Leis desconhecidas ficam sem aplicação no dia-a-dia
Anualmente dezenas e dezenas de leis são aprovadas pelos legisladores brasileiros, a partir do Congresso Nacional, da Assembleia Legislativa e Câmara Municipais, que no Rio Grande do Norte são 167. A enxurrada de leis pode ser motivo para que elas,
Publicado 30/06/2009 18:07 | Editado 04/03/2020 17:08
Diversas questões são tidas como responsáveis pela não implementação de leis, conforme admite o ex-procurador geral da Justiça, José Augusto Perez, apesar de que o Ministério Público vem realizando o seu papel de fiscalizar a aplicação delas: “Existem dois aspectos, primeiro, a própria redação da lei, às vezes confusa, não deixa clara a sua aplicação, não diz, por exemplo, quem vai fiscalizar, entre outros aspectos”.
José Augusto Perez diz que o segundo ponto são as questões culturais da sociedade brasileira, seja a população ou instituições públicas e privadas: “E às vezes não existe o interesse de cumprir as leis”, disse ele, porque muitas vezes só se procura o direito “pelo mal que se pode causar”.
Outro ponto importante, segundo Perez, é que o Estado precisa fiscalizar determinadas condutas e não fiscaliza “quem está obrigado a cumprir a lei”, como no caso de uma “puxada irregular na sua casa” ou “a ocupação irregular do espaço público”.
Pelo menos, Perez acha que muita coisa já está mudando, pois as pessoas já estão tomando consciência sobre a necessidade do cumprimento da lei. Ele cita o exemplo da “lei seca”, que embora comece a ter uma certa efetividade, pode demorar a cair no consciente das pessoas. “Isso não é do dia para a noite”, disse ele, que questiona, também, o fato de haver deficiência na fiscalização por escassez de equipamentos, como o bafômetro usado para flagrar o motorista que dirige embriagado.
Perez admite que ele mesmo sentiu na pele o problema de descumprimento da lei, pois quando tentou fazer valer o Estatuto do Torcedor, para evitar invasões de campo pelos torcedores, a questão cultural falou mais alto: a própria imprensa esportiva foi quem criticou, porque a comemoração dos torcedores em campo “já fazia parte de sua cultura”.
O presidente da seccional norte-rio-grandense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RN), Paulo Eduardo Pinheiro Teixeira, também acha que o cumprimento da lei está ligada à questão cultural.
Paulo Pinheiro Teixeira avalia também que o alcance, a amplitude de uma lei, está ligado, ainda, ao universo de pessoas que ela pode atender – “se tem caráter restritivo e atende um segmento mais específico” – fica mais difícil dela passar a ser conhecida.
“Existem leis que não são populares e não são de grande repercussão, porque tem um universo muito limitado”, continuou Pinheiro: “Às vezes ela não tem um alcance social”, disse ele, citando leis que têm grande repercussão, como o Código de Defesa do Consumidor e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
“Também existem leis que não têm grande aplicação, são pouco usadas, mas de grande valia, como foi o caso do jurista Sobral Pinto, que defendeu perseguidos políticos durante a ditadura de Getúlio Vargas, usando a lei de proteção aos animais para libertar presos políticos”, disse Pinheiro.
Pinheiro ainda afirmou que o volumoso número de leis pode criar dificuldades para a população conhecê-las, mas ele lembra que “existe um princípio de que a ninguém é dado o direito de desconhecer a lei”.
Mas, na prática, ele admite que “isto é quase impossível, devido às centenas de leis existentes no Brasil, onde há 22 códigos e pelo menos 11.900 leis federais, sem contar as leis estaduais e municipais: “Para haver a aplicação da lei, também é preciso que haja um “estado de consciência da sociedade”.
Empresária luta por indenização
A empresária Adriane Fernandes Scarpati veio de Brasília e há sete meses mora em Natal. Há quase dois meses ela luta por uma indenização dos supermercados Extra por conta do arrombamento e roubo de equipamentos de sua Parati 2008, ocorridos em 26 de abril no estacionamento interno daquele estabelecimento comercial.
Ela é mais um exemplo de pessoas, que mesmo sabendo da existência de lei, se sentiu lesada no seu direito, que foi ressarcimento causado pelo ladrão, que danificou as maçanetas das portas da lateral direita e ainda roubou o pneu estepe do seu automóvel.
Adriane Scarpati disse que teve um prejuízo de mais de R$ 1.200,00, primeiro, porque quando reivindicou o ressarcimento dos prejuízos, não foi atendida pelo Extra. “Eu tive de atrasar a prestação do carro para pagar o conserto”, disse ela, que pagou a prestação com atraso e um juro de R$ 106,00.
