Cultura está desamparada e o patrimônio se perde no RN
No Brasil, o que chama atenção são as belezas naturais. O país é vendido pelas paisagens e por slogans que exaltam os encantos das cidades. No roteiro das agências de turismo, quase não existem monumentos históricos ou museus na lista de visitas. Es
Publicado 30/06/2009 02:16 | Editado 04/03/2020 17:08
Valores, costumes, crenças, línguas e tradições são apenas algumas das inúmeras partes que formam uma sociedade. Já as práticas e ações sociais referentes a esses elementos constituem o fundamento cultural de um povo. Grupos folclóricos, música, dança, teatro, artes plásticas, poesia, literatura e cinema são algumas formas de manifestações da cultura, que hoje estão desamparadas no estado.
O órgão designado para cuidar e zelar da política cultural do Governo do Estado é a Fundação José Augusto (FJA). Criada em 1963, é apresentada como a “responsável pela produção musical, teatral, literária e de artes plásticas do estado”. Sob a guarda da Fundação estão seis museus, dois teatros, duas bibliotecas públicas, dois memoriais, o Instituto de Música Waldemar de Almeida (IMWA), a Pinacoteca, o Forte dos Reis Magos, a Orquestra Sinfônica, o Coral Canto do Povo, a Cidade da Criança e 25 casas de cultura popular no interior do estado. O problema é que dentre todos esses espaços, poucos ainda valem à pena ser visitados.
O Museu Café Filho, por exemplo, conta a história do potiguar Café Filho, enquanto presidente do Brasil. Com acervo fotográfico e documental da vida presidencial de Café e o baixo custo (R$1,50 por pessoa), o esperado é que o museu fosse de interesse dos natalenses e turistas. Porém, o local está quase sempre vazio e, segundo o administrador Joaquim Evaldo, as visitas estão cada vez mais raras.
O problema é que o prédio, além de antigo, não recebe manutenção adequada. Primeiro, porque não tem segurança na rua e as janelas precisam ficar fechadas por medo de roubos. Segundo, porque não há cuidado com os bens da exposição. Os lençóis da cama que pertenceu a Café, e que estão expostos às visitas, estão sujos, as janelas e paredes estão descascando, o banco de descanso está quebrado e a escada de acesso ao andar superior é bastante estreita.
Outra atuação da FJA que acabou deixada de lado e nunca mais se ouviu falar é a Revista Preá. Inaugurada em 2003, a publicação se propunha a noticiar atividades culturais e divulgar a cultura potiguar no interior do estado. Nesses seis anos (72 meses), entretanto, só 21 edições da revista foram publicadas. Sob a atual gestão de Crispiniano Neto (um ano e meio), apenas três edições foram publicadas.
A necessidade de um novo teatro em Natal também não é novidade. Hoje, existem o Teatro de Cultura Popular e o Teatro Alberto Maranhão (TAM), que é marcado como a única opção para o natalense, já que o outro, muitos nem conhecem. Com mais de 100 anos de história, o TAM ainda sofre o descaso dos governantes. Segundo a diretora Hilneth Correa, faltam profissionais técnicos para a montagem dos espetáculos e, mesmo com as reformas, o retelhamento precisa estar sendo sempre refeito por causa das chuvas.
A Biblioteca Pública Câmara Cascudo é um dos espaços onde o descaso mais impressiona. Inaugurada em 1969, a proposta inicial era a criação de um lugar que servisse para busca de informações científicas, didáticas, históricas e culturais. Há dois anos, entretanto, a biblioteca não dispõe sequer de energia elétrica. As luzes e eletrônicos só podem ser ligados nas salas dos funcionários.
Além disso, a comunidade não tem mais acesso direto aos livros, porque todos estão empilhados em uma sala, na espera de uma reforma que nunca vem. “Eles dizem o que querem e eu vou lá dentro buscar”, disse uma funcionária que não quis se identificar. O acervo de livros infantis transferido da Cidade da Criança está guardado e empoeirado. Segundo a funcionária, os pequenos não procuram mais a biblioteca.
