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América Latina: ''O isolamento regional está em declive''

O analista internacional Pascal Boniface avalia que a América Latina está ocupando um novo lugar no mundo, saindo de um isolamento anterior. Para ele, a região ingressou em um círculo virtuoso em que se sobressaem o desenvolvimento econômico e a estabilização econômica.

Pascal Boniface é para a análise das relações internacionais uma fonte de clareza e de pertinência. O diretor do IRIS, Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, chega nestes dias a Buenos Aires para oferecer uma série de conferências sobre a ordem internacional, a estratégia nas crises e nos conflitos, a nova administração norte-americana e a evolução da relação de forças depois da crise financeira do ano passado.

Boniface escreveu mais de 40 livros sobre questões estratégicas internacionais – Oriente Médio, armas nucleares etc. – e duas sobre outra de suas paixões, o futebol, sempre visto sob sua dimensão estratégica e internacional: "La Tierra es redonda como una pelota. La geopolítica del fútbol" [A Terra é redonda como uma bola. A geopolítica do futebol], de 2002, e "Fútbol y globalización", de 2006.

A instituição que dirige, o IRIS, é um dos centros mais sólidos de análise internacional. Nesta entrevista, Pascal Boniface relocaliza a América Latina no novo lugar que ela está ocupando no mundo, constata o fracasso da comunidade internacional no Afeganistão e no conflito israelense-palestino e lamenta que a expressão "comunidade internacional" careça de sentido. Veja abaixo a entrevista concedida ao Página 12.

O presidente e prêmio Nobel da Paz, Barack Obama, é saudado em todo o mundo por suas posições conciliatórias. No entanto, na América Latina, e em uma região de forte influência norte-americana como a América Central, herdamos um golpe de Estado em Honduras. Por acaso a extensão da crise hondurenha não revela a existência de uma corrente golpista no seio do aparato norte-americano?

Acredito que Obama tem uma relação muito diferente com a América Latina do que a que não só o seu antecessor, George Bush, tinha, mas sim todos os seus antecessores, com exceção de Jimmy Carter nos anos 70 e 80. A relação de Obama com a América Latina é semelhante a que o ex-presidente Mikhail Gorbachev – ex-URSS – teve com os países do Leste Europeu. O presidente Obama respeita sinceramente a soberania dos países latino-americanos. Parece-me que é o último cravo posto sobre o túmulo da doutrina Monroe – política que buscou fazer da América Latina um grupo privado de Washington.

Não vejo Obama organizando direta ou indiretamente uma intervenção armada em um país latino-americano para se opôr a um poder que não lhe satisfaz. No entanto, é certo que Obama não fez a pressão suficiente para que o golpe de Estado em Honduras termine e que não pôs em jogo tudo o poderia ter feito para restabelecer a legalidade constitucional em Honduras.

Pois bem, pergunto-me se por acaso só os Estados Unidos poderiam mudar a situação. Constato igualmente que os demais países latino-americanos também não empregaram todos os meios para dar término ao golpe. A comunidade latino-americana não pôde impedir que o golpe de Estado se produzisse e se estendesse.

Na análise global da relação de forças na cena internacional, como a América Latina se situa? Talvez como um mundo muito distante e aparte, esse Extremo Ocidente do qual falava o diplomata e ensaísta francês Alain Rouquié, ou talvez em um lugar de prestígio renovado, semelhante ao que a Argentina teve nos primeiros 50 anos do século XX?

A América Latina parece ter ingressado em um círculo virtuoso em que se sobressai o desenvolvimento econômico e a estabilização política. Já não são mais as armas que acompanham a tomada do poder, mas sim as urnas. Durante muitos anos, viu-se a América Latina através do prisma guerrilha-ditadura. Hoje estamos assistindo a emergência do continente.

A globalização torna muito mais difícil a postura do Extremo Ocidente. O isolamento deixou de ser possível e desejado. Durante muito tempo, os países latino-americanos viveram felizes com o seu isolamento, porque tinham suas políticas protecionistas, tanto em termos políticos como econômicos. Esse parênteses se fechou. Além disso, o peso relativo da América Latina mostra – e o Brasil é um exemplo emergente – porcentagens de crescimento importantes.

Acredito que a América Latina não escapará de suas responsabilidades e que, por conseguinte, terá uma participação mais forte, mais ativa, no governo do mundo, e isso tanto no plano estratégico como no econômico.

O isolamento ou o afastamento latino-americano está em declive. A presença latino-americana no mundo será mais forte e visível no futuro. Hoje existem instrumentos de cooperação regional que permitem que a América Latina tenha peso, e não de forma fragmentada, mas sim unida. O esforço de cooperação e integração, que tem o mérito de deixar intactas as identidades nacionais, permitirá que a América Latina, e de forma coletiva, influa no mundo.

No caso do Brasil, se poderia fazer uma comparação semelhante ao papel que a Alemanha desempenhou como motor da economia europeia? O Brasil é uma potência que se instala cada vez mais na cena internacional. Não é perigosa uma potência capaz de dominar boa parte do continente?

