Sem categoria

Célio Turino fala sobre a revolução dos Pontos de Cultura

O historiador Célio Turino, secretário de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura (SCC/MinC), está lançando o livro “Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima”, sobre a experiência de cinco anos à frente do Programa Cultura Viva, cuja principal ação são os Pontos de Cultura, entidades culturais da sociedade civil que recebem recursos para desenvolverem as suas ações.

Pontos de Cultura - Kleber Fragoso (SCC/MinC)

O Brasil tem cerca de 2,5 mil Pontos de Cultura, com 150 deles na Bahia. Turino, 48, concedeu a entrevista durante o Seminário Internacional Cultura Viva, entre os dias 18 e 21 de novembro, em Pirenópolis (GO), uma bela região de montanhas e cachoeiras, e falou, entre outros tópicos, sobre as experiências pioneiras na Bahia “que vão desde a cultura tradicional, como o Grão de Luz e Griô, de Lençóis, que transmite a cultura oral, até a vanguarda da cultura digital, como os Índios Online”, afirmou o paulistano, pai de duas filhas e dois netos.

O evento em Pirenópolis reuniu intelectuais, gestores públicos e representantes de Pontos de Cultura de todo o país para fazer um retrato do programa. “Ainda precisamos avançar muito. Um burocrata, um administrador de Brasília tem que aprender a conversar com um menino do Hip Hop”, afirmou.

Marco Gramacho- São Paulo ainda concentra os recursos voltados para a cultura. Por quê?
Célio Turino – Em números absolutos, São Paulo é o que mais tem mais Pontos de Cultura, com cerca de 450 pontos. A Bahia tem cerca de 150. O governo do Estado está propondo a implantação de mais 80 pontos, o que vai dar 230 pontos na Bahia. A população da Bahia é bem menor do que a do estado de São Paulo.
Então relativamente, a Bahia é um dos estados que mais têm Pontos de Cultura. Sempre nos pautamos por essa preocupação de uma equitativa distribuição de pontos desde o primeiro edital em 2004. Fazíamos uma equação que levava em conta a densidade populacional, a proporção de projetos vindos de cada e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Com isso, criamos um padrão de equilíbrio. Para sair desse caminho de aplicação de recursos públicos, especialmente, na cultura. Até 2002, o único meio de política cultural no país era uma redução de impostos terrível, mas era isso. A Lei Roaunet, via renúncia fiscal, que fazia assim, hoje um pouco menos, uma concetração enorme de recursos. O eixo Rio/São Paulo, não são nem as cidades, mas alguns bairros, que concentravam mais de 70% dos recursos.
Praticamente toda a captação de recursos da Lei Roaunet para a cultura ficaram concentradas nessas capitais. Com políticas como o Ponto de Cultura, e agora outros como o Juca Ferreira está apresentando, o Vale Cultura, vamos descentralizando um pouco mais.

MG – Uma das maiores críticas ao programa são os entraves burocráticos. Muitas entidades culturais não conseguem tornar-se Ponto de Cultura por conta disso. O que o senhor acha disso?
CT- Tenho até um capítulo no livro sobre isso, intitulado “Não é fácil”. O título já diz um pouco do meu entedimento sobre o assunto. Em primeiro lugar a sociedade raramente é ouvida. Quando é atendida pelo estado ou não é atendida ou é atendida através do critério da falta, da carência, da vulnerabilidade. Os Pontos de Cultura invertem esse jogo. Buscamos a potência e o fortalecimento da sociedade. Eu diria que, de um lado, a sociedade vai aprendendo, se empoderando, nos mecanismos do Estado, mas por outro lado, o Estado não está preparado para se relacionar com a sociedade dessa forma.
O Estado tem no máximo um caráter assistencialista. Não digo apenas o Estado brasileiro, mas o Estado de uma maneira geral. O Estado de bem estar social, que surgiu na Europa depois da Segunda Guerra Mundial, também é assim, segue uma lógica da vulnerabilidade, da falta. Fazemos o contrário. O que tem ocorrido é um exercício de civilização e construção de uma nova forma de Estado. É claro que ainda é uma brecha pequena. Ainda precisamos avançar muito. Inclusive escancarando essas contradições. Não temos que ter medo de escancarar os nossos limites, explicitá-los. Um burocrata, um administrador de Brasília tem que aprender a conversar com um menino do Hip Hop.

