A estrela Dalva brilha como nunca

A recente minissérie Dalva e Herivelto, ainda rende algumas polêmicas. Praça Onze venceu a eterna Amélia? Neste artigo, o autor afirma, ao contrário do que foi mostrado na TV, que o histórico concurso de carnaval ocorrido na sede do Fluminense terminou em empate.

A estrela Dalva brilha como nunca

Estou ciente de que filmes, obras de teledramaturgia e biografias romanceadas não guardam qualquer compromisso com a chamada “verdade histórica”, mesmo quando se propõem a narrar a vida de personagens famosos. Mas o recurso ilimitado a “licenças poéticas”, ainda que ofereçam boas soluções dramáticas, acabam por confundir as informações na cabeça dos espectadores, sobretudo quando os fatos narrados se perdem nas névoas de um passado remoto. Razão por que, sem intenção de crítica destrutiva, algumas situações mostradas na minissérie “Dalva e Herivelto”, com texto elaborado pela competente Maria Adelaide Amaral, merecem pequenas correções, a fim de que não se perpetue, na memória popular, uma versão equivocada dos fatos.

O principal equívoco me parece a competição, no carnaval de 1942, entre “Ai, que saudade da Amélia” (“Nunca vi fazer tanta exigência / Nem fazer o que você me faz / Você não sabe o que é consciência / Não vê que eu sou um pobre rapaz”), da dupla Ataulfo Alves-Mário Lago, e “Praça Onze” (“Vão acabar com a praça Onze / Não vai haver mais escola de samba, não vai / (…) Guardai os vossos pandeiros, guardai / Porque a escola de samba não sai”), de Herivelto Martins e Grande Otelo.

Deixo claro, desde logo, que “Praça Onze” NÃO venceu “Amélia” no concurso de músicas de carnaval daquele ano.

A história dos dois sambas é conhecida, mas vou resumir. “Praça Onze” resultou de um longo parto, decorrente da insistência de Grande Otelo, que garatujou meia dúzia de versos a propósito da anunciada destruição da histórica Praça Onze e suas adjacências, para construção de uma grande avenida destinada a se tornar a principal via de comunicação entre a Zona Norte e a Zona Sul, passando pelo Centro (não existiam os túneis Santa Bárbara e Rebouças).

Ao contrário do que a minissérie dá a entender, a artéria projetada ainda não tinha o nome do presidente Vargas, então chefe do Estado Novo. Somente depois de pronta é que se anunciou que receberia o nome do estadista. Tanto em 1945, quando Vargas foi deposto, como em 1964, quando se proclamou “o fim da Era Vargas”, pensou-se em trocar o nome da avenida. Em ambas as ocasiões não deu em nada. Teria sido apenas uma vingança mesquinha.

Durante meses Otelo insistiu no tema, mas Herivelto achava que não dava e só se resolveu a fazer uma melodia (mudando muito a letra de Otelo) para se ver livre da chateação de ter Grande Otelo nos calcanhares cobrando a música. E, no futuro, jamais reconheceu a parceria de Grande Otelo (depoimento de Pery Ribeiro).

“Ai, que saudade da Amélia” foi inspirada em uma empregada de Araci de Almeida (Amélia dos Santos Ferreira, falecida em 2001, aos 91 anos). O irmão de Araci, o baterista Almeidinha, parece ter tido um caso com a moça, porque, sempre que alguém falava em mulher, lá vinha o Almeidinha com o eterno refrão: “Ah, a Amélia! Aquilo sim é que era mulher! Lavava, passava, engomava, cozinhava, apanhava e não reclamava!!” (depoimento de Mário Lago à revista “Radiolândia’, 1953).

Como se vê, Mário Lago (autor da letra) aproveitou uma frase inteira de Almeidinha: “Aquilo sim é que era mulher!” Apesar das sugestões de Araci, nenhum compositor se interessava pelo tema. Até que Mário Lago levou o assunto a sério e fez uma letra.

Ninguém quis gravar “Amélia”, mesmo sendo Ataulfo um nome já consagrado e vencedor dos dois carnavais anteriores (“Oh, seu Oscar!”, 1940, e “O Bonde São Januário”, 1941, ambos na voz de Ciro Monteiro). Nem Carlos Galhardo, que costumava gravar os sambas de Ataulfo (“Sei que é covardia”, “Atire a primeira pedra”), quis saber de “Amélia”: “Não dá, Ataulfo, isso é música para acompanhar enterro”, disse ele, referindo-se ao andamento cadenciado da melodia.

