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Bagua, o genocído indígena executado por Alan Garcia

Quem são e como vivem os povos indígenas peruanos que em Junho passado foram vítimas de uma selvática repressão genocida, executada a mando das multinacionais que lhes cobiçam o território pelo servil Alan Garcia?

Por Hugo Blanco

“Diz-se que os homens não choram ou não devem chorar, sou um homem de fato e de direito, na minha vida só chorei em três ocasiões, quando morreram os meus pais e dois dos meus irmãos mais velhos, mas ontem à noite quando vi a reportagem de inimigos íntimos e recordando aquilo de que fui testemunha durante a tarde de ontem, confesso que me pus a chorar como uma criança.”

Começo por assinalar uma diferença entre a “modernidade” e a cosmovisão indígena: O mundo civilizado vê o passado como uma coisa ultrapassada. “Primitivo” tem uma conotação pejorativa. O que é moderno, o que é mais recente, é o melhor.

No meu idioma, o quechua, “Ñaupaq” significa “futuro” e ao mesmo tempo “passado”. “Qhepa” significa “posterior”, no espaço e no tempo.

Hoje vemos que “o progresso” está conduzindo à extinção da espécie humana através do aquecimento global e de muitas outras formas de ataque à natureza.

Quem são os povos amazômicos?

A população amazômica peruana engloba 11% da população. Habita a mais extensa das três regiões naturais do Peru, o norte, o centro e o sul oriental. Fala dezenas de línguas e é composta por dezenas de nacionalidades.

Os habitantes da selva sul-americana são os indígenas menos contaminados pela “civilização” cuja etapa actual é o capitalismo neoliberal.

Não foram conquistados pelos incas, nem dominados pelos invasores espanhóis. O indígena serrano rebelde, Juan Santos Atawallpa, ao ser atacado pelas tropas espanholas, refugiou-se na selva, no seio desses povos, de que aprendera uma das línguas, e as forças coloniais não conseguiram vencê-lo.

Na época da exploração da borracha o capitalismo entrou pela selva onde reduziu à escravidão e massacrou as populações nativas, por isso muitas delas mantêm-se até hoje num isolamento voluntário, não desejando qualquer contacto com a “civilização”.

Os irmãos amazômicos não partilham dos preconceitos de origem religiosa do “mundo civilizado” de tapar o Corpo com trapos mesmo que o calor seja intenso. A forte ofensiva moral dos missionários religiosos e as leis que defendem esses preconceitos conseguiram que alguns deles tenham que tapar algumas partes do corpo, principalmente quando vão à cidade.

Sentem-se parte integrante da Mãe Natureza e respeitam-na profundamente. Quando têm que cultivar, não fazem sementeiras de um só produto. Limpam um local do bosque, colocam nele diversas plantas de textura diferente, de ciclo vital diferente, juntas, imitando a natureza. Um palto ou abacate e, enroscada nele uma cabaça, ao lado um plátano, milho, yuca (mandioca), uma palmeira de frutos comestíveis. Ao fim de algum tempo devolvem esse lugar à natureza e arranjam outro local para cultivo.

Saem para caçar e colher, caçam quando vêem alguma coisa que valha a pena caçar, passam pela plantação, se vêm que há qualquer coisa madura, apanham-na, se reparam que é preciso fazer qualquer arranjo, fazem-no, ao fim de algum tempo regressam a casa, não se pode dizer se estão a passear ou a trabalhar.

Bebem a água dos rios e dos regatos e também se alimentam de peixes.

Até os indígenas serranos, mais contaminados pela “civilização”, classificam-nos de ociosos, não querem “progredir”, apenas querem viver bem.

Habitam cabanas coletivas. Não há “partidos” nem votações, a sua organização social e política é a comunidade. Não é um chefe que manda, quem manda é uma personagem coletiva, a comunidade.