MG – O senhor teme que, com uma possível mudança de governo, o programa deixe de existir?
CT- Essa tem sido uma preocupação desde o primeiro momento. O programa Cultura Viva foi escrito em duas noites. Antes até que eu assumisse, quando fui convidado pelo Juca Ferreira, primeiro para assumir o cargo de secretário de Programas e Projetos do Ministério da Cultura e depois secretário de Cidadania Cultural, ele me deu uma missão de reformular uma proposta de democratização e acesso a cultura que estava muito focada na construção física de centros culturais pré-moldados e o Brasil é muito grande para ficar tudo igualzinho.
O que eu fiz foi tirar o foco da estrutura e olhar mais para o fluxo, para o pulsante. Até porque cultura é isso. É pulsação, é vida. São as pessoas que fazem. Não é o governo. E para que a cultura aconteça é necessário que a sociedade, as pessoas sejam fortalecidas. Entre a formulação e o lançamento do primeiro edital dos Pontos de Cultura, foram 45 dias. Foi tudo muito rápido. E sempre tivemos essa preocupação de consolidar, de criar instrumentos de perenização. Tanto que o convênio de Ponto de Cultura é trienal. E eu defendo que ele seja renovado constatemente. Porque a cultura é um processo contínuo. E permite que os grupos culturais possam se planejar, desenvolver seu trabalho.
O recurso é de R$ 60 mil por ano, mas as necessidades de uma comunidade exige muito mais do que isso. Mas pelo menos o Ponto de Cultura tem uma base para se planejar e garantir o seu trabalho contínuo. Num primeiro momento, fizemos um convênio com o ministério diretamente. Depois com o programa Mais Cultura, que foi criado em 2007, demos um salto, que foi esse processo de descentralização dos Pontos de Cultura, colocando-os dentro do Sistema Nacional de Cultura. Na prática, a primeira experiência do Sistema Nacional de Cultura no país tem sido a descentralização dos Pontos de Cultura via editais estaduais, compartilhando recursos.

MG – A Bahia também faz parte desta estadualização?
CT – Sim. O governo federal está trabalhando com governos estaduais e municípios grandes. A exemplo do edital da Bahia, que totaliza R$ 27 milhões. Mas 18 milhoes são do governo federal e nove milhões, do estadual. É um dinheiro novo. É uma co-responsabilização. O processo de seleção ficou mais descentralizado, mais próximo da realidade local. O processo de acompanhamento também. Tudo isso é uma garantia de que o programa está virando algo mais estável. Para além disso, é necessário que vire uma lei.
Eu penso numa lei da autonomia e do protagonismo sócio-cultural do povo brasileiro. Uma Lei Cultura Viva. Não penso que ela deveria ser formulada por um governo, nem por um parlamentar. Acho que para ser coerente com todo esse processo de baixo para cima, essa lei deveria vir dos próprios pontos, da sociedade. com coleta de assinaturas. Uma lei de iniciativa popular. Tem ocorrido alguns outros passos.
Os Pontos de Cultura são reconhecidos internacionalmente. Em outubro, eu fui ao Congresso de Cultura Ibero-americana, em São Paulo, formado por países latino-americanos, mais Espanha e Portugal, que teve como resolução implantar Pontos de Cultura em seus países como política pública. Está na mesa do Mercosul projeto de lei para a criação e implantação de Pontos de Cultura na Argentina, Paraguai e Uruguai. São estes mecanismos que vão garantir de fato a permanência dos Pontos de Cultura.