Segundo ela, mesmo com vigilância no estacionamento, não houve como impedir o roubo. Já na tarde da próxima quinta-feira, dia 12, a empresária disse que terá a primeira audiência com o representante do Extra, no Juizado de Pequenas Causas que existe dentro do campus universitário: “Não procurei o Procon porque a primeira audiência era de conciliação e ele não é impositivo’, explicou ela, acrescentando que o pior transtorno foi a perda de tempo e a humilhação.
Juiz explica existência de tantas leis
Já o presidente da Associação dos Magistrados do Rio Grande do Norte (Amarn), juiz Madson Ottoni Rodrigues, avalia que “é preciso verificar”, no caso da proliferação de leis que são criadas pelo país, que isso veio a ocorrer por conta do advento da Constituição Federal de 1988, “quando houve o surgimento do novo estado brasileiro”.
O juiz Madson Rodrigues explicou que, “juridicamente”, a Constituição é o marco da criação do estado e, a partir daí, “começou-se a trabalhar na regulamentação jurídica desse estado através de leis ordinárias e complementares da Constituição”.
Segundo Rodrigues, o aparecimento de tantas leis deveu-se a necessidade de refundação do estado brasileiro, de se fazer com que a legislação se adeque a essa nova realidade: “Essa é a justificativa jurídica que posso dar para essa profusão de leis”.
Outra questão para o descumprimento das leis, aliado ao seu grande volume, é a cultura, “porque nós temos uma origem muito cartorial, nós só acreditamos naquilo que está escrito e, mesmo assim, não cumprimos”.
Segundo Rodrigues, no Brasil há uma necessidade diferente da tradição do direito anglo-saxão, “onde se trabalha muito com os costumes, com os precedentes, e aqui não, nós trabalhamos mais com a lei, a lei para nós é o que vale, ou pelo menos deveria valer”.
Por isso, segundo Rodrigues, o Brasil tem essa cultura de legislar muito: “E mesmo assim, o nosso parlamento é formado por muitos interesses – temos representantes das bancadas religiosas, dos ruralistas, da classe empresarial, enfim, isso é típico da democracia, faz com que cada segmento procure criar leis favoráveis aquelas pessoas que eles representam no parlamento”.
Além dessas questões, Rodrigues avalia que a geração de muitas leis contribui para criar conflito entre elas. “Nós temos leis que dizem uma coisa e tem leis que desdizem aquilo que foi dito pela outra”, disse ele. Para o magistrado, isso faz com que, na hora de aplicar a lei, “o juiz tem de ter muito cuidado para que essa lei seja aplicada de uma maneira a se harmonizar com a Constituição e a se harmonizar com outras leis”.
No entendimento do juiz, muitas regras só terão eficácia “se culturalmente forem incorporadas pela população”, como foi o caso do Código de Trânsito por exemplo, ao uso do cinto de segurança pelos motoristas e passageiros de automóveis. “No início as pessoas acharam ruim, se sentiam presas, achavam que o cinto amarrotava a roupa, só que hoje, instintivamente, passam o cinto de segurança”, argumentou o juiz, que continuou: “É o exemplo mais categórico de uma lei que se efetivou”. Outra lei que Rodrigues acha que vai acaber “pegando”, e a proibição dos fumantes usarem o cigarro em locais públicos. “Mas, quando se faz uma lei que conflita com os costumes ou quando as pessoas não estão culturalmente identificadas com aquela lei, elas tendem a não cumprir”.
Judiciário só age mediante provocação
O presidente da Amarn, Madson Rodrigues também acompanha os argumentos de outros operadores do Direito, admitindo que a falta de estrutura do estado acaba influindo para que algumas leis deixem de ser cumpridas.
“O estado não tem condições de atuar numa fiscalização muito ampla, ficando mais na questão de as pessoas cumprirem por respeito à lei por se identificarem com elas”, afirmou ele, que acrescentou – “mas como as pessoas só cumprem a lei quando são coagidas, não apenas porque existe uma lei, isso passa muito por um processo de questão de educação da população, uma maior conscientização da civilidade”.
Ele lembra que o Judiciário atua na garantia do direito quando “é provocado’, o que pode ser feito por um particular que se sente lesado no direito que tem previsão numa lei “e ai ele pede uma reparação por essa lesão e o Judiciário assegura a ele aquele direito”. Mas a forma maior, de se dar abrangência a esse tipo de norma, é através de ações coletivas, ajuizadas, segundo ele, pelo Ministério Público: “São ações que têm repercussões para toda a comunidade, atingindo o maior número de pessoas. Fora disso, são soluções pontuais”.
