Stédile explica a reforma agrária popular do MST
Sem contar no Brasil com uma burguesia empenhada numa reforma capitalista, nem com uma revolução que permita uma reforma agrária socialista, o Movimento dos Sem-Terra luta por "uma reforma agrária que chamamos de popular, que se diferencia das duas". A explicação é de João Pedro Stédile, da coordenação do MST, em longa entrevista ao Uol Notícias.
Publicado 15/08/2009 19:22
A entrevista foi um fatigante exercício de pega-pega. O entrevistador, Guilherme Balza, instruído para confrontar Stédile com o governo Lula, perseguiu diligentemente o objetivo, pergunta após pergunta. Enquanto o líder sem-terra tratava de toureá-lo, equilibrando-se entre a ciosa defesa da independência do movimento e a decisão de não se deixar manipular.
Na hora de editar a entrevista, prevaleceu a intenção do dono do portal: o título escolhido foi Reforma agrária regrediu no governo Lula, diz Stédile – coisa que o entrevistado não disse. Pelo contrário, afirmou que "há aspectos que melhoraram muito". O internauta atento poderá constatar o duelo, vendo aqui a íntegra do que foi publicado no Uol.
UOL Notícias – Na quarta-feira (12), houve uma reunião entre representantes do sem-terra e dos ministérios, na qual o governo afirmou desconhecer a pauta de reivindicações do MST, muitas delas já apresentadas ao presidente Lula em 2005. O senhor acha que o governo Lula é realmente melhor para os sem-terra ou é apenas aparência?
João Pedro Stédile – Na audiência havia cinco ministérios. Evidentemente que nem o Palácio do Planalto, e muito menos o ministro da Reforma Agrária (Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário), disseram que desconheciam a pauta. Quem disse que desconhecia foi o ministério da Fazenda e do Planejamento, porque não é a área deles.
Agora, o ponto mais negativo da conversa não foi isso. O ponto mais negativo é que o Ministério da Fazenda abriu o jogo, disse que a crise é grave, que a arrecadação diminuiu entre 30 e 50% nesse primeiro semestre e que o governo tem dificuldades de recompor o orçamento do Incra, porque eles cortaram pela metade o orçamento de R$ 958 milhões destinado a obtenção de terras. Então, nossa reivindicação principal agora é que o governo, como um todo, determine que o Ministério da Fazenda recomponha o orçamento do Incra. Eu ouvi pessoalmente o ministro Paulo Bernardo (Planejamento) se comprometendo que não haveria cortes nos orçamentos relativos à pequena agricultura. Portanto, temos o compromisso da palavra dele e do presidente Lula de que não haveria cortes sociais.
Por isso insistimos que o presidente enquadre o Ministério da Fazenda e mande repor o orçamento do Incra, até porque está na lei orçamentária aprovada no Congresso. Não estamos pedindo nada a mais do que cumprir a lei e não acreditamos que não tenha dinheiro no Ministério da Fazenda. Porque para outros setores da sociedade, como indústria automobilística, desoneraram o IPI – o que representou um custo de cerca de 20 bilhões -, desoneraram o depósito à vista dos bancos, o que representou R$ 80 bilhões dos cofres dos bancos. Portanto nós não estamos convencidos de que [o governo] não tenha dinheiro. O que não tem é dinheiro para a reforma agrária e para a pequena agricultura.
UOL Notícias – Qual o balanço que o senhor faz dos dois mandatos de Lula com relação a questões sociais e agrárias?
Stédile – O governo Lula, como ele mesmo gosta de comparar, é muito parecido com o do Getúlio Vargas. É um governo de composição de classes. Ao longo desses sete anos, ele adotou uma política que agradou gregos e troianos. Ou seja, ele, com sua política econômica, beneficiou os banqueiros, os grandes grupos transnacionais, e, ao mesmo tempo, fez políticas de assistência social, como o Bolsa Família, Prouni, [promoveu] a valorização do salário mínimo, aumentou os recursos para o Pronaf, o que atendeu a uma parcela mais pobre da sociedade brasileira.