MG- O livro é um balanço da sua experiência como admistrador público na área de cultura. Como foi essa nova união entre o Estado e a cultura brasileira?
CT – “Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima” é um livro que eu escrevi ao longo dos meus cinco anos de trabalho na Secretaria de Cidadania Cultural, estando responsável pela formulação e implantação dos Pontos de Cultura e todo o Programa Cultura Viva. São relatos de viagem e também reflexões filosóficas e uma apresentação mais conceitual dos fundamentos do programa e é ao mesmo tempo um mergulho em mim mesmo. Ao longo desse processo em que fui ouvindo as histórias dos outros, eu também fui descobrindo a minha própria história como pessoa.
Falo de três sujeitos – ainda que escreva sempre na primeira pessoa. Falo do Célio gestor público, o Célio historiador, intelectual, pensador sobre o assunto e eu mesmo. São capítulos que se entremeiam. Alguns mais curtos com pequenas histórias e outros mais extensos, mais teóricos. Mesmo nesses mais teóricos, procurei preencher com exemplos concretos.

MG – Que experiências na Bahia o senhor destacaria?
CT – Algumas experiências da Bahia são paradigmas. Viraram ações do programa, a exemplo da experiência dos Grãos de Luz e Griô, de Lençóis. Trats-se de uma ação voltada para a transmissão da cultura oral, do conhecimento dos mestres, e que hoje é uma ação nacional.
Também a experiência dos Índios On Line que, apesar de ser uma rede envolvendo boa parte do Nordeste, também nasceu na Bahia. Temos experiências significativas no estado, que vão desde a cultura tradicional até a vanguarda da cultura digital, como os Índios Online.
Trabalhamos com software livre, como a Eletrocooperativa , que fica no Pelourinho. Eles também fizeram uma sede em São Paulo. Também estivemos ainda em 2005 um edital experimental de Pontos de Cultura e capoeira, que também nasceu a partir da Bahia. Uma aldeia indígena, como os índios Tupinambás, que eram tidos como extintos desde o século 18 e que hoje ressurgem com toda a força e exuberância são um exemplo da retomada de cidadania. Aqui mesmo no seminário temos uma baiana, a Yakuy Tupinambá, que tem 49 anos e faz Direito na UFBA, e é a própria expressão desse movimento da etnogênese. Há 20 anos as estatísticas apontavam para menos de 300 mil indígenas no Brasil. Agora com a próxima pesquisa do IBGE em 2010 vão ser apontados perto de um milhão de indígenas.
Por quê isso? As pessoas passaram a ter orgulho de ser definidas como índios. E começam a colocar os seus cocares, a pintar o rosto de uma forma moderna, renovada. Todo esse processo, que às vezes, os grandes centros não percebem e mesmo o poder instituído, digamos da academia, da grande mídia, da política, não tem um olhar para isso. Fui escrevendo e mergulhando nesse trabalho com esse olhar. Apurando o ouvido, o olhar.
Um poema que gosto muito do Gilberto Freire, que é um protesto. Ele escreveu isso em 1927 e três anos depois houve a Revolução de 1930. Eu utilizaria ainda hoje no nosso processo de mudança. Eu sinto os passos/ eu ouço as vozes/ eu vejo as cores/ de um novo Brasil que vem por aí. O livro tenta mostrar um pouco isso que eu vi e que quero compartilhar com as pessoas.

MG – O que faz esse programa diferente?
CT – São histórias como a dos meninos de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. Depois de fazerem uma turnê artística com Milton Nascimento, deveriam receber um cachê de R$ 2 mil. Como o Vale do Jequitinhonha não tinha nenhum cinema, muito menos na cidade deles, eles decidiram juntar o dinheiro e oferecer como contrapartida e fizeram um convênio do Ponto de Cultura. E com isso deram um presente à cidade. O aspecto fundamental que vemos na macro-política é justamente transformar o público em privado, o chamado patrimonialismo. O que esses meninos fizeram foi o oposto. Foi de uma generosidade, uma doação extrema. Mas não é um fato isolado.
Vi centenas de experiências deste tipo nas mais de 600 viagens que fiz pelo Brasil. Mostramos que está brotando por baixo um outro Brasil. Muito mais solidário. Muito mais criativo. O povo brasileiro é muito judiado. A relação social apesar disso se manteve num outro grau de convivência. Temos um povo feliz e criativo. Recentemente houve uma pesquisa com turistas estrangeiros sobre o Brasil e muito mais do que as belezas naturais o ponto mais positivo apontado foi o povo brasileiro.
A solidariedade popular permitiu que o país avançasse como civilização. Eu diria que uma das conclusões do livro é que está brotando uma nova forma de sociedade. E que nasceu silenciosamente por baixo, de forma escondida, e que hoje iniciativas como os pontos de cultura começa a florescer com força.