O estoque é outra preocupação. Segundo o diretor Márcio Frias, dos 100 mil livros existentes hoje, quase nenhum chegou pelas mãos do Governo do Estado. Os poucos livros que ainda vêm são doações particulares ou do Ministério da Educação. E muitos não podem ainda ir para as estantes, porque não tem bibliotecário suficiente.
Memorial e Forte: problemas de fácil solução
A ressalva ao desgaste do quadro cultural potiguar fica por conta de alguns pontos de visitação que não estão totalmente desamparados. Em Natal, por exemplo, no Memorial Câmara Cascudo e na Fortaleza dos Reis Magos, o quadro até pode melhorar, mas os problemas não são de ordem maior.
Como um dos marcos turísticos e históricos mais importantes do estado e por ser um Patrimônio Histórico Nacional, o Forte dos Reis Magos (como é conhecido) ainda é item da lista de quem busca um pouco de cultura. Por ser uma construção antiga, que data de 1599, os problemas estruturais não vão além do esperado.
Segundo o guia Geraldo Camilo, o local passou por três grandes reformas desde que foi tombado como patrimônio histórico nacional em 1949, e recebe manutenção estrutural periodicamente com pintura, troca de iluminação e de peças. A última manutenção foi feita em dezembro de 2008.
O intervalo até poderia ser considerado de bom tamanho se a fortificação não estivesse localizada praticamente dentro do mar, sofrendo ação constante da maresia. Para a diretora do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no RN, Jeane Nési, a Fortaleza precisa de uma manutenção sistemática para evitar que os desgastes naturais fiquem tão visíveis. Outra preocupação é o acervo da exposição, que não passa por nenhuma modificação desde que foi colocada, em 2006. Segundo o presidente da FJA, Crispiniano Neto, não há projetos para mudanças no local. “Realmente a exposição está na hora de ser melhorada, mas nós temos outras prioridades no momento”, disse.
No Memorial Câmara Cascudo, que trata sobre as obras e vida do potiguar Luiz da Câmara Cascudo, as exposições costumam ser renovadas periodicamente para atrair os visitantes. Mas, de acordo com a diretora do Memorial e neta do homenageado, Daliana Cascudo, mesmo com a entrada gratuita, o povo de Natal não tem o costume de visitar. “Quem vem mesmo são as escolas e os turistas que já se interessam pela história de Cascudo.
Cidade da Criança está fechada há um ano
Com todas as falhas na cultura do Rio Grande do Norte, alguns espaços acabam sendo mais censurados do que outros. A Pinacoteca e a Cidade da Criança, ambos em Natal, são aqueles de que mais se ouve falar, e quase sempre, no lado negativo. A Fundação José Augusto (FJA) é responsável pelos dois espaços.
A Cidade da Criança é uma área de mais de 30 mil metros quadrados. Com playground, pedalinho, capela, concha acústica, biblioteca, teatrinho e cirquinho, o espaço foi criado para entreter toda a família natalense. Entretanto, os cadeados nos portões que impedem o acesso do público já vão completar um ano. Fechado temporariamente para reforma, o local quase não recebe mais manutenção. Os brinquedos estão enferrujados e a lagoa continua recebendo águas fluviais de outros bairros. O mato alto garante os únicos visitantes: os cavalos.
Sob argumento de que representava risco para a segurança dos pequenos, a Cidade da Criança foi fechada ao público no inverno do ano passado, depois que as fortes chuvas caíram sobre Natal. Segundo o presidente da FJA, os problemas eram de todos os tipos. “Quando nós assumimos (em janeiro de 2008), tiramos mais de 200 caçambas de lixo dali”, contou.
Crispiniano Neto garantiu que no dia primeiro de julho será apresentado o novo projeto para a Cidade da Criança, no valor de R$3,6 milhões de reais. “Será feita a drenagem da lagoa, reforma dos prédios e a construção de mais dois, o aumento do circo, do teatrinho e da concha acústica e os brinquedos serão todos trocados”, disse. Segundo ele, a demora para a conclusão do projeto aconteceu por causa da lentidão das negociações. “Além disso, nós queríamos fazer um projeto definitivo agora, sem gambiarra”, disse.