Agora, em relação à reforma agrária e à pequena agricultura, o governo Lula está em dívida. Porque na reforma agrária não tem como você compactuar latifundiário com sem-terra. Um dos dois tem que perder. E, infelizmente, o número de desapropriações de fazendas, em especial na região Nordeste e nas regiões Sudeste e Sul, que são as regiões mais agrícolas, as desapropriações foram menores do que no governo Fernando Henrique Cardoso. O atual governo repetiu uma tática que o Jugmann (Raul Jungmann, ministro extraordinário da Reforma Agrária no governo Fernando Henrique) fazia: para manter as estatísticas, fizeram projetos de colonização na Amazônia. Pegaram terras públicas e distribuíram, e com isso mantiveram as estatísticas. Mas, na verdade, o que vem acontecendo no Brasil nos últimos 10 anos é que há um violento processo de concentração da propriedade da terra. Ou seja, é um movimento contra a reforma agrária. Em vez de nós estarmos democratizando a propriedade da terra, dando acesso a mais gente e criando mais oportunidade de trabalho para que as pessoas não venham para a cidade, nesses últimos anos nós sofremos um processo de concentração, justamente por essa ineficácia do governo Lula em desapropriar fazendas nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul.
UOL Notícias – O MST é criticado por setores da esquerda e da opinião pública por suposto abrandamento das ações e da postura durante o governo Lula. O que o senhor pensa disso?
Stédile – Isso é uma manipulação ideológica. Tanto pela direita, quanto pela esquerda. Porque se você pegar as estatísticas, nós nunca fizemos tantas ocupações quanto agora, então setores da esquerda, tipo Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas) e o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), dizem que nós ficamos chapa branca e o editoral do Estadão diz que por causa do governo Lula nós viramos sem-lei.
Então, claro, cada um interpreta da sua maneira, mas nós estamos com a consciência tranquila, o nosso papel é ser um movimento que faz luta social, e a luta social nós aumentamos, e ao mesmo tempo nós temos autonomia do governo. Desafio alguém dizer que o MST segue as orientações do PT, PCdoB, ou de qualquer outro partido, do PSOL, desafio alguém a provar que o MST é refém das medidas do governo. Tanto que nessa semana acabamos de ocupar o Ministério da Fazenda e neste momento estamos com manifestações em 12 Estados, vários Incras ocupados, porque nós queremos que se resolvam os problemas concretos do povo. Se o nosso objetivo fosse ser bom para a opinião pública nós tínhamos fundado uma banda de rock.
UOL Notícias – Recentemente o senhor afirmou que a Dilma Rousseff é ignorante em questões rurais. Por quê?
Stédile – A formação técnica dela é na área de energia. Ela é uma economista tipicamente urbana. Eu acho que ela está preparada para essas questões mais amplas. E quando eu me referi a isso, foi num debate no Incra justamente no dia em que o governo cortou 48% do orçamento para a reforma agrária. E eu disse, como uma reação natural, de que um governo, em uma crise dessa, que toma uma decisão que corta 48% da verba para a reforma agrária, é um governo ignorante, que não sabe que a reforma agrária poderia ser um dos principais instrumentos, e mais baratos, para conter a crise no meio rural. Essa crise que afetou a produção de soja, algodão e milho, diminuiu o preço das commodities, diminuiu a taxa de lucro dos fazendeiros, e quem pagou a conta foram os trabalhadores assalariados rurais. Cerca de 300 mil trabalhadores perderam o trabalho. Para onde eles foram? Para a cidade. Alguns já moravam na periferia das cidades. E foram fazer bico. Ora, se o governo quer arrefecer as consequências da crise no meio rural, ele poderia imediatamente acelerar, aumentar até o orçamento da reforma agrária para dar terra a esses 300 mil trabalhadores que ficaram sem emprego no campo.
UOL Notícias – Nessa mesma época, segundo notícias veiculadas na imprensa, a Casa Civil e o Planalto teriam buscado se aproximar dos movimentos sociais por conta de uma possível candidatura da Dilma. Houve essa aproximação?
