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A batalha de Glauber e Malle: Leão de Ouro ou “leoa de merda”?

Veneza sedia agora outro festival, Louis Malle tem a parte documental de sua obra exibida pelo corrente É Tudo Verdade/Mostras Especiais, Glauber Rocha está neste fim de semana ao centro de nosso programa no Canal Brasil, como diretor de Amazonas, Amazonas (1965) e personagem de De Glauber para Jirges (2005). Há 29 anos Malle e Glauber digladiavam-se na última grande polêmica pública do cineasta baiano, exatamente no Lido veneziano.

Por Amir Labaki, no Valor Econômico

Atlantic City de Malle, ao lado de Glória de John Cassavetes, bateu A Idade da Terra de Glauber na primeira disputa pelo Leão de Ouro de Veneza em 12 anos. O diretor brasileiro sentiu-se traído. “Fui percebendo que Veneza não era um festival que reestruturava os caminhos do cinema revolucionário”, confessou no calor da hora a Pedro Del Picchia, enviado da Folha de S. Paulo.

Segundo ele, o festival se reposicionava como plataforma de lançamento dentro da Europa do grande cinema industrial, Hollywood à frente. Glauber abriu fogo. “Quem acabou ganhando foi um diretor de segunda classe, conhecido como diretor de segunda classe, que é Louis Malle. E eu cheguei a dizer isso a ele mesmo. Em resposta, o Malle me disse que meu filme era financiado pela Embrafilme, pelo governo brasileiro, que é fascista. Ele veio de dedo em riste para cima de mim e neste momento, no saguão do Hotel Excelsior, eu levantei a mão para bater na cara dele e fui apartado. Mas eu lhe disse: ‘Ô Malle, você e a nouvelle vague sempre foram um negócio servil sub-hollywoodiano. Você realmente merece, não o Leão de Ouro, mas uma leoa de merda”.

Ironia da história: o irmão de Malle, Vincent, tentara produzir, cinco anos antes, um projeto glauberiano primo no escopo mitológico de A Idade da Terra. Ambos roteiros foram escritos por Glauber no mesmo período. Sob o título O Nascimento dos Deuses, o projeto seria co-financiado pela TV italiana RAI, que o exibiria como série. A inspiração principal eram os escritos do historiador grego Xenofonte (430-335 a.C.) sobre a ascensão e queda dos impérios persa e grego, tendo entre os protagonistas os imperadores Ciro I e II, os filósofos Sócrates e Platão e o próprio Xenofonte.

Numa carta a Zelito Viana, o próprio Glauber aproximava os dois roteiros: “Diante dessas circunstâncias (um filme sobre as antigas civilizações do Ocidente/Grécia e Oriente/Ásia Menor) transferi A Idade da Terra por este novo Deus e o Diabo nos desertos do Saara — é um filme de cangaceiros. Paulo Martins e Xenofonte, Ciro I e Lampião e Ciro II. (…) O que me interessa é desmistificar as mitologias greco-orientais, mostrar que por trás do Olympo e Templos reinava o patriarcalismo escravocrata, primeira solidificação do capitalismo”.

Formalmente Glauber já planejava o que só realizaria em A Idade da Terra: “levar ao máximo a radicalização linguística e a estética revolucionária popular”. De dois episódios, Vincent se propunha a extrair um longa-metragem, Ciro da Pérsia. As negociações empacaram quando cresceu o número de partes envolvidas – até o então Xá do Irã, Reza Pahlevi, foi contatado por Vincent e demonstrara interesse. O Nascimento dos Deuses jamais foi filmado; seu roteiro foi publicado na Itália, mas nunca no Brasil.

O próprio Louis Malle me contou, em 1993, dessa parceria frustrada entre seu irmão e Glauber. Falou com carinho do diretor de A Idade da Terra, a quem conhecera nos anos 1960. Malle descreveu afetuosamente o embate veneziano. “Estávamos ambos hospedados no Hotel Excelsior. O filme de Glauber não foi bem recebido pelos críticos. As pessoas não entendiam, de repente, o filme era uma espécie de homenagem ao regime militar. Não me lembro dos detalhes. Glauber era em geral amado pelos críticos do mundo inteiro. Ele teve uma entrevista coletiva em que ficou muito nervoso e começou a atacar cineastas como eu e John Cassavetes — e acabamos por dividir o Leão de Ouro. Glauber disse que eu tinha ido a Hollywood e virara um verdadeiro capitalista. É claro que não fiquei contente com aquilo”.

“Soube depois na França que a imprensa brasileira fez um grande barulho sobre isso, mas no resto do mundo a imprensa levou em conta o contexto”, prosseguiu Malle. “Um dia depois, mais ou menos, eu estava voltando ao meu quarto, tarde da noite, e vi Glauber andando pelo corredor, embalando um bebê e cantando para ele. Olhei para Glauber e ele para mim e tivemos uma pequena conversa. Foi a última vez que o vi. Na manhã seguinte voltei a Paris e ele morreu pouco depois. Minha última imagem de Glauber foi bela”. Assim era Malle.