Por fim, Rodrigues acredita que existe uma tendência de cada vez mais melhor se cumprir a lei. “Nós ainda temos muito a desejar e o que fazer, porque temos ainda um processo educacional muito deficitário, quando ocorre isso, os ganhos da sociedade são muito longos, se melhorarmos a educação, dos jovens principalmente, nós teremos menos tempo para adequar as regras de convivência e de cumprimento das leis”.
Mesmo assim, ele alerta para o fato de que, apesar da maioria da população desconhecer as leis, “existe uma presunção jurídica, de que ninguém pode alegar desconhecimento da lei, eu não fiz isso porque não sabia que tinha uma lei que me impunha a fazer aquilo, é regra jurídica não se aceitar essa argumentação.
Por essa razão, ele acha importante que entidades que operam o Direito especialmente, como a Associação dos Magistrados, o Ministério Público e o próprio poder público possam orientar as pessoas sobre a existência das leis, conscientizando dos seus direitos. “A imprensa é fundamental nessa divulgação, porque muitas vezes pessoas estão num determinado prejuízo ou punição, por não saberem que têm o direito de exigir o cumprimento de uma determinada lei”.
“E outra coisa, nós temos ainda no Brasil a chaga da impunidade, porque muitas vezes a lei pega, quando as pessoas acreditam que aquela lei será aplicada quando houver uma situação”, finalizou ele, que também defende a realização de um trabalho para racionalizar as leis. “O parlamento podia levantar quais são as leis obsoletas, que não pegaram, quando existe superposição de leis, enxugar essa legislação, para então começar a educar a população”.
Brasil deve ter 150 mil leis e normas
No entendimento do presidente da Comissão de Legislação Participativa da Câmara Municipal, vereador George Câmara (PC do B), o fato de muitas leis não serem cumpridas tem um pressuposto cultural, “que lamentavelmente não é só uma coisa de Natal, é um problema que nós temos nacionalmente”.
George Câmara estima que existam 150 mil leis e normas no Brasil, sem falar naquela história “da lei que pega e daquela que não pega”.
Para ele, isso ocorre por uma conjunção de fatores. “Não tem assim uma única causa, são vários componentes, às vezes é uma lei que não foi suficientemente absorvida pela sociedade no seu processo de elaboração, com não discutir com os segmentos envolvidos, que já é um processo”, disse ele.
Câmara deu o exemplo de uma lei, recente, que tem efetividade porque foi discutida com a sociedade, a da qualidade da água: “Ela foi implementada, porque nós envolvemos todos os atores sociais, inclusive na negociação para sair o próprio decreto do Poder Executivo regulamentando”.
Segundo ele, isso ocorreu em 2001 e foi a primeira lei de sua autoria aprovada na Câmara, que obrigou a Caern a divulgar o teor de nitrato, a turbidez, o Ph e assim por diante. O decreto saiu em outubro e na conta de novembro já saiu o cumprimento da lei.
“Quatro anos e meio depois, em maio de 2006, o governo lula editou uma portaria interministerial fazendo com que o país inteiro tivesse esse direito, o que a gente já fazia há quase cinco anos”, informou Câmara.
Embora tenha sido aprovada antes dele chegar à Câmara Municipal, o vereador exmplificou uma lei que teima em não sair do papel: a do limite do cliente esperar 30 minutos por atendimento numa fila de banco em dias de pouco movimento: “A lei não está sendo cumprida porque o lobby dos banqueiros criou um conceito esdrúxulo, que não existia no Código do Consumidor, que é o consumidor bancário”.
Para Câmara, não existe consumidor bancário – “consumidor é consumidor, não tem essa adjetivação, então por ser uma relação de consumo, o município pode legislar sobre essa matéria, com esse discurso, o lobby funcionou pesado e até hoje não foi implementadas”.
Aplicação de leis como essa, segundo Câmara, tem de ser fiscalizada e cobrada pelo Ministério Público, “porque é um direito difuso, não é um direito concentrado, é um direito que assiste à toda sociedade, não é uma coisa individualizada”. Ele ainda questiona que muitas leis não são aplicadas, “em função da própria limitação da estrutura do poder público”, inclusive na questão da fiscalização. Por exemplo, o caso da ocupação de canteiros e espaços públicos pelo comércio, como cigarreiras e bares: “Ou se tem o apadrinhamento de alguém fechando os olhos para uns ou sendo mais rigoroso com outros, ou então se tem generalizadamente um descumprimento.
Câmara acha que mesmo com aprovação de leis pelo Poder Legislativo a cada ano, o poder público tem condições de ir se aparelhando para a sua efetivação: “acho que são coisas que caminham em conjunto, o legislador vai aprovando leis que considera importantes para a sociedade e também estruturando o estado para isso, realizando mais concursos públicos, por exemplo”.
Fonte: Tribuna do Norte (28/06/2009) – repórter: Valdir Julião