Na Pinacoteca, o cenário também é de destruição. Inaugurada há 12 anos no Palácio do Potengi (Palácio da Cultura), a Pinacoteca de Natal fechou as portas ao público quando se transformou em sede temporária da Governadoria do Estado, em 2008. Hoje, mesmo com os oficiais do Governo de volta ao prédio de origem, o local ficou abandonado.
O problema começa já do lado de fora, com a calçada quebrada. Dentro, a situação não melhora em nada. Das 12 salas que podem ser usadas para exposição dos quadros, as duas que estão abertas a visitação apresentam um monte de problemas. Fios elétricos soltos, janelas quebradas, paredes com infiltração, mofo, falta de iluminação adequada e até animais mortos presos aos quadros da Pinacoteca.
Segundo o coordenador Vatenor de Oliveira, mais de 500 obras estão na reserva técnica esperando a reabertura do local para voltarem à exposição. Além de tudo isso, a Pinacoteca não é sequer regulamentada pelo Governo, ou seja, ela nem existe por lei. Segundo Vatenor, isso é uma dificuldade a mais para conseguir novos quadros para o acervo.
De acordo com Vatenor, a reforma da Pinacoteca já está licitada e deve começar até a primeira quinzena de julho. Mas, como o Palácio da Cultura é um patrimônio histórico nacional referenciado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), qualquer obra que vá ser realizada na Pinacoteca precisa ser aprovada antes pelo Iphan. E, segundo a diretora do Instituto no RN, Jeane Nési, nenhum projeto passou pelas suas mãos. “Se eles começarem a obra, o Iphan vai embargar porque não tivemos conhecimento disso”.
Crispiniano Neto disse não entender como o projeto não foi encaminhado ao Iphan antes de ter sido licitado, mas depois falou que não haveria necessidade. “Não vai ser exatamente uma reforma, vai ser mais uma limpeza, uma restauração mesmo”, disse o presidente da FJA.
Alguns artistas visuais de Natal organizaram uma convocatória para que a população cobre da Governadora uma posição definitiva. “Um dos equipamentos culturais mais importantes do estado está sem atividade. Precisa de uma reforma urgente na estrutura, mas também de uma reforma administrativa, que ofereça coisas novas. Como o espaço é muito grande, a Pinacoteca poderia ter novos atrativos, como o cineclube, uma biblioteca de arte, um corpo de acesso de internet”, opinou a artista Sayonara Pinheiro.
Questões políticas são entraves na cultura
O sucesso cultural de uma sociedade depende diretamente do binário qualidade-interesse. No Rio Grande do Norte, entretanto, a dupla não é estimulada em nenhuma direção. Se de um lado, o estado não oferece cultura boa; do outro, o potiguar, de uma forma geral, não se interessa por isso. Sem cobranças, hábito e um empurrão que agilize o andamento, a cultura não cresce nem de um lado, nem de outro.
Na visão dos artistas, são as questões políticas que emperram o desenvolvimento cultural do nosso estado. O produtor cultural Henrique Fontes, da Casa da Ribeira, ressaltou a necessidade de uma política cultural que não seja dependente dos gestores políticos. De acordo com ele, as leis e editais de incentivo à cultura devem ficar acima do governante. “O que o Governo Federal propõe é criar uma política de estado e não de governo, como é hoje. Seria como o SUS (Sistema Único de Saúde), que existe e está ali independente de quem está no poder”, disse.
Para ele, os “fazedores de cultura” (artistas e produtores) só vão poder enxergar as mudanças a partir das ações do Estado. “A educação e a cultura ainda são pensadas de forma muito separada aqui. O que é de escola é de educação e o que é arte é de cultura. Mas enquanto essa arte não for pensada também como educação, esse quadro não vai para frente”, criticou.
No RN, o trabalho de apoio à cultura é feito de forma isolada. A ação de uma escola que leva um grupo de estudantes a um museu, por exemplo, não vai funcionar a longo prazo, se por trás disso, não houver uma política de incentivo às crianças, que ensine o que é a cultura e porque aquele museu é importante. Afinal, é difícil amar o que não conhecemos.
A FJA tem duas boas ações de incentivo à cultura, mas que acabaram caindo nas críticas. São os Editais para novos projetos e a Lei Câmara Cascudo, que concede cinco milhões de reais por ano para a realização da cultura no estado.