Stédile – Nós percebemos que o Partido dos Trabalhadores (PT), do qual ela é filiada, multiplicou reuniões de consulta aos movimentos, como partido, não como candidatura. Assim como outros [partidos]. Nós, MST, como somos um movimento social que zela pela autonomia em relação ao governo, ao Estado, aos partidos e à religião, estamos muito à vontade, porque nós conversamos com todos os partidos. Conversamos com PDT – eu mesmo sou muito amigo do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) -, com o PCB, PCdoB, e PMDB. Nós temos ótimas relações com o governador [Roberto] Requião no Paraná. Conversar e ter diálogo faz parte da democracia. Não significa se subordinar. E essa é a política do MST e que os movimentos sociais em geral vão adotar. De diálogo, conversações, sem subordinação.
UOL Notícias – Entre Dilma e Lula, quem busca mais diálogo com os movimentos e qual dos dois é mais alinhado ao agronegócio?
Stédile – Isso são questões mais pessoais. Evidentemente que o presidente Lula tem uma história mais vinculada. Ele é fruto do reascenso do movimento de massas, que houve de 1978 até 1990. E por isso que se construiu todo esse carisma em torno da sua pessoa, o que a Dilma não tem. É claro que ele tem mais projeção entre movimentos sociais e entre os pobres do campo.
Agora, a relação do governo com o agronegócio não depende de carisma pessoal, de comportamento pessoal, nem de conhecimento. A relação com o agronegócio vai depender de como vai evoluir a luta de classes no Brasil. Eu acredito que nos próximos anos nós precisamos e teremos um grande debate na sociedade brasileira em torno de um novo modelo de produção de alimentos e de agricultura. Porque o modelo do agronegócio está falido. É um modelo que só interessa a empresas transnacionais e a exportações. E, cobra como fatura do povo brasileiro, uma degradação ambiental. Não é à toa que o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Na safra passada, jogamos 713 milhões de toneladas de veneno sobre o nosso solo, a nossa água e os nossos alimentos. O agronegócio é o modelo de produção que expulsa mão-de-obra porque adota a mecanização intensiva. Então não há lugar para camponeses e para os pobres nesse modelo.
O resultado de tudo isso é que pode até aumentar as exportações, mas pro mercado interno aumenta cada vez mais a produção de alimentos contaminados. Então, eu acredito que a população da cidade, que é quem está comendo esses alimentos contaminados, quem está sentindo um aumento do câncer, e está sentindo na pele a conseqüência desse processo, assim como os ambientalistas, serão os aliados do MST para nós mudarmos o modelo agrícola e fortalecemos outro modelo baseado na reforma agrária e na agricultura familiar.
UOL Notícias – Já que o senhor falou dos ambientalistas, a senadora Marina Silva pode se desfiliar do PT e concorrer à presidência pelo PV. O que o senhor pensa disso?
Stédile – Eu vou te dar uma opinião pessoal porque o fato é muito recente e nós não conversamos nos coletivos do MST. Pessoalmente eu vejo com muito bons olhos, com muita simpatia. Porque nós vivemos em uma sociedade democrática e quanto mais candidatos a presidente houver, melhor. Porque isso gera debate na sociedade. E um dos problemas que nós temos daqui até 2010 é a necessidade de debater projetos para sociedade. Não basta apenas debater candidaturas e partidos. E o pior dos cenários que nós podemos ter para a democracia brasileira e para o projeto de sociedade é se nós chegarmos a uma conjuntura eleitoral de que a decisão se defina apenas entre Dilma e Serra no primeiro turno.
Por isso, pessoalmente, mesmo sendo filiado ao PT, vejo com muita simpatia que haja outras candidaturas porque isso vai oxigenar a política brasileira e obrigar a se fazer um debate não de nomes, mas sim de projetos. Então, uma candidatura da Marina vai trazer para o debate um projeto que ela defende. Com o enfoque muito maior à sustentabilidade do meio ambiente, à produção de alimentos sadios, à preservação da Amazônia, que é a região dela, e isso que é importante, é debater. O número de votos é o de menos.
UOL Notícias – Temos a chance de ter três mulheres disputando a eleição com possibilidade de alcançar grande eleitorado: Heloísa Helena pelo PSOL, Dilma pelo PT, e possivelmente a Marina Silva pelo PV. Considerando a história de cada uma, o senhor estaria mais inclinado a apoiar qual em uma eleição?
