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A incrível história do egípcio que – não – queimava livros

O egípcio Farouk Hosni deve ser escolhido em outubro como secretário-geral da Unesco, a prestigiosa organização da ONU para educação e cultura. O maior obstáculo – uma campanha mundial que chegou com força no Brasil, pintando-o como um antissemita que

Quando eu soube do caso, fui checar no Google Notícias Brasil: a única fonte que a reproduzia a informação era o Vermelho. Preocupado, passei ao Google Actualités France, depois ao Google News US e nada. Já aflito com a possibilidade de uma “barriga” do Vermelho, recorri em desespero de causa ao Google Israel English… e lá estava ela: ufa.



“Israel decidiu retirar suas objeções”



A versão inglesa do diário Haaretz, fundado em 1919 e um dos três maiores de Israel, informa que Netanyahu mudou a posição de seu governo na entrevista que teve com o presidente egípcio Hosni Mubarak, em Sharm el-Sheikh, no último dia 11. O jornal reproduz um telegrama do Ministério das Relações Exteriores israelense, datado do dia 14:




“Em seguida à visita do primeiro ministro Netanyahu ao Egito, por solicitação do presidente Mubarak e em sintonia com entendimentos com o Egito, Israel decidiu retirar suas objeções à indicação de Farouk Hosni para o posto de secretário-geral da Unesco, mudando sua postura para não-oposição”, diz a Chancelaria.



O Haaretz diz que os detalhes do “arranjo” Netanyahu-Mubarak “foram mantidos secretos”. Interessa mais a substância da posição do Estado judeu, por iniciativa de um primeiro ministro do direitista partido Likud: o jornal descreve-a como “uma mudança radical na política de Israel”.



“Um homem perigoso, incendiário”…



O mesmo Haaretz repercute, em outra notícia, a declaração publicada na quinta-feira (21), na internet e em vários veículos da Europa e Estados Unidos, pelo o filósofo Bernard-Henri Lévy, o escritor e prêmio Nobel da Paz Elie Wiesel e o cineasta Claude Lanzmann, todos judeus. Eles acusam Hosni de antissemitismo e pedem à comunidade internacional que impeçam sua vitória.  O diário israelense diz que eles “não sabiam” que Israel retirara sua oposição.



“É evidente: Farouk Hosni não é digno deste papel [de dirigir a Unesco]; é um homem perigoso, um incendiário de corações e mentes”, diz o texto dos intelectuais. “Este erro seria tão odioso, tão incompreensível, seria uma provocação tão manifesta e tão expressamente contrária aos ideais proclamados da Organização que ela não se recuperaria”, agrega, ameaçador.



A contracampanha no Brasil



Também no Brasil a crucificação do egípcio prosseguiu. Com o agravante de que, para deixar em maus lençóis o Itamaraty, que appoia a candidatura, foram lançados dois “candidatos” brasileiros (entre aspas pois eles precisariam ser lançados por um Estado-membro da Unesco): o diplomata Márcio Barbosa, atual diretor-adjunto da Organização, e o senador Cristovam Buarque (PDT-DF).



No dia 19 Hosni passara pelo Rio de Janeiro, como ministro da Cultura do Egito, e explicara em entrevista à Folha de S.Paulo o hoje mundialmente célebre caso dos livros hebraicos queimados. Veja o que disse o jornal.




“Hosny diz que suas palavras foram tiradas de contexto. Ele conta que foi interpelado em um corredor da Assembleia Nacional egípcia por um parlamentar do grupo islâmico Irmandade Muçulmana, que criticava a suposta presença de livros em hebraico no Centro Nacional de Tradução. O ministro diz que negou o fato e, diante da insistência do parlamentar, afirma que respondeu: 'Os livros estão em sua imaginação. Traga-os e eu os queimarei para você'. O que disse não tinha nenhuma intenção de profundidade. É como quando se fala em francês 'vá se queimar'.”



Apesar disso a Folha publicou no dia 23 o editorial onde chama de “obscura e desastrada” a posição da diplomacia brasileira, ao apoiar a candidatura egípcia. “Trata-se de personagem polêmico, acusado de antissemitismo. É forte a rejeição a seu nome na comunidade judaica”, insiste. E hoje, terça-feira, 26, eis que senadores enviam ao Palácio do Planalto um documento pedindo para trocar Hosni por Cristovam.



A pergunta que não quer calar



A pergunta que não quer calar é: por que a campanha anti-Hosni continua a prosperar, no mundo e especialmente no Brasil, mais de duas semanas depois do encontro Mubarak-Netanyahu? e por que a posição de Israel não é informada?



No caso brasileiro a torcida faz parte da corrente de pensamento expressa pelo título do citado editorial da Folha: Mais uma do Itamaraty. Quanto mais a política externa brasileira ganha pontos no mundo, mais leva pedradas no Brasil.



Afora a mídia dominante, o coro conta com Celso Lafer, que foi chanceler no governo Fernando Henrique e julga que “apoiar um egípcio obscuro e discutível, é mais um erro da política externa de Lula”. E igualmente com o senador Eduardo Azeredo (MG), ex-presidente do PSDB e principal personagem do “Mensalão Mineiro” em 1998.



A marcação dessa gente dirige-se contra o conjunto da diplomacia do governo Lula, mas talvez com destaque especial para a relação com o mundo árabe. A Cúpula América do Sul – Países Árabes, evento inédito patrocinado e sediado pelo Brasil em 2005 (com sequência em março último, no Catar) foi implacavelmente criticada. E a viagem do chanceler Celso Amorim ao Oriente Médio no início do ano, sendo recebido por quatro chefes de Estado, foi descrita como “beirando o ridículo”.



EUA boicotaram a Unesco por 20 anos



A Unesco (sigla em inglês de Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) é hoje dirigida pelo japonês Koïchiro Matsuura. Embora dedicada a temas aparentemente tão consensuais, sua história mostra outros enfrentamentos políticos até mais graves que o atual.



Os Estados Unidos chegaram a se retirar dos seus quadros e cancelar suas contribuições financeiras, acusando a Organização de ser um aparelho da União Soviética e do Terceiro Mundo. No ano seguinte o Reino Unido fez o mesmo. Londres só retornou em 1999. Washington, apenas em 2003.



O prazo para a inscrição das atuais candidaturas à secretaria-geral da Unesco é 31 de maio. Somente países podem fazê-lo. Em setembro os 58 membros do Conselho Executivo da Unesco se pronunciam. Em outubro, o nome é apresentado à Conferência Geral para referendo pelos193 países-membros. Tanto o Itamaraty como o próprio Hosni afirmam que a eleição é garantida.



“Choque de Civilizações”



Se for eleito, Hosni será o primeiro árabe à frente da Unesco. Artista plástico, com 71 anos, ele é hoje o decano entre os ministros egípcios – assumiu o posto há 22 anos – e considerado próximo de Mubarak.



O governo egípcio, laico e acossado por uma oposição fundamentalista islâmica, não é nenhum incendiário anti-Israel. Longe disso: foi o primeiro no Oriente Médio a reconhecer o Estado de Israel, em 1979, o que até hoje desperta a desconfiança da ala esquerda antiimperialista do mundo árabe. O fato dele e seu candidato à Unesco serem pintados com as cores que tem sido usadas mostra a que ponto o mundo das comunicações anda hoje infeccionado pelo que a direita ocidentófila batizou de “Choque de Civilizações”.