não é possível comparar Carlos Drummond de Andrade com Pelé.


 


Ronaldo é protestante e não católico


 


Ronaldo surgiu numa década de “globalização benigna” de Bill Clinton (após a queda do Muro de Berlim e da extinção da União Soviética), na qual a conquista de fortuna era louvada. Lançou-se num período no qual a ideologia liberal de Margareth Tatcher (governou a Inglaterra de 1979 a 1990)/Ronald Reagan (governou os Estados Unidos de 1981 a 1989) – traduzida no yuppismo – era hegemônica. Nessa mesma década de 90, o neoliberalismo impregnou não só a linguagem dos dirigentes de futebol, mas, igualmente, a dos jogadores de ponta.


 


Gestão de carreira, a imagem pessoal erguida à condição de marca (Cola-Cola, Ronaldo, Audi, Zidane etc) e, em conseqüência, ganhos em publicidade equivalentes ou maiores do que próprio salário pago pelo clube. Surgiu o jogador pop star e o futebol, como um todo, ingressou na órbita do espetáculo, com repercussão mundial e ao vivo.


 


Há entre os jornalistas e Ronaldo uma diferença ideológica, digamos. Assisti à entrevista de Ronaldo a Marília Gabriela no “GNT” e o pude compreender melhor. É bastante inteligente, claro e direto. Não se esconde dos fatos como Pelé, que lutou na Justiça contra sua própria filha Sandra, visando a não reconhecê-la. A vereadora Sandra Arantes do Nascimento morreu de câncer aos 42 anos e Pelé não foi ao seu enterro. O que é pior: negar um filho ou fazer propaganda de cerveja? Pelé não explicou, até hoje, o que fez com certo numerário da Unesco, que recebeu para repassá-lo “às criancinhas” pobres do Brasil. Pelé fez propaganda de quinquilharias variadas (e até de Viagra), reiterando, também, sua crença no capitalismo.


 


Ao contrário de Cassius Clay, o Muhammed Ali-Haj, um esportista de sua geração, casou-se com loiras e nunca lutou pela afirmação política da raça negra. Muhammed militou ao lado de Malcom X (1925-1965) e de Martin Luther King (1929-1968) pelos direitos civis dos negros. No entanto, Pelé veio ao mundo do futebol na era do Well Fare State – os anos dourados da economia (décadas de 60 e 70), nos quais havia mais equilíbrio entre capital e trabalho e uma rede social extensa, para retribuir os impostos pagos pelos cidadãos.


 


Ao contrário, Ronaldo assume ser ideologicamente um protestante: sente orgulho do que ganhou, como se fosse um empreendedor norte-americano. Não abraça o catolicismo, que condena hipocritamente o sucesso e o dinheiro. Ronaldo fala quatro línguas. Quantos escritores brasileiros são fluentes em duas línguas ao menos? Quase nenhum. Não considero sequer os jornalistas, que mal conhecem o português.


 


Ronaldo revela-se mais humano e real do que Pelé – este protegido sempre pelo mito, que se construiu com e construiu a própria “crônica esportiva brasileira”, que o adula acriticamente – um mito discutível, embora um jogador grandioso. Ronaldo se expõe: casa e descasa, fuma, bebe cerveja, sai com travestis (uma questão privada) – não oculta sua vida. É notório o consumo de cocaína e maconha entre jogadores europeus e brasileiros. Um inexpressivo jogador, André, que esteve no Palmeiras em 2002, revelou que ele e seus companheiros usavam cocaína nas concentrações.


É pior propagar Armani do que Brahma


 


Kaká é poupado de críticas por ser branco de classe média alta. Reputo mais daninho ser garoto propaganda de Giorgio Armani do que da Brahma. Ronaldo, embora tenha, em certo momento, negado sua raça, é negro, de origem paupérrima, mais pobre do que a de Pelé. As peças de Armani são adquiridas na China por um centavo e revendidas em Milão ou Nova Iorque com preços altos. As relações de trabalho no universo da moda são tão ou mais degradas do que as do futebol, que é mais fiscalizado pelas torcidas etc. O universo fashion é o universo da droga, da contrafação, da perversão, da fraude, do irreal. Haja vista o caso Daslu.


 


Se não me falha a memória, Ronaldo atuou em 17 partidas contra 14 de Pelé em Copas do Mundo, marcando 15 contra 12 gols do “moço de Três Corações”, como o chamava Fiori Gigliotti, que cito para dizer que os narradores do rádio foram muito mais criativos dos que os de TV, em sua época de pico, que se findou com Osmar Santos.


 


Um seleto grupo de narradores radiofônicos representa, ainda hoje, o que há de melhor, em termos de linguagem inventiva, nessa mídia. Ronaldo poderá ainda jogar sua quinta Copa se mantiver o equilíbrio e maturidade que mostrou na entrevista a Marília Gabriela, superando, deste modo, mais uma vez Pelé – o bom moço. Prefiro Garrincha a Pelé, pelas mesmas razões que prefiro Ronaldo a Pelé.


 


Fonte: Último Segundo