Wálter Maierovitch: Caso Dantas e a lição do juiz Falcone

Na próxima semana, deverá ser apreciado novo pedido de concessão de liminar, no interesse do banqueiro Daniel Dantas e referente ao complexo agropecuário composto de 27 fazendas e 543 mil cabeças de gado, patrimônio esse que foi objeto de cautelar sequestro judicial, determinado pelo juiz Fausto De Sanctis.

O sequestro decorreu do contido no relatório conclusivo da denominada Operação Satiagraha e se verificou quando do recebimento da denúncia contra Dantas e outros treze corréus. A peça da lavra do procurador Rodrigo De Grandis acusa Dantas de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta, formação de quadrilha e bando e outros três delitos conexos. A advogada Dora Cavalcanti, que atua na busca da liminar de levantamento do sequestro de fazendas e mugires, sustenta “que Daniel Dantas não faz parte da composição da agropecuária”, algo que, evidentemente, só poderá ser reconhecido por decisão de mérito. Em outras palavras, existem indícios suficientes a ligar Dantas com os graves ilícitos descritos no relatório do inquérito e na denúncia do Ministério Público Federal.

O recente desfalque judicial ao patrimônio do banqueiro Daniel Dantas – já condenado por corrupção voltada a impedir o prosseguimento de investigações e ensejar a continuidade de atividades ilícitas na condição de gestor de uma organização criminosa – revelou que o banqueiro não estava tão protegido como imaginava. O procurador e o juiz sabiam muito bem que, depois do surpreendente empenho do ministro Gilmar Mendes em soltar Dantas liminarmente, outro caminho, o do sequestro de bens, deveria ser trilhado, sempre à luz do interesse público.

No particular, inúmeros e consistentes indícios de lavagem de dinheiro e de reciclagem de capitais em atividades formalmente lícitas permitiam legalmente os sequestros de fazendas e cabeças de gado.

A decisão judicial encontrou apoio na Convenção da ONU sobre criminalidade organizada (Convenção de Palermo) e no nosso Código de Processo Penal. Este, desde 1941, prevê o sequestro como medida acautelatória, voltada à reparação do dano decorrente de crimes. Quanto ao bloqueado fundo de ações do Opportunity, uma liminar concedida por desembargadora federal suspendeu- apenas a sua liquidação. Continua, portanto, o bloqueio até o julgamento do mérito do mandado de segurança interposto no interesse do banqueiro. A respeito da liminar, Dantas impediu apenas a liquidação por ser irreversível e eventualmente ruinosa aos investidores. O mais ruinoso para os investidores, entretanto, seria o desbloqueio, debaixo de gestão dantesca.

Sobre a necessidade do sequestro de bens de Daniel Dantas, recordo de um surpreendente e instrutivo encontro. Certa vez, a jornalista francesa Marcelle Padovani, correspondente há anos do Le Nouvel Observateur na Itália, convidou-me para almoçar e frisou que me faria uma surpresa. Naquela ocasião, Marcelle também dirigia, eleita pelos seus pares, a Associazione della Stampa Estera in Italia, fundada em 1912 e que se tornou a maior organização mundial de serviços e de assistência aos correspondentes de jornais estrangeiros: 54 países representados por 800 órgãos de imprensa associados. O almoço seria no restaurante da associação, na então sede vizinha aos terminais de ônibus da romana Piazza San Silvestro.

Um parêntese. Marcelle escreveu Cose di Cosa Nostra (Coisas da Cosa Nostra), considerado o livro-testamento do juiz Giovanni Falcone, dinamitado pela Máfia em 23 de maio de 1992. Por que o siciliano Falcone teria preferido uma jornalista francesa em vez de um italiano? Os mais afoitos concluiriam que se a escolha recaísse num italiano, os demais ficariam enciumados. Nada disso. Na verdade, Marcelle conhecia como poucos o tema e havia, com o consagrado escritor siciliano Leonardo Sciascia, produzido a obra La Sicilia come Metafora. Em resumo, era Marcelle, também, uma escritora de peso, com obras fantásticas, como Les Dernières Années de la Mafia, Le Parti Comuniste Italien, Vivre avec le Terrorisme, etc.

Registre-se: até então, muitas autoridades, em especial políticos, por cooptação, interesses, má-fé ou trava no olho, sustentavam que a Máfia não existia. Mas os assassinatos dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, em maio e julho de 1992, colocaram fim ao negacionismo.