Ataulfo resolveu gravar ele mesmo (até então era mais compositor) e foi à luta.

Exatamente nesse ano o Fluminense decidiu promover um concurso de músicas de carnaval no seu estádio. Foi lá que se desenrolou a batalha entre “Praça Onze” e “Amélia”, diante das sociais e arquibancadas repletas de um público extremamente entusiasmado.

Até então, “Praça Onze” era considerada uma “barbada”. Mas, como se sabe, mineiro trabalha em silêncio. E a dupla Ataulfo e Mário Lago vinha “trabalhando” intensamente o seu samba nas rádios e em bailes pré-carnavalescos. Nas rádios, Mário Lago escrevia uma crônica diária, que ia ao ar sempre no horário do almoço, narrando o cotidiano de Amélia, apresentada como uma mulher pobre, infeliz, vítima de abusos do marido, que a maltratava e a deixava sem o dinheiro das compra. Aquilo foi mexendo com o coração dos ouvintes.

No dia do concurso, em meio a outros concorrentes de peso, como “Sandália de Prata”, gravada por Francisco Alves, o maior vencedor de carnavais de todos os tempos (no mínimo um sucesso em cada carnaval), o antológico “Emília” (Wilson Batista e Haroldo Lobo), gravado por Vassourinha, “Nega do cabelo duro” e “Dolores”, ambas defendidas pelos Anjos do Inferno, as duas melodias se destacaram. Note-se que houve absoluto domínio dos sambas no carnaval de 1942, com poucas marchas dignas de nota.

Herivelto preparou uma “mise-en-scène” para ninguém botar defeito: para acompanhar o Trio de Ouro (ele, Dalva e Nilo Chagas), organizou o que chamou uma “escola de samba de bolso”, recrutando cabrochas e ritmistas que conhecia de suas andanças pelos morros e dando um toque de originalidade ao comandá-los por meio de um apito, que marcava as evoluções e a coreografia do grupo. Com total destaque para a cabrocha Jupira, uma moreneza digna de uma tela de Di Cavalcanti, que dizia no pé e nas cadeiras como ninguém (vivida pela mulata sestrosa que apareceu no segundo capítulo, não sei se chegaram a citar o nome). Tudo novidade — o samba ainda não havia caído no gosto da classe média, como veio a ocorrer nos anos 60 e 70. Herivelto, sem dúvida, era muito bom nessas inovações.

Para culminar, Herivelto fez a magnífica Jupira se apresentar como porta-bandeira, empunhando como estandarte nada mais nada menos que uma bandeira do Fluminense. Uma covardia, tendo em vista que o julgamento das músicas seria feito por sócios do clube tricolor. O estádio foi ao delírio. “Praça Onze” arrebentou.

Mário Lago conta (“Na Rolança do Tempo”) que julgou a parada perdida: “Perdemos, Ataulfo”, comentou com o parceiro. Estava difícil. Ataulfo se apresentaria acompanhado por sua “academia de samba” (mais tarde, passou a se chamar Ataulfo Alves e Suas Pastoras). Na verdade, a “escola de samba de bolso” de Herivelto era uma resposta à “academia de samba” de Ataulfo, que já havia gravado com o compositor mineiro, inclusive “Amélia”. O problema, porém — é ainda Mário Lago que conta —, é que as “pastoras” de Ataulfo “não sacolejavam como Jupira”, limitando-se ao acompanhamento vocal.

Mas, com uma calma “exasperantemente mineira”, Ataulfo não desistiu. Tanto quanto o rival, havia preparado minuciosamente sua apresentação. De repente, uma tempestade de aplausos. Mário Lago pensou que eram para o Trio de Ouro e o grupo de sambistas, que ainda se retiravam do palco. Mas não eram. O apresentador Héber de Bôscoli (criador do programa “Trem da Alegria”) havia acabado de anunciar “Ai, que saudade da Amélia”.

Mais surpreendido ficou Mário Lago quando Ataulfo o chamou ao palco, para ler a crônica sobre Amélia que fora levada ao ar naquele dia no programa de Júlio Lousada (o famoso criador da “Oração da Ave-Maria”). Feita a leitura, Ataulfo convocou suas “pastoras” ao palco e deu início à apresentação do samba. A “academia de samba” era bem mais modesta que a “escola de samba” de Herivelto, mas bastou para fazer o público se empolgar novamente.