Mas, com reuniões semanais que deveriam ser realizadas todas as segundas-feiras, a reclamação é de que a aprovação dos projetos acaba sendo atrasada porque não há regularidade nesses encontros. Para a produtora cultural e artista Diana Fontes, a Lei sozinha não supre todas as necessidades. É necessária a criação de um fundo estadual para a cultura no RN.
Quanto aos editais, foram publicados os 15 primeiros agora em 2009. São eles: jornalismo cultural, música, grupos folclóricos, cinema, cultura para juventude, cultura para terceira idade, teatro de rua, teatro de palco, literatura de cordel, literatura, criação dos Pontos de Cultura, criação de homepage, dança, montagem de teatro e poesia.
A recriminação vai para a lentidão dos projetos, a estrutura das equipes da Fundação e a dependência de alguns artistas. Diana Fontes considera que o artista ficou muito dependente dos editais e da Lei. “Não desmerecendo a importância de nenhuma dessas ações, os artistas ficaram acomodados com isso, esperando que essas políticas de incentivo tragam os projetos à tona”, criticou.
Presidente da FJA reconhece problemas
O presidente da Fundação José Augusto (FJA), Crispiniano Neto, reconheceu todos os problemas com a cultura no Estado. E se dependesse das palavras dele, o Rio Grande do Norte seria uma referência em cultura. Com um monte de justificativas e argumentos, 35 obras paradas e mais de 40 projetos esperando aprovação, licitação ou em fase primária de execução, a FJA culpa o baixo orçamento disponível e a burocracia das negociações.
De acordo com a editora da Revista Preá, Mary Land Brito, as edições não foram publicadas com a periodicidade de dois meses prometida, porque a diagramação foi questionada várias vezes. “Mas a licitação já está feita e daqui a 20 dias, a revista deve estar sendo entregue”, garantiu.
De acordo com Crispiniano, o que atrapalha o andamento dos projetos é que o poder de licitar as obras foi tirado da FJA e transferido para a Secretaria de Infra-Estrutura (SIN), que já tem muitas outras obras aguardando execução. Porém, quando o Governo do Estado propôs à Fundação o controle total sobre as obras, eles não aceitaram. “A Governadora decidiu devolver à Fundação a condição de cuidar da obra, mas nós não podemos ser responsáveis pela construção, não é essa nossa função. Queremos apenas licitar o projeto”, disse.
Esse foi o argumento usado para a demora na reforma da Biblioteca Câmara Cascudo, que há 15 anos não passa por nenhum aperfeiçoamento. Segundo Crispiniano, o recurso para reforma do teto e da parte elétrica da biblioteca foi liberado no ano passado, mas a obra não pôde ser executada porque a SIN demorou a fazer a licitação. E quando foi feita, a empresa vencedora contestou o projeto e aumentou o orçamento, o que teria ocasionado um novo atraso nas obras.
“Nós estamos com R$160 mil liberados para usar na Biblioteca. Esse valor não chega nem perto do necessário, só poderemos fazer uma reforma parcial. A modernização que a Biblioteca precisa é da ordem de R$2,5 milhões”, disse Crispiniano.
Outros empecilhos citados pelo presidente foram o baixo recurso de que a FJA dispõe e a demora na abertura anual do orçamento do Estado, que só fica acessível a partir do mês de março. “Nós temos que esperar o terceiro mês do ano para podermos começar a fazer as coisas e nosso dinheiro só para pagar o pessoal, então dependemos de outros órgãos”, reclamou.
Quanto aos trabalhos de incentivo à cultura, Crispiniano declarou ser impossível “estar nas duas pontas”. De acordo com ele, são necessários os recursos e a anuência da Secretaria Estadual de Educação e Cultura. “Nós temos alguns projetos que já trabalham isso, como a Semana de museus, o Poticanto, o Seis e Meia e a Orquestra Sinfônica, que se volta também para as crianças nas escolas. Mas falta divulgação e publicidade da cultura, que ainda está muito distante da mídia”, finalizou.
Fonte: Tribuna do Norte (28/06/2009) – repórter: Priscilla Castro