Já ali viviam milénios antes da invasão europeia, milénios antes da constituição do estado peruano que nunca os consultou para elaborar as suas leis com as quais os ataca agora pretendendo exterminá-los.

As empresas multinacionais

Esta vida aprazível como parte da natureza está agora a ser agredida pela voracidade das empresas multinacionais. Extractoras de petróleo, gás e minerais. Depredadoras dos bosques.

Essas empresas, como reza a religião neoliberal, não se importam com a agressão à natureza nem com a extinção da espécie humana, a única coisa que lhes interessa é a obtenção da maior quantidade possível de dinheiro no espaço de tempo mais curto.

Envenenam a água dos rios, derrubam as árvores para as transformar em madeira: Matam a selva amazômica, mãe dos nativos amazômicos. E isso acabará por matá-los também.

Há abundante legislação peruana que os protege, entre outras o convénio 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que é uma lei de nível constitucional visto que foi aprovada pelo Congresso. Esse convénio estipula que qualquer disposição sobre os territórios indígenas deve ser sujeita a consulta às comunidades. Também existem leis de protecção do meio ambiente.

Mas a legislação peruana não passa de um pequeno obstáculo para as grandes companhias que, através do suborno, conseguem pôr ao ser serviço todo o estado peruano: o presidente da República, a maioria parlamentar, o poder judicial, as forças armadas, a polícia, etc. Os meios de comunicação também estão nas mãos delas.

Ao serviço dessas empresas que são os seus amos, Alan Garcia elaborou a teoria do “cão do hortelão”. Defende que os pequenos camponeses ou as comunidades indígenas, como não têm grande capital para investir, devem deixar o caminho livre às grandes companhias depredadoras da natureza, como as companhias mineiras na serra e as extractoras de hidrocarbonetos na selva. Em todo o território nacional devem deixar o caminho livre às grandes companhias agroindustriais que matam o solo com o monocultivo e os agroquímicos e que trabalham produtos de exportação e não para o mercado interno. Segundo ele, é essa a política que é precisa para que o Peru progrida. Para implementar essa política obteve autorização do poder legislativo para legislar, segundo afirma, para nos adequarmos ao Tratado de Comércio Livre (TCL) com os EUA.

Essa legislação foi uma catadupa de decretos-lei contra a organização comunal de indígenas da serra e da selva que impede a pilhagem imperialista e abriu as portas à depredação da natureza com o envenenamento dos rios, a esterilização do solo com o monocultivo agroindustrial com utilização de agroquímicos e o derrube da selva com a extração de hidrocarbonetos e madeira.

Por falta de espaço não poderei fazer uma análise desses decretos-lei, quem o desejar deve procurar outras fontes.

Reação indígena

Naturalmente, os indígenas da serra e da selva reagiram contra esse ataque e desencadearam muitas lutas corajosas.

Mas é inquestionável que os indígenas menos contaminados, os que conservam melhor os princípios indígenas de amor pela natureza, de coletivismo, de “mandar obedecendo”, de “viver bem”, são os amazômicos, que estão à cabeça das lutas.

A maior organização dos indígenas amazômicos é a Associação Interétnica da Selva Peruana (AIDESEP) que tem bases no norte, no centro e no sul da amazômia peruana.

Exige a anulação dos decretos-lei que afetam as suas vidas através da contaminação dos rios e o derrube de árvores dos bosques.

O seu método de luta consiste na interrupção das vias de transporte terrestre, na interrupção do transporte fluvial, muito utilizado pelas empresas multinacionais, na ocupação de instalações, e dos campos de aviação. Quando chega a repressão, recuam e denunciam que o que o governo quer é repressão em vez de diálogo.

m Agosto do ano passado obtiveram uma vitória conseguindo que o congresso anulasse dois decretos-lei antiamazômicos.

Este ano iniciaram a luta a 9 de Abril. O governo utilizou artimanhas para evitar discutir com eles. E com outras artimanhas impediu que o parlamento discutisse a inconstitucionalidade de um decreto-lei que a comissão parlamentar, encarregada de o estudar, considerou anticonstitucional.

