Caco Barcellos deixou escapar

Há cerca de quinze dias, em um programa de televisão denominado Profissão Repórter, que pretende mostrar os bastidores do trabalho de quem produz notícia, o jornalista global Caco Barcellos diz a outro jornalista na ilha de edição o que considero uma péro

O episódio tratava da rotina escolar e os problemas nela envolvidas. No decorrer da busca de matérias sobre o tema, um jovem repórter se depara com um drama comovedor: um adolescente, em função das discriminações e dificuldades da vida, cometeu suicídio.



Quando, por ocasião da conclusão da matéria, eles se encontravam na ilha de edição para discutir as imagens e dar o formato final do que iria ao ar, eis que vem a observação de Caco. Disse ele que tradicionalmente os que lidam com a produção de informação, sobretudo audiovisual, deliberam não por ao ar esse tipo de notícia, pois têm a percepção que tornar público tal questão poderia incentivar novos casos.



Bem, pela primeira vez alguém envolvido com a grande mídia, pelo menos que eu tenha visto, admite, mesmo que de forma rápida e assim podendo passar de forma despercebida, o que para mim sempre foi óbvio, qual seja, o fato de que levar informação não corresponde somente ao diagnóstico, mas tem de forma determinante o caráter formador, muito embora isso passe inteiramente despercebido e assim faz a imprensa se auto declarar isenta dos efeitos ativos de suas construções narrativas.



A palavra não é composta apenas de uma pretensão de revelar a verdade, ela convence. Toda vez que digo sobre algo, tento mais do que qualquer outra coisa conduzir a mente alheia para o que digo, não importando nesse jogo o que é verdadeiro. Há muito os sofistas deram contribuições reveladoras sobre essa gama de questões. Aliás, uma versão apresentada não pode esgotar, por mais que queira, a inesgotabilidade de versões possíveis sobre um fato. Diante da multiplicidade de olhares sobre um evento, acabamos por escolher aquele que se adequa ao cenário que queremos compor, portanto a construção de uma narrativa não é isenta e assim despretensiosa de formar, querendo apenas informar.



Se as narrativas dos noticiários não tivessem a capacidade de formar, convencer, influenciar, não teria motivo para a observação do experiente repórter.



O interessante é que tudo que a mídia faz é afirmar que só quer falar das coisas para informar o público sem nenhuma intenção de moldar comportamento ou formar opinião. Ela fala de opinião pública como se não estivesse se referindo na verdade à sua própria e qualquer outra forma de totalização, como o conceito de classe, é tida como obsoleta.



A isenção neste caso é uma quimera contemporânea em que a maioria das pessoas acredita, ao ponto de não raramente se ter a expectativa de que só é verdadeiro o que sai na imprensa e o que fica de fora passa a não existir como se realidade não fosse. A simples escolha do que colocar no ar ou nas páginas dos jornais é por si só uma escolha do que tornar público e assim verdade, é uma opção que não vem à tona descolada da concepção de quem faz tal seleção e está umbilicalmente ligada ao desejo do que formar e não apenas informar.



Se tornar público casos de suicídio o incentiva, como admitido, qual motivo teríamos para imaginar que isso não se aplicaria ao resto?  Que motivos teríamos para achar que a imprensa é isenta ou não formadora? Ora, qualquer acontecimento é noticiável e assim é preciso deixar claro os critérios de escolha para que revelem suas ideologias. O povo tem o direito de saber os parâmetros de tais decisões.



Os desavisados podem acusar o meu argumento como sendo contra a imprensa, o que aliás é moda: Qualquer forma de questionamento aos métodos de uma parcela da imprensa é tido como antidemocrática. Quero dizer que não é o caso, o que digo aqui é que as coisas precisam ficar em pratos limpos e me incomoda profundamente que alguém fale em nome da isenção, como se ao falar não estivesse preso ao mundo que fala, como se existisse uma mente totalmente vazia de idéias, conceitos e ideologia. Como nos disse o filósofo francês Merleau-Ponty, não há olhar de sobrevôo, todo olhar é um olhar de dentro e não de fora, o que torna a imparcialidade apenas um ato pretensioso.



Que se posicionem, digam pelo menos que concepções regem suas edições e de tal modo deixem claro seus posicionamentos que determinam suas narrativas para enfim perderem um pouco da petulância.



*Severino Marcos G. Silva é professor de filosofia e secretário de Formação do PCdoB-Rio.