Na semana passada, Totò Riina, capo di tutti i capi, preso há mais de dezesseis anos, rompeu treze de silêncio, autoimposto ao saber da primeira condenação lançada depois da sua prisão em janeiro de 1993. Ao juiz Antonio Ingroia, do “pool antimáfia” de Palermo, Riina disse não ter a Máfia matado o juiz Borsellino. Ele atribuiu o crime, “provavelmente”, aos agentes do serviço secreto italiano: as relações amigáveis entre os agentes da espionagem italiana e a Máfia são conhecidas, como mostra o processo condenatório de Bruno Contrada, ex-007.

Retorno ao almoço no restaurante da Stampa Estera. A surpresa reservada chegou por volta das 14h30, quando o garçom servia um prato de peixe-espada. Na minha frente postou-se o ex-motorista de Totò Riina. Seu nome: Gaspare Mutolo. Ele pertencia à segunda geração dos colaboradores de Justiça. Uma segunda leva de arrependidos (pentiti) pós-Buscetta, o já falecido “don Masino”, que fugiu, depois da guerra vencida pelos mafiosos corleoneses liderados por Totò Riina, para o Brasil e se casou com a brasileira Cristina Guimarães.

No encontro com Mutolo, evitei o termo pentito, que, para um ex-mafioso como Mutolo, seria pejorativo, pois soa como traidor. Até hoje Riina desconfia ter sido Mutolo um dos responsáveis pela sua prisão, a quebrar os mais de 24 anos de fuga da Justiça, tudo sem nem precisar mudar do aristocrático bairro palermitano onde residia. Talvez Riina esteja enganado. A versão de acordo com os próceres da criminalidade dos potentes, aqueles que movem ocultamente os cordéis e estão acima das máfias, é mais razoável. Basta atentar ao fato que Riina foi preso ao sair de casa. Mas o seu apartamento só recebeu atenção da polícia dois dias depois, ou seja, quando tudo do seu interior já havia sido retirado.

Mutolo havia procurado Marcelle para se queixar do fato de o Estado italiano não reajustar o estipêndio dos colaboradores de Justiça, que viviam longe da família, com nova identidade e dificuldades na obtenção de complementar fonte lícita de renda. Mutolo disse-me pintar com perfeição retratos e paisagens. Segredou ter sido o autor, na prisão, das telas assinadas pelo capo-mafia Luciano Liggio (falecido em 1993), do qual Riina havia sido lugar-tenente e depois sucessor. Ele explicou que Liggio queria “fazer bela figura”, a mostrar para a Justiça ser capaz de sobreviver sem precisar da Máfia. O certo é que Liggio cavava um benefício para sair do cárcere e simulava uma dissociação com o mundo do crime, trocado pelo da arte: “Giudice Fanganiello, nenhuma galeria italiana aceita quadro pintado por mafioso. Pega mal. Será que venderia os meus no Brasil?”

Na minha primeira pergunta a Mutolo, mirei no bolso das organizações criminosas, quer mafiosas, quer constituídas em bandos. Ou melhor, indaguei-o do acerto do ensinamento de Falcone: “Para desestabilizar e enfraquecer uma organização criminosa é necessário empobrecê-la”.

Mutolo respondeu com um fato da sua história mafiosa de vida. Ele contou, com relação ao seu primeiro dia de encarceramento no megapresídio palermitano denominado Ucciardone, ter batido durante bom tempo uma caneca de alumínio contra as grades. Estava faminto e não era atendido. Quando sem esperança, extenuado e pronto a encher o estômago com água para espantar a fome, ouviu um apelo para se acalmar. Partia de um desconhecido companheiro de cela, que atendia pelo nome de Totò Riina. Com voz baixa, Riina perguntou o que gostaria de comer e, logo depois, foi-lhe servido o desejado por um agente penitenciário.

A partir daí, Mutolo disse haver aprendido com Riina um conhecidíssimo ditado mafioso: “Chi ha soldi e amicizia va in c… alla Giustizia” (Quem tem dinheiro e amizade manda… a Justiça). Completou Mutolo: “Para um chefe ou membro de organização criminosa de peso, é melhor ficar preso com muito dinheiro guardado do que permanecer em liberdade duro: al verde”. Para Mutolo, que convivia com o chefão Totò Riina, o que mais doía era o bolso: “Colpire gli interessi economici dei boss”.

Não sei por onde anda Mutolo. Mas, se fosse chamado a dar um parecer no caso Dantas, voltaria a repetir a resposta dada à minha pergunta sobre criminalidade organizada e que bem lembro: “Il mafioso lo si indebolisce non appena mettendolo in galera, ma impoverendolo”. Enfraquecemos o mafioso não somente aprisionado-o, mas empobrecendo-o.

Fonte: Carta Capital