5 de Junho

Alan Garcia escolheu o 5 de Junho, dia mundial do meio ambiente, para descarregar a sua raiva anti-ecológica contra os defensores da Amazômia.

Utilizou o corpo de polícia especializado na repressão dos movimento sociais, a Direcção de Operações Especiais (DIROES).

Foram atacados os irmãos awajun e wampis que estavam a bloquear a estrada perto da povoação de Bagua. Às 5 da manhã começou o massacre por meio de helicópteros e por terra. Não se sabe quantos são os mortos. Os polícias não autorizaram a assistência aos feridos, aos que eram presos, nem a recolha dos cadáveres pelos familiares.

Dou a palavra a Juan, que esteve em Bagua:

Por questões puramente laborais, tive ontem a oportunidade e o “privilégio” de estar durante algumas horas nas cidades de Bagua Chica e Bagua Grande, o ambiente que se respira é tenebroso, as “histórias” que se contam são macabras e mesmo inverosímeis, mas as pessoas que as contam são pessoas que viveram o terror, são testemunhas privilegiadas da outra realidade que o Peru oficial e os meios de comunicação estão a tentar esconder, porque tive a oportunidade de ver diversos repórteres dos canais 2, 4, 5, 7, 9, etc. etc. mas não se disse nada sobre o que as pessoas, testemunhas presenciais, repetem com insistência e mesmo com cansaço sobre a matança que ocorreu na sexta-feira, dia 5.

Dizem os habitantes de Bagua, praticamente todos com quem conversei, que após os confrontos, e controlada a situação, os cadáveres dos nativos ficaram espalhados por toda a estrada e nas imediações da Curva del Diablo, a polícia assumiu o controlo, declarou de imediato a hora de recolher, começou a empilhar os cadáveres, a cremação foi feita em plena estrada, outros foram levados para locais indeterminados, desconhecidos, metidos em bolsas e transportados para os helicópteros da polícia que, em número de 3, apoiaram a operação. Muitos destes cadáveres de humildes peruanos foram lançados aos rios Marañón e Utcubamba, os mestiços de Bagua Chica e Bagua Grande calculam um mínimo de 200 a 300 mortos civis.

Diz-se que os homens não choram ou não devem chorar, sou um homem de facto e de direito, na minha vida só chorei em três ocasiões, quando morreram os meus pais e dois dos meus irmãos mais velhos, mas ontem à noite quando vi a reportagem de inimigos íntimos e recordando aquilo de que fui testemunha durante a tarde de ontem, confesso que me pus a chorar como uma criança.

Para mim não há distinção entre mortos bons e maus, tanto nativos como polícias, são seres humanos, os únicos culpados deste terrível crime contra a humanidade são os políticos, muito especialmente a APRA e os fujimoristas.

Amigos e compatriotas, não fiquemos indiferentes à dor dos nossos irmãos nativos amazômicos, façamos chegar o nosso protesto aos meios de comunicação que manipulam, escondem e distorcem as informações, exijamos que os responsáveis políticos do governos aprista sejam punidos, que os decretos sejam anulados na sua totalidade!!! Já!!!

Muito obrigado por terem lido a minha experiência.

 

A Associação Pró Direitos Humanos (APRODEH) noticia: “Familiares e amigos procuram pessoas que poderão estar refugiadas. Procuram-nas em Bagua Grande, Bagua Chica e no quartel militar El Milagro e não as encontram”. Chama a atenção para “a pouca ou nenhuma informação que as autoridades dão aos familiares”. Além disso, a APRODEH informou da existência de 133 detidos e de 189 feridos.

Referiu também que as pessoas detidas no quartel El Milagro, se encontram nesta instalação militar desde há 7 dias sem um papel de detenção que justifique essa privação da liberdade. Comprovaram-se maus tratos a alguns dos detidos.