Stédile – Eu acho que o problema não é em quem votar. Eu acho que nós, como movimento social e com militantes, devemos estimular sempre o debate político. O debate de projetos. Então vamos esperar. Não é só julgar as pessoas e as suas biografias. Se nós ficássemos julgando a biografia dos parlamentares, 70% deles não deveria estar no Congresso. No entanto o povo vota neles. Então, eu prefiro defender a ideia de que tenham mais candidatas e candidatos e que nós aproveitemos bem essa pluralidade de ideias para daqui até outubro de 2010 nós dedicarmos o máximo de tempo para debater projetos.
UOL Notícias – Sob o ponto de vista dos sem-terra, a situação agrária no Brasil evoluiu ou continua praticamente igual a de 1996, quando houve o massacre de Eldorado dos Carajás e o movimento ganhou projeção?
João Pedro Stédile – Há aspectos que melhoraram muito, como, por exemplo, a criação do programa Luz Para Todos, que praticamente universalizou o acesso à energia elétrica. Há outros aspectos que pioraram, como as condições de trabalho, as relações trabalhistas, a existência de trabalho escravo. Melhorou o nível de violência dos conflitos. Antigamente havia muito mais assassinatos, os fazendeiros eram mais prepotentes, queriam resolver tudo no tiro. Isso não significa que nós deixamos de ser reprimidos, mas agora a repressão é judiciária. É mais uma perseguição política ao MST e às suas lideranças.
Do ponto de vista da organização da produção, eu acho que a situação piorou. Ainda somos reféns de 15 anos de neoliberalismo, que conseguiu impor ao Brasil esse modelo do agronegócio. Isso é um desastre para os nossos recursos naturais, para o meio ambiente, para a produção de alimentos. Recentemente a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) divulgou uma pesquisa não recomendando o consumo de 20 produtos e não aconteceu nada. Se fossemos uma sociedade mais organizada, o consumo desses produtos seria proibido. Mas é preciso criar condições para produzir alimentos saudáveis. E isso só em um outro modelo agrícola, baseado na agroecologia, na pluricultura.
Hoje, a pequena agricultura perdeu espaço e as empresas transnacionais tomaram conta. Em cada segmento da produção agrícola, a produção se concentrou de tal maneira que nós temos quatro ou cinco empresas transnacionais controlando tudo. Nós regredimos do ponto de vista da soberania alimentar e do controle da nossa agricultura.
UOL Notícias – Em 25 anos, no que o MST evoluiu, no que regrediu, o que precisa mudar, quais são as maiores dificuldades que vocês enfrentam e quais os desafios?
Stédile – Evoluímos em muitos aspectos internos. Em convênio com o Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), já formamos mais de 3.000 filhos de camponeses em cursos superiores. Temos atualmente mais de 3.500 frequentando universidades e mais de 300 companheiros fazendo pós-graduação, mestrado e doutorado. Isso é um avanço para a nossa organização, porque nos demos conta de que o conhecimento é fundamental para você construir uma sociedade democrática e, sobretudo, para resolver os problemas concretos.
O MST investiu muito na educação da sua militância e da sua base. O que é uma novidade. Porque não havia essa tradição nos movimentos camponeses nem no Brasil, nem no mundo.
Nós avançamos muito e digo isso com uma autocrítica porque há seis, dez anos atrás nós não dávamos bola para a agroecologia, achávamos que era coisa de ambientalista. Quando começamos perceber a gravidade da produção agrícola, as consequências dos agrotóxicos, do monocultivo, é que fizemos uma autocrítica e adotamos a agroecologia. Avançamos também no sentido de valorizar a cultura camponesa. O MST hoje tem vários pontos de cultura, estimulamos o teatro, fizemos convênios com o Teatro do Oprimido, do [Augusto] Boal, com o Ministério da Cultura, passamos filmes no interior…
UOL Notícias – E os desafios?
Stédile – Os desafios ainda são enormes. Hoje não se trata mais de descobrir qual é o latifundiário atrasado e ocupar a fazenda dele. O latifúndio se modernizou porque se vinculou às empresas multinacionais e adotou o agronegócio.