E agora? Passo a palavra ao mestre Sérgio Cabral:

“Quem merecia a vitória? A plateia recebera os dois sambas com o mesmo entusiasmo e a própria comissão julgadora não sabia qual deles escolher. A solução foi encontrada pelo próprio presidente do Fluminense, Marcos Carneiro de Mendonça (o antigo e extraordinário goleiro do Fluminense e da seleção brasileira), que decidiu por um empate, autorizando a liberação pelo clube de mais um prêmio de 500 mil-reis.” [grifos meus]

Prossegue Sérgio Cabral:

“Alguns jornais que fizeram a cobertura do concurso elogiaram o resultado e a decisão do presidente do Fluminense, mas nada disso ficou na memória de Herivelto Martins [grifos meus], que, na entrevista concedida a Jonas Vieira e Natalício Norberto para o livro Herivelto Martins: uma escola de samba, afirmou que a vitória fora de Praça Onze. “Ganhei do bom crioulo Ataulfo com sua Amélia e tudo”, acreditava ele”. (Sérgio Cabral, v. Bibliografia).

Possivelmente a autora Maria Adelaide Amaral terá lido o livro de Jonas Vieira e Natalício Norberto, mas não tomou conhecimento da biografia de Ataulfo, lançada em meados do ano de 2009. Daí ter apresentado na minissérie a “vitória” de “Praça Onze” sobre “Ai, que saudade da Amélia” no concurso de músicas carnavalescas de 1942. Vitória que efetivamente não ocorreu.

Mas, como no filme de John Ford, “quando a verdade não corresponder à lenda, publique-se a lenda.”

Adiantando um assunto que abordarei em detalhes mais adiante, observo que há músicas de Herivelto, ou de outros compositores, que foram usadas como pano de fundo, mas não se relacionam diretamente com a época retratada (anos 30 e 40). É o caso de “Neste mesmo lugar”, de Klécius Caldas e Armando Cavalcante, que só veio a ser (magnificamente) gravada por Dalva por volta de 1956.

A temporada na Venezuela com a Cia. Dercy Gonçalves de Revistas, em 1949, foi mal sucedida entre outras razões porque ocorreu um golpe de Estado no país (foi aí que o ditador Marcos Pérez Jiménez assumiu o poder, até ser deposto em 1958). Ao contrário do que foi mostrado, não foi Nilo Chagas que abandonou o Trio de Ouro, e sim Herivelto Martins que deixou Dalva e Nilo, voltando para o Brasil sem maiores explicações (depoimento de Dalva de Oliveira gravado no Museu da Imagem e do Som, referido por João Elísio Fonseca, em seu livro fundamental; corroborado por Pery Ribeiro e Ana Duarte).

Nessa época, Dalva e Herivelto já não viviam como marido e mulher, limitando-se a manter as aparências e apenas preservando a atividade profissional do Trio de Ouro. Ao deixarem o Brasil, Herivelto já dera entrada no processo de desquite. A cena de amor vivida pelo casal na Venezuela, portanto, possivelmente terá sido mera ficção.

Quanto às cenas com a presença de Dercy Gonçalves (Fafy Siqueira), cabe esclarecer que Dercy jamais foi “vedette” de teatro de revista. Já escrevi sobre isto várias vezes e insisto neste ponto. Dercy fazia os chamados números “de cortina”: monólogos ou esquetes no proscênio do palco, com a cortina baixada enquanto o pessoal da técnica montava um novo cenário atrás da cortina. Era a especialidade dela. Improvisava pelo tempo necessário até tudo ficar pronto, inserindo “cacos” e mais “cacos”.

O número mostrado constitui, na verdade, o que se chamava de “número de plateia”, quase sempre feito por “vedettes” de corpos esculturais, como Virgínia Lane ou Mara Rúbia, que desciam do palco e escolhiam cavalheiros, de preferência acompanhados por suas esposas, como alvo de suas brincadeiras. Dercy não era “vedette” à maneira dessas duas, que se exibiam em trajes sumários. Até porque não era.

* Edson Teixeira de Queiroz, diretor cultural do Movimento em Defesa da Economia Nacional.