Os irmãos amazômicos defenderam-se com lanças e flechas; depois usaram as armas retiradas aos agressores. A raiva fez com que ocupassem uma instalação petrolífera em que capturaram um grupo de polícias que foram levados para a selva, e executaram alguns deles.

A população mestiça urbana de Bagua, indignada com o massacre, assaltou o local da APRA, o partido do governo e escritórios públicos, queimando veículos. A polícia assassinou vários moradores, entre eles crianças.

O governo decretou a suspensão de direitos e hora de recolher a partir das 3 da tarde. Auxiliados por estas medidas, os polícias entraram nas casas para capturar nativos nelas refugiados. Muitos deles tiveram que refugiar-se na igreja.

Não se sabe o número de presos e estes não podem ter ajuda de advogados.

Referem-se centenas de desaparecidos.

Solidariedade

Felizmente a solidariedade é comovente.

No Peru organizou-se uma frente de solidariedade.

No dia 11 houve manifestações de protesto pelo massacre em diversas cidades do país: em Lima, que tradicionalmente se encontra de costas viradas para o Peru profundo, referem-se 4000 pessoas, que fizeram a marcha sob a ameaça de 2500 polícias, houve confronto perto do local do congresso da república. Em Arequipa, mais de 6 mil, na zona de La Joya, bloquearam a estrada Panamericana. Em Puno houve paralisação de actividades, foi atacada a sede do partido do governo. Houve manifestações em Piura, Chiclayo, Tarapoto, Pucallpa, Cusco, Moquegua e muitas outras cidades.

No estrangeiro, são numerosas as ações de protesto em frente das embaixadas peruanas, temos notícias de Nova Iorque, Los Angeles, Madrid, Barcelona, Paris, Grécia, Montreal, Costa Rica, Bélgica, entre outras

A encarregada de assuntos indígenas da ONU fez ouvir a sua voz de protesto.

A Corte Interamericana dos Direitos Humanos também se manifestou.

Há periódicos estrangeiros que denunciam o massacre, como La Jornada de México.

A cólera aumenta com as declarações de Alan Garcia à imprensa europeia de que os nativos não são cidadãos de primeira categoria.

A selva continua em movimento em Yurimaguas, na zona Machiguenga del Cusco e noutras regiões.

Os irmãos amazômicos e os que os apoiam exigem a anulação dos decretos-lei 1090. 1064 e outros, que abrem as portas à depredação da selva.

Apesar de a comissão do parlamento, encarregada do assunto, ser a fvor da anulação de alguns decretos-lei por serem anticonstitucionais, a câmara optou por não os discutir e declará-los “em suspenso”, como queria a APRA. Sete congressistas que protestaram por esta irregularidade foram suspensos por 120 dias, de modo que a ultra direita do parlamento (APRA, Unida Nacional e o fujimorismo) terá nas mãos a eleição da próxima mesa diretiva do parlamento.

O governo criou uma “mesa de diálogo” onde está excluído o organismo representativo dos indígenas amazômicos, a AIDESEP, cujo dirigente teve que se refugiar na embaixada da Nicarágua, pois o governo acusa-o dos crimes de 5 de Junho ordenados por Alan García.

A luta amazômica vai continuar, exigindo respeito pela selva.

Os nativos amazômicos sabem que o que está em disputa é a sua própria sobrevivência.

Esperamos que a população mundial tome consciência de que eles estão a lutar em defesa de toda a espécie humana, já que a selva amazômica é o pulmão do mundo.

Nota:
5 de Junho: Dia mundial do Meio Ambiente. 5 de Junho de 2009: Alan García massacra os defensores do Meio Ambiente.

* Hugo Blanco é membro do Conselho Editorial de SINPERMISO.

Este texto foi publicado em www.sinpermiso.info

Tradução de Margarida Ferreira, para odiario.info

O Diario.info