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Boal em livro: reflexões errantes sobre vida e arte

Poucos dias antes de ser internado no Hospital Samaritano, no Rio, onde morreria em 2 de maio, Augusto Boal (1931-2009) entregou a última versão de A Estética do Oprimido (Garamond, 256 págs., R$ 45), publicação em que sistematizou os fundamentos de seu teatro e de sua visão de mundo. O dramaturgo, que tinha 78 anos e sofria de leucemia, vinha reunindo seus pensamentos desde o início da década, e os colaboradores volta e meia recebiam a "versão final" do livro.

A morte fez com que ele não pudesse mais mudar seu texto, que foi lançado no Teatro de Arena Eugênio Kusnet por seus companheiros do Centro de Teatro do Oprimido. Ali está uma série de "reflexões errantes sobre o pensamento do ponto de vista estético, e não científico", como diz o subtítulo, que Boal, pesquisador dedicado, desenvolveu durante toda a vida, mas nunca reuniu.

Parte já estava em O Arco-Íris do Desejo, que tem "o método Boal de teatro e terapia", e Jogos para Atores e Não-Atores, que traz exercícios que podem ajudar gente de todas as áreas. "Este livro era fundamental para ele. Ali estão as diretrizes. É como se ele dissesse: aquilo tudo que eu falei durante anos está aqui", explica Helen Sarapeck, coordenadora geral do CTO, já com 23 anos de vida.

"Como é possível defender a multiplicidade cultural e, ao mesmo tempo, a ideia de que existe apenas uma estética, válida para todos? Seria o mesmo que defender a democracia e, ao mesmo tempo, a ditadura", diz Boal logo na abertura da primeira parte, que fala do pensamento simbólico – pelo qual o homem formula estratégias para solucionar problemas – e do pensamento sensível – que produz arte e cultura, sendo uma "arma" dos oprimidos, segundo ele, contra a "estética anestésica" (a qual visa à sua dominação pelas classes dominantes).

O autor fala de cidadania, ética, moral, solidariedade, subjetividade da arte, metáfora. Ao fim, o livro reúne fotos de espetáculos realizados por grupos que utilizam os fundamentos do Teatro do Oprimido, que tem em sua sede na Lapa, no Rio, um centro de pesquisa e difusão.

O Teatro do Oprimido, que foi fundado por Boal primeiro em Paris, em 1979, e cujo método, 30 anos depois, está espalhado por vários cantos do mundo (América Latina, Europa, Ásia, África), tem como pressupostos: a falta de separação entre palco e plateia (os chamados "espect-atores"), entre o espetáculo e a vida real, e entre os artistas e os não-artistas.

Para Boal, "ser humano é ser artista", e "a pior forma de analfabetismo é a cega e muda surdez estética", que "aliena o indivíduo da produção da sua arte e da sua cultura" e "vulnerabiliza a cidadania".A linguagem do livro é simples. Sempre que ministrava seminários, Boal, engenheiro químico por formação, que acabou por se tornar teatrólogo, diretor e ensaísta, se certificava de que o que falava era bem compreendido.

"À primeira leitura, tem gente que pensa: ih, mas esse negócio é difícil! Mas depois tudo fica simples. O tom do Boal é coloquial", diz Helen, que se recorda do mestre como um incansável, mesmo com o avançar da doença. "Ele não se preocupava, não parava de pensar, criar, trabalhar. Mesmo no hospital, estava com o laptop. Em cada visita que fazíamos, perguntava logo como estava andando um determinado projeto. Agora, a vida dele continua por intermédio de quem pratica suas ideias."

Fonte: O Estado de S.Paulo