MG – O que se fala do programa é essa aproximação da sociedade civil com o estado. O senhor poderia falar mais sobre isso?
CT – Inclusive tivemos aqui no seminário professores da Universidade de Berkley, na Califórnia, e da Universidade de Londres, entre outras, e o que tem chamado a atenção desses pesquisadores e de governos estrangeiros para a experiência dos Pontos de Cultura é o método de gestão, o que temos praticado é o conceito de Estado rede.
Eu diria que nesta dimensão eu não conheço outra experiência no mundo. É uma forma de gestão compartilhada, de caráter transformador. Muito mais leve, mas nem por isso menos presente. Ao contrário, o Estado está presente em todos os cantos. Estamos na cidade de Marechal Taumaturgo, na fronteira com o Peru. Estamos em pequenas cidades do interior da Bahia. O Ponto de Cultura está presente de uma outra forma. Não é o governo fazendo para a sociedade, mas é o governo fortalecendo os meios para que a própria sociedade realize a sua emancipação, se empodere, faça isso com autonomia, com protagonismo. São as características essenciais do programa e que podem ir além de uma política pública de cultura. Por quê não trabalharmos nessa perspectiva em políticas ambientais e educação?

MG – O que está errado com a educação no país?
CT – Não é necessária muita análise para ver que a educação formal não tem sido eficiente. A educação formal deveria ser reprovada como reprova tanto os seus alunos. Porque ela reprime, ela impede a realização da potência dos jovens. Nos tempos de hoje eles vão na revelação da potência, na construção de outra forma de realização humana, que tem esse caráter mais emancipado. Quando falo da educação, há várias experiências nesse sentido, como a Cidade Educadora.
Anísio Teixeira, educador baiano, já trabalhava nesta perspectiva na Escola Parque. O que fazemos nos pontos é um pouco isso. É a aproximação do ponto à escola. Porque a educação não acontece na escola. O que temos na escola é formatação. A educação tem que ser percebida como um processo permanente, para toda vida. E que acontece em todo lugar, para todas as idades. No livro falo de experiências que vão neste sentido.

MG – O programa tem revelado novos talentos na cultura?
CT – Muita gente acha que os Pontos de Cultura são um programa de inclusão social pela cultura ou de cultura popular. Não de forma negativa. Até apoiando. Mas de uma forma superficial acham isso. E não é. Os pontos são um programa de cultura. Creio que para dar um salto integral é preciso unir esses elementos: a ética, a estética e a economia. No livro, eu chego a essas formulações do que é cultura.
Cultura para mim vem acompanhada de três “e”: ética, estética e economia. E eu percebo que essa movimentação estética tem ocorrido. Talvez como florescimento de renovação da cultura brasileira, que integra linguagens, percepções, a exemplo do rapper Rapadura, de Ceilândia (DF), que mistura maracatu com Hip Hop, com uma pegada nova.
Tem o lançamento do CD Causnavial, do Jorge Mautner, com o Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. É algo que vale a pena os críticos de arte observarem. Eu gosto muito de música popular brasileira e penso que os grandes nomes da música brasileira já estão com 60 anos de idade. Não houve tanta renovação. Falta aquela ebulição dos anos 60 novamente.
É como a água, que em determinadas condições de pressão e temperatura, ela sai do estado líquido e vai para o gasoso, ou para o sólido. Depende do momento. E acho que ainda vamos chegar a ele. Acho que estamos perto. E quando ocorrer essa ebulição critativa, aí as mudanças sociais vêm acompanhadas de uma força muito maior, porque elas saem do racional. Migram da defesa de determinados interesses e tocam valores e sentimentos.

Fonte: Programa Cultura Viva