Vamos pegar o exemplo do banco Opportunity. O Daniel Dantas comprou 600 mil hectares no Pará, em 52 fazendas, onde ele cria mais de 450 mil bois. Para que um banco precisa de terra? Quando nós começamos a ocupar essas fazendas, nós enfrentamos um banco que, segundo relatório da Polícia Federal, é testa de ferro do Citigroup. Então, quando se ocupa uma fazenda do Dantas, não é só de um fazendeiro atrasado do Pará. Se enfrenta o capital financeiro instalado na avenida Paulista (em São Paulo). E eles têm tentáculos nos meios de comunicação, como a IstoÉ, [que] é do Dantas, do banco Opportunity. Então, a IstoÉ, na outra semana após a ocupação, na capa, nos chama de bandidos, terroristas etc.
Em São Paulo, antigamente nós ocupávamos uma área de pecuária extensiva, no Pontal [do Paranapanema]. Hoje, as melhores áreas produtivas se transformaram em monocultivo da cana. E de quem é a maior fazenda de cana aqui em São Paulo com 100 mil hectares? Da usina comprada pela Cargill. Então, quanto nós vamos lá nos manifestar contra o monocultivo da cana, estamos enfrentando a Cargill, que é o maior grupo mundial de grãos. Essa é a mudança na correlação de forças que prejudicou muito os camponeses. E daí vem a necessidade de fazer uma reforma agrária não mais só ocupando a terra, mas com a mudança de modelo econômico.
UOL Notícias – Eu gostaria que o senhor comentasse a política agrária dos dois últimos governos do Estado São Paulo, de José Serra e Geraldo Alckmin (ambos do PSDB)?
Stédile – A minha atuação é mais em nível nacional. Embora eu more aqui em São Paulo, não acompanho as questões mais relativas aos Estado. São outros companheiros que acompanham isso. Pelo o que sei, os dois governos foram apenas apoio ao processo de expansão do agronegócio, sobretudo da expansão monocultivo da cana, que é lamentável. Nós esperamos que algum dia eles se deem conta que temos que urgentemente mudar o modelo agrícola, até porque o modelo do monocultivo da cana traz conseqüências graves no equilíbrio climático e afeta as populações das cidades.
Na região de Ribeirão Preto, que hoje já virou monopólio da cana, tem pesquisas da USP (Universidade de São Paulo) que [mostram que] nos últimos 20 anos a temperatura aumentou 2ºC na média. A prefeitura de Ribeirão já tem problemas porque ela capta água do lençol freático do aquífero Guarani para abastecer a população. A cada ano eles têm que aprofundar ainda mais a captação porque o monocultivo da cana suga muita água. Então falta abastecimento de água para a população por causa do modelo agrícola. Isso é de responsabilidade do governo estadual. Então, faço até como um apelo para que o governo de SP fique mais alerta sobre as consequências que o atual modelo agrícola traz para a população em geral.
UOL Notícias – O que o senhor pensa da crise do Senado?
Stédile – A crise do Senado é o espelho mais verdadeiro possível da forma como a classe dominante brasileira trata os bens públicos e a democracia. Eles são o espelho disso. Eles tratam as coisas públicas como se fossem propriedade privada e tratam a opinião pública com escárnio.
Por isso, eu acho que a melhor solução para o Senado é aquela que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) já está defendendo, que na próxima Constituinte nós eliminemos o Senado da sociedade brasileira. Nossa sociedade não precisa do Senado. Basta uma Câmara dos Deputados. E ainda mais representativa, com, em vez de 500 deputados, mil. Na Câmara também tem que haver uma proporcionalidade [de deputados] mais adequada. O voto daquele que mora no Acre ou no Amazonas vale 20 vezes mais do que o voto de um cara que vota em São Paulo. Isso é uma distorção na democracia, na qual cada pessoa representa um voto. E essas questões que envolvem a federação dos Estados poderiam ser resolvidas em um conselho da República, que não precisasse de tanto dinheiro. Quem pode imaginar que o Senado gasta hoje R$ 2 bilhões por ano? Isso não tem necessidade nenhuma. Porém, mais do que isso, é preciso fortalecer outros mecanismos da democracia brasileira, que certamente não passam pelo Senado.