Perigoso ou não, as coisas ocorrem sem que sejam decididas. Por exemplo, a questão do peso relativo. Nesse caso, a Alemanha, desde a reunificação, tem um peso relativo muito mais importante na Europa. O mesmo ocorre com o Brasil, cujo peso demográfico e econômico é mais importante.

Agora, destaco que nós não temos uma Europa alemã, mas sim uma Alemanha europeia. A Alemanha, ao mesmo tempo em que recuperou sua plena soberania com a reunificação e retirou as inibições que arrastava há muitos anos, recuperou sua autonomia sem que isso se traduza por uma vontade de dominação. Tenho o sentimento de que, neste momento, o Brasil não dá a impressão de querer esmagar seus vizinhos.

O espinho debaixo do pé da América Latina é a Colômbia, um país que exporta seus conflitos (guerrilhas, narcotráfico, paramilitares) e que depois se apresenta como vítima. Para muitos analistas, a Colômbia está se tornando uma espécie de Israel da América Latina. Qual seria a estratégia conjuntar para integrar Bogotá em um sistema de relações menos conflitivo?

Efetivamente, a Colômbia, além de um espinho, é um país aparte. A Colômbia vai na contracorrente do conjunto dos países latino-americanos. De alguma forma, é um dos últimos países pró-Bush. Mas não estou certo de que possa continuar na contracorrente durante muito tempo.

Vemos como a Justiça internacional está se imiscuindo nos assuntos colombianos. Talvez, seja o começo de um processo. Mas sim pode-se dizer que o peso dos paramilitares foi penalizante para o país, e que a Colômbia conhece uma fase de violência social e política há 50 anos. Só podemos desejar que os progressos da Justiça internacional, o entorno regional, a nova administração norte-americana e a conscientização da sociedade colombiana desemboquem em progressos e em uma nova relação de Bogotá com seus vizinhos imediatos.

Em contexto muito diferente, duas das grandes crises mundiais vigentes, o Afeganistão e o conflito israelense-palestino, ficaram fechadas em um fracasso permanente. Fracasso militar no Afeganistão, fracasso diplomático no conflito israelense-palestino.

No Afeganistão, o que acontece é que uma presença militar estrangeira, mesmo se no começo foi vista como um exército de libertação, rapidamente passou a ser percebida como um exército de ocupação. Essas tropas estrangeiras têm um comportamento que a população afegã julga agressivo. Em suma, o transplante não funcionou.

Podemos dizer que estamos em um caminho sem saída na medida em que a OTAN não pode sair vencida militarmente pelos talibãs. Mas também não vejo como, a curto ou médio prazo, a OTAN poderia vencer os talibãs.

Fala-se de "afeganizar" a guerra, o que poderia ser uma solução, mas ainda falta encontrar um governo afegão que seja sólido, sério e não corrupto. Com o governo de Hamid Karzai, esse não é o caso. Mas dado o que aconteceu com o segundo turno das eleições presidenciais, que foi anulada, não se pode apostar em uma racionalização do governo afegão.

Que estratégia o governo Obama poderia adotar nessas condições?

Temo que só haja más soluções, e é preciso escolher a que seja menos pior. Talvez, seja preciso manter a presença no Afeganistão ao mesmo tempo em que se capacita o exército afegão e, com certeza, exercer pressões mais sólidas sobre o presidente Karzai para que se reforme. Claro, cada vez que se faz uma observação ao mandatário, se denuncia a ingerência estrangeira e se joga a carta da independência nacional, o que é engraçado, porque, se as forças estrangeiras deixassem o país, Karzai não resistiria no poder mais de 48 horas.

O conflito israelense-palestino se aproxima de outro abismo com o anúncio da renúncia do presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, a partir do mês de janeiro. Um aliado interno vai embora empurrado pelos fracassos nas negociações com Israel.

Enquanto não houver uma autêntica pressão sobre Israel, o governo atual não negociará. Com muita habilidade, o primeiro-ministro israelense resistiu às demandas de congelamento da colonização. Mahmud Abbas tirou então as consequências do fracasso de sua estratégia: quis negociar com os israelenses mediante o apoio dos norte-americanos, mas não fez nenhum progresso concreto.

A retirada israelense da Faixa de Gaza ocorreu de forma unilateral. Acredito que se os norte-americanos não retiverem Mahmud Abbas, ele vai se retirar. A pressão exterior em torno de Israel não foi suficiente para que o governo israelense, que é o executivo mais à direita da história de Israel, negocie com seriedade.

Os israelenses dizem há anos que não podiam negociar com Arafat, porque ele era um terrorista, mas também não negociaram com Abbas, que não se apresentou como um terrorista. Foi um pretexto. Os israelenses têm o sentimento ilusório de que o tempo joga a seu favor, e que a política do fato consumado será frutífera.

Por que ilusório?

Israel não está deslocalizado, Israel vive no Oriente Médio, rodeado de países árabes onde a causa palestina torna-se cada dia mais um elemento de coesão do mundo árabe.

Fonte: Página 12
Tradução de Moisés Sbardelotto