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Patrick Cockburn: EUA fracassam no Haiti

A ajuda a Haiti conduzida pelos EUA começa a parecer idêntica ao criminosamente lento e desorganizado apoio do governo norte-americano a New Orleans após a devastação pelo furacão Katrina em 2005.

Por Patrick Cockburn*, no The Independent

Há cinco anos, o presidente Bush ficou famoso pelo seu silêncio e distanciamento face à quebra dos diques na Louisiana. Em uma forma de contraste, o presidente Obama prometeu aos haitianos que tudo seria feito pelos sobreviventes nas primeiras horas a seguir à calamidade.

A retórica de Washington foi muito diferente nestes dois desastres, mas o resultado pode bem vir a ser o mesmo. Em ambos os casos, muito pouca ajuda chegou na altura em que era mais necessária e, no caso de Porto Príncipe, quando as pessoas apanhadas debaixo dos edifícios desmoronados ainda estavam vivas.

Quando as equipes estrangeiras de salvamento chegarem com o equipamento pesado de elevação mecânica será tarde demais. Não admira que haitianos em fúria ergam barricadas de pedregulhos e cadáveres.

Em New Orleans e Porto Príncipe existe o mesmo terror "oficial" do saque pelo povo, de forma que a primeira ajuda externa a chegar é sob a forma de soldados armados. Os EUA já têm atualmente 3.500 soldados, 2.200 fuzileiros e 300 técnicos de saúde a caminho do Haiti.

É evidente que haverá saque porque, com as lojas fechadas ou destruídas pelo sismo, é a única maneira de conseguir água e comida. O Haiti é um dos países mais pobres do mundo. Estive em Porto Príncipe em 1994, a última vez que tropas dos EUA aí aterraram, quando as pessoas destruíram sistematicamente as esquadras da polícia, levando madeira, canos e até pregos.

Na esquadra da polícia onde eu estava, houve de repente gritos de alarme dos que estavam no primeiro andar, quando descobriram que não podiam descer porque a escada de madeira tinha sido inteiramente despedaçada e roubada.

Sempre apreciei os haitianos pela sua coragem, resistência, dignidade e originalidade. Conseguem frequentemente evitar o desespero face aos desastres mais esmagadores ou à falta de perspectiva de melhoria para as suas vidas. A sua cultura, especialmente a pintura e a música, está entre as mais interessantes e vibrantes do mundo.

É triste ouvir jornalistas que acorreram ao Haiti no seguimento do tremor de terra darem explicações tão enganosas e mesmo racistas sobre porque são os haitianos tão pobres e vivem em bairros de lata com serviços sanitários mínimos, pouco fornecimento de eletricidade, água potável insuficiente e ruas que se parecem com regatos.

Isto não aconteceu por acidente. No séc. XIX, foi como se as potências coloniais jamais tivessem perdoado aos haitianos terem realizado uma revolta de escravos vitoriosa contra os donos das plantações franceses. Fuzileiros americanos ocuparam o país de 1915 a 1934. Entre 1957 e 1986, os EUA apoiaram Papa Doc e Baby Doc, com medo de poderem ser substituídos por um regime com simpatias pela Cuba revolucionária ali ao lado.

O presidente Jean-Bertrand Aristide, um carismático padre populista, foi derrubado por um golpe militar em 1991 e reinstalado em 1994 com a ajuda dos EUA. Contudo, os americanos sempre desconfiaram de todo o sinal de radicalismo deste porta-voz dos pobres e excluídos e mantiveram-no em rédea curta.

Tolerado pelo presidente Clinton, Aristide foi tratado como um pária pelo governo Bush, que sistematicamente o sabotou durante três anos, levando a uma rebelião vitoriosa em 2004 chefiada por bandidos locais a mando da elite cleptocrática haitiana e apoiada nos EUA por membros do Partido Republicano.

As críticas ao presidente Bush concentraram-se de tal modo nas guerras do Afeganistão e do Iraque, que a sua ação igualmente culposa no Haiti nunca suscitou a condenação. Porém, se o país é hoje um país falhado, em parte governado pela ONU, se é que alguém o governa, deve-o bastante à ação dos americanos ao longo dos anos.

Os haitianos estão agora a pagar o preço da frágil e corrupta estrutura do seu governo, porque não há ninguém para coordenar esforços para a mais rudimentar acção de socorro e salvamento. A sua fraqueza é acentuada pela canalização da ajuda para as ONG’s estrangeiras.

A justificativa para isso é que menos dinheiro será roubado, o que não significa que a maior parte chegue aos haitianos pobres. Há uma azeda piada haitiana dizendo que, quando um ministro haitiano fica com 15 por cento dos fundos de auxílio, chama-se «corrupção» e que, quando uma ONG ou agência de ajuda fica com 50 por cento, se chama “overheads” (custos gerais, N.T.)

Muitos dos programas governamentais de ajuda e ONG’s mais pequenas são dirigidos por gente ativa e desinteressada, mas outra parte, muitas vezes os maiores, são pouco mais do que empresas oportunistas altamente remuneradoras para os que as dirigem.

Em Cabul e Bagdad, é espantoso como os custos das atividades das agências americanas de ajuda têm cumprido tão pouco. «O esbanjamento da ajuda é enorme», disse um antigo diretor do Banco Mundial no Afeganistão. «Há verdadeiro saque, a maior parte por empresas privadas. É um escândalo». Os consultores estrangeiros em Cabul recebem frequentemente de 250 a 500 mil dólares por ano, num país em que 43 por cento da população tenta viver com menos de um dólar por dia.

Nada disto é bom prenúncio para os haitianos que esperam ajuda a curto prazo ou, a longo prazo, uma vida melhor. A única maneira de isso acontecer realmente é os haitianos terem um Estado legítimo, capaz de providenciar solução para as necessidades do seu povo. Nem a tropa dos EUA, nem a burocracia da ONU ou as ONG’s estrangeiras farão isso, no Haiti, ou em qualquer outro sítio.

Não há nada de muito novo nisto. Os americanos perguntam muitas vezes por que a sua ocupação da Alemanha e do Japão em 1945 resultou tão bem, mas mais de meio século depois foi tão desastrosa no Iraque e no Afeganistão. A resposta é que não foram os americanos, mas as eficientes máquinas estatais da Alemanha e do Japão que restauraram os seus países. Onde essa máquina era fraca, como na Itália, a ocupação dos EUA apoiou-se com resultados desastrosos nas elites locais corruptas e incompetentes, muito como hoje acontece no Iraque, no Afeganistão e no Haiti.

* Jornalista irlandês, correspondente do The Independent

Fonte: odiario.info