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Amir Labaki: A vida e a dupla morte de Wilson Simonal

Meu irmão mais velho teve um “Mug”. Eu o invejava por aquele boneco talismã, de pano vermelho, lançado pelo cantor Wilson Simonal no final dos anos 1960. O “Mug” disputava então a preferência das crianças com os pequenos bonecos da turma da Jovem Guard

Como lembrou Nélson Motta, por volta de 1970 a popularidade de Simonal era a única a se equiparar a de Roberto Carlos. Ao lado de outro rei, o da bola, até da delegação da seleção brasileira na Copa do México participou o carismático e melodioso cantor negro do “patropi”. Mas o diabo o esperava na esquina.


 


A ascensão e a trágica queda de Wilson Simonal de Castro (1938-2000) finalmente recebem a atenção merecida no cativante documentário Simonal –Ninguém Sabe o Duro que Dei, dirigido por Cláudio Manoel, Mikael Langer e Calvito Leal. Depois de muito me honrar com sua estreia no É Tudo Verdade do ano passado, no qual emocionou salas lotadas e recebeu uma menção honrosa do júri, o filme chega neste final de semana às salas de cinema.


 


Se você quer entender por que se fala tanto hoje na hora e na vez do documentário brasileiro, levante da cadeira e vá ao cinema ver Simonal. Para além do nicho do filme de arte, ao qual de certa forma se limitou o impacto renovador de obras como Santiago, de João Moreira Salles, e Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, Simonal reposiciona o documentário como força catalisadora da discussão nacional, papel que o gênero cumpriu para valer pela última vez no começo dos anos 1980, em plena abertura democrática, com obras como Os anos JK e Jango de Silvio Tendler e Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. (Aliás, acredito que papel similar será cumprido, no próximo semestre, por Cidadão Boilesen de Chaim Litewski, vencedor do festival de ano, ao lançar novas luzes sobre a participação de setores da iniciativa privada na repressão militar).


 


Assuma-se de pronto: Cláudio, Mikael e Calvito não esgotam o caso Simonal. O triunfo deles não é menor por isso. Eles recolocaram o bode na sala. Encararam, ou melhor, expuseram o tabu. Novos livros, álbuns de música etc os seguirão agora. Mas foram eles que colocaram primeiro o guizo no gato.


 


Simonal tanto reconstitui a meteórica trajetória de sucesso do garoto pobre e negro, filho de empregada doméstica no Rio, que se tornou um dos primeiros ídolos pop do país quanto investiga a tragédia de sua estigmatização como pretenso dedo-duro das forças de repressão. O filme se divide quase simetricamente entre essas duas tarefas. É fascinante na primeira parte e corajoso, ainda que imperfeito, na segunda.


 


A consagração de Simonal como uma espécie de Sammy Davis Jr. tropical é reconstruída por uma ágil articulação de entrevistas de contemporâneos e cenas de arquivo principalmente televisivo. Chico Anísio e Ziraldo dão os depoimentos mais certeiros sobre a magia de Simonal como maestro de multidões em auditórios. Uma seqüência eletrizante de um dueto entre ele e Sarah Vaughn cantando The Shadow of Your Smile basta como documento de seu talento avassalador (a íntegra desta apresentação pode ser conferida no You Tube).


 


Atingido o ápice, logo adveio o mergulho para a infâmia. Descobrindo-se “quebrado”, Simonal protagonizou um vil episódio em que fez dois meganhas do temido Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no auge da ditadura, extraírem à base de tortura uma confissão de falcatruas de seu então contador, Raphael Viviani. Pela primeira vez desde então, o filme dá a palavra para Viviani apresentar sua persuasiva versão.


 


O documentário parece esclarecer de vez o episódio em si mas não suas conseqüências destruidoras para Simonal. Um dos policiais envolvidos disse no calor da hora que o cantor era um alcagüeta da repressão dentro do mundo artístico. A acusação colou, sem maiores provas, tornando Simonal persona non grata e liquidando sua carreira.


 


O jornalista Mário Magalhães da “Folha”, em reportagem de 2000, reafirmada por texto quando da estreia do filme no festival do ano passado, revelou documentos judiciais que embasam a classificação de Simonal como “colaborador das Forças Armadas e informante do Dops”. O documentário, infelizmente, omite-se frente a esta documentação. É seu maior pecado.


 


“Simonal” prefere encerrar a questão com um desafio apresentado por Chico Anysio: que se apresente alguém, ou algum parente, que tenha sido vítima de uma delação pelo cantor. Ninguém até aqui se apresentou.


 


Aguardemos os próximos capítulos. O cinema já fez brilhantemente sua parte. Trouxe de volta aquele cantor tão faceiro que fez o povo inteiro cantar – e o furacão por ele mesmo motivado que o calou. Isto tudo foi Simonal.