UOL Notícias – É possível pensar em um projeto de esquerda para o Brasil, ou vislumbrar uma sociedade mais justa e igualitária, por meio das instituições democráticas que temos hoje?
Stédile – Claro. Há um debate na sociedade que se aglutina em quatro campos: alguns setores das elites, das classes dominantes, defendem a subordinação total do Brasil ao capital internacional. Aí estão os 5% mais ricos, as empresas transnacionais, os bancos, que são os que defendem políticas neoliberais e que, nos partidos, tem sua expressão, sobretudo, entre os tucanos e entre o DEM; temos um setor nacionalista, que está presente em todos os partidos, que defende um projeto "neo-keynesiano" para o Brasil, com algumas políticas de distribuição de renda, redução da taxa de juros e fortalecimento do mercado interno; há outros setores da esquerda brasileira, mais radicais, como correntes do PSOL e do PSTU, que defendem o "socialismo já". Eles acreditam que o capitalismo já chegou a sua maioridade aqui no Brasil e que não há outra saída sem o socialismo. Só que a palavra socialismo é muito forte. Significa socialização da propriedade dos meios de produção. Não é apenas você ser socialista no sentido humanista, ser socialista por querer uma sociedade mais justa.
Nós, dos movimentos sociais, defendemos um quarto projeto, que chamamos de projeto popular, que é, nos marcos da nossa sociedade, fortalecermos de fato o Estado para que ele adote uma política econômica que leve ao desenvolvimento do país em benefício do povo. Quais são os problemas fundamentais do povo no Brasil? Desemprego alto, falta de moradia, necessidade de reforma agrária e ausência de educação. Então, [nós defendemos] um programa para a sociedade que coloque o dinheiro público como prioridade para resolver os problemas do povo. Mas não basta colocar no papel "esse é o nosso projeto". É preciso construir, acumular forças populares que atuem para a implementação desse projeto.
UOL Notícias – Esse projeto popular é um caminho para uma sociedade socialista?
Stédile – Ele é fundamental. Ele seria uma espécie de transição para nós construirmos uma sociedade mais igualitária. Primeiro vamos resolver os problemas fundamentais da população. Que é comida, trabalho, moradia e educação. Depois, podemos avançar para a socialização de outros meios de produção da nossa sociedade.
UOL Notícias – Qual é o modelo de reforma agrária defendido hoje pelo MST?
Stédile – Na história das reformas agrárias, há dois tipos clássicos. Primeiro, a reforma agrária capitalista, que todos os países do hemisfério norte fizeram entre a metade do século 19 e ao longo do século 20 até a Segunda Guerra Mundial. E eles fizeram as reformas agrárias clássicas capitalistas distribuindo a propriedade da terra para fortalecer o mercado interno e desenvolver a indústria nacional. Depois houve uma outra reforma agrária clássica, que aconteceu no bojo de revoluções socialistas, ou de revoluções populares, como no Vietnã, China, Rússia, Nicarágua e Cuba.
Qual é a realidade hoje no Brasil? Nós tentamos desde o início do movimento defender uma reforma agrária clássica capitalista, mas não há forças acumuladas burguesas que queiram essa reforma. Por isso que o governo não faz reforma agrária. Quem fez as reformas agrárias capitalistas? Foram as burguesias industriais, que queriam desenvolver o mercado interno e a indústria.
Também seria uma ilusão achar que a solução seria uma reforma agrária socialista, porque essa reforma só acontece depois de uma revolução. Ela é casada com um processo revolucionário, que não é o que temos hoje no Brasil.
O que nós propomos é uma reforma agrária que chamamos de popular, que se diferencia das duas. Nessa reforma não basta distribuir terra, como na reforma capitalista. É necessário também desenvolver agroindústrias na forma cooperativa, criar pequenas agroindústrias nos assentamentos. Assim, o agricultor sai mais rápido da pobreza, porque daí ele não vai só produzir matéria prima, mas também se apropriar do valor agregado dos produtos e gerar emprego no meio rural.
Fonte: UOL Notícias