Saramago homenageia Álvaro Cunhal em seu blog

Pouco mais de quatro anos e um mês do aniversário da morte do dirigente comunista português Álvarou Cunhal, em 13 de junho de 2005, o escritor José Saramago o homenageia com um post em seu blog, publicado nesta sexta-feira (31).

"O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso", diz o escritor, no texto que o Vermelho reproduz integralmente abaixo:

"Não foi o santo que alguns louvavam nem o demónio que outros aborreciam, foi, ainda que não simplesmente, um homem.

Chamou-se Álvaro Cunhal e o seu nome foi, durante anos, para muitos portugueses, sinônimo de uma certa esperança.

Encarnou convicções a que guardou inabalável fidelidade, foi testemunha e agente dos tempos em que elas prosperaram, assistiu ao declínio dos conceitos, à dissolução dos juízos, à perversão das práticas.

As memórias pessoais que se recusou a escrever talvez nos ajudassem a compreender melhor os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito.

Não leremos as memórias de Álvaro Cunhal e com essa falta teremos de nos conformar. E também não leremos o que, olhando desde este tempo em que estamos o tempo que passou, seria provavelmente o mais instrutivo de todos os documentos que poderiam sair da sua inteligência e das suas finas mãos de artista: uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantdo e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las.

Como se tivesse fechado uma porta e aberto outra, o ideólogo tornou-se autor de romances, o dirigente político retirado passou a guardar silêncio sobre os destinos possíveis e prováveis do partido de que havia sido, por muitos anos, contínua e quase única referência.

Quer no plano nacional, quer no plano internacional, não duvido de que tenham sido de amargura as horas que Álvaro Cunhal viveu ainda.

Não foi o único, e ele o sabia. Algumas vezes o militante que sou não esteve de acordo com o secretário-geral que ele era, e disse-lho.

A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro.

O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás. Envelhecer é não ser preciso. Ainda precisávamos de Cunhal quando ele se retirou. Agora é demasiado tarde.

O que não conseguimos é iludir esta espécie de sentimento de orfandade que nos toma quando nele pensamos. Quando nele penso.

E compreendo, garanto que compreendo, o que um dia Graham Green disse a Eduardo Lourenço: “O meu sonho, no que toca a Portugal, seria conhecer Álvaro Cunhal”. O grande escritor britânico deu voz ao que tantos sentiam. Entende-se que lhe sintamos a falta."

Fonte: O Caderno de Saramago