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Otimismos, incertezas e ziguezague da economia brasileira

O presidente Lula, o ministro da Fazenda Guido Mantega e o presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, fizeram prognósticos para a economia brasileira. Há uma visível contradição entre políticas desenvolvimentistas e macroeconômicas. O assunto merece reflexão.

Por Osvaldo Bertolino

Na abertura dos trabalhos do Legislativo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que as condições macroenômicas do país hoje, apesar da crise global de 2008 e 2009, "são saudáveis" e garantem a retomada do nível de crescimento."De um modo responsável, o Brasil continua a criar a infrestrutura necessária para que o ciclo de desenvolvimento social e econômico seja sustentável", afirma Lula em sua mensagem anual ao Congresso.

A manifestação do presidente ocorre em um momento de apreensão sobre o futuro da economia. As autoridades econômicas tentam infundir ânimo, mas alguns dados merecem ser analisados com lupa de precisão — principalmente por conta da instabilidade que mostra quão profunda são as raízes da crise econômica global.

O presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, alvo de críticas sistemáticas dos chamados “setores produtivos” em decorrência do conservadorismo do Comitê de Política Monetária (Copom) na definação da taxa básica de juros, a Selic, disse que a massa salarial, o comércio e o crédito estão se expandindo acima da tendência de longo prazo. Segundo ele, a economia está se expandindo em “bases sólidas” e não haverá mudança de rumo.

Mas encaixou a ressalva: o comportamento de Selic vai depender da “pressão inflacionária”. "Todas as ponderações a esse respeito estarão na ata da reunião do Copom, que será divulgada na quinta-feira", disse ele, após se apresentar para uma platéia de empresários em São Paulo. Mais cedo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou no mesmo evento que, se for necessário, o governo irá aumentar os juros, mesmo em um ano eleitoral.

O “canto da sereia”

Mantega tomou o cuidado de prestar atenção no ano eleitoral. "O ano eleitoral pode trazer alguma perturbação para a economia. É preciso que fiquemos atentos para que não haja uma perturbação já que nós atravessamos uma situação muito boa", afirmou. O ministro apontou a possibilidade de um "pacto" para que a política econômica do país seja mantida e não haja alterações mais drásticas de rumo.

"Não vamos admitir provocações. Não podemos cair no 'canto da sereia'. É preciso continuar gerando emprego e o próximo governo pode ser melhor do que este. Não faltarão desafios para os novos governantes. O Brasil vai bem, mas pode melhorar. É preciso fazer um pacto para que este caminho possa ser trilhado por muitos anos", disse. Ele reafirmou a disposição do governo de cumprir "à risca" a meta de superávit primário deste ano, de 3,3%. "Não devemos permitir que haja perturbação desse momento muito bom", enfatizou.

Mantega e Meirelles disseram que o governo está decidido a deixar a taxa de câmbio se desvalorizar para ajustá-la ao aumento do déficit das contas externas. Eles consideram ter reservas em moeda internacional suficientes para atuar ou evitar movimentações bruscas no mercado de câmbio, segundo demonstraram durante o Fórum Econômico Mundial, em Davos.

Salários do funcionalismo

Segundo o jornal Valor Econômico, nos últimos dias têm chegado a Brasília notícias preocupantes sobre a volta de operações de hedge (seguro contra variação de câmbio) feitas por empresas brasileiras, apostando na manutenção da taxa em níveis inferiores a R$ 2 por dólar. O governo tem desencorajado essas operações, que, no auge da crise, levaram algumas empresas a sérios problemas financeiros.

No campo das contas internas, no esforço para tentar aprovar ainda no início do ano a criação de um teto legal de reajuste para os salários do funcionalismo público, o ministro pediu, na abertura dos trabalhos da Câmara dos Deputados, pressa na votação do projeto que fixa o aumento salarial do setor público em, no máximo, 2,5% acima da taxa de inflação. "Já aprovamos no Senado, estou confiante de que será aprovado também na Câmara, trabalharei para isso", disse o ministro ao jornal.

Ele explicou que se o crescimento for de 5% do PIB, o gasto vai crescer metade disso. “Para funcionar tem de ter crescimento da economia; os próximos governos estarão condenados a fazer a economia crescer", explicou. Mantega minimizou o efeito do crescimento econômico sobre as contas externas, que devem ter um déficit em contas correntes de pelo menos US$ 45 bilhões neste ano, a ser coberto principalmente com investimentos diretos.

Segundo o ministro, o aumento do déficit era quase inevitável, estava previsto, reflete a crise. "Tende a ser revertido a partir de 2011 ou 2012, quando teremos um real menos valorizado e o próprio deficit cumprirá seu papel de mudar o patamar de importações e exportações", previu.

Comparação de gastos

No mesmo tom, Meirelles também vinculou a administração do déficit em conta corrente ao controle fiscal e da inflação. "Em razão da estabilidade econômica alcançada nos últimos anos, o Brasil reúne as condições necessárias para receber investimentos estrangeiros diretos em volume suficiente para financiar seu déficit em conta corrente nos níveis previstos atualmente", declarou ele ao Valor Econômico.

Meirelles deixou claro que, em caso da aumento do déficit em contas correntes, o governo não hesitará em usar reservas em moeda estrangeira para evitar estrangulamento de liquidez (falta de dólares) enquanto a cotação da moeda norte-americana se elevar para ajustar a economia à nova situação.

"Caso o aumento do déficit venha a ocorrer, diferentemente do passado, haverá um ajuste natural, e não uma crise, visto que, nesse quadro, a combinação de câmbio flutuante e reservas elevadas garantirão o tempo e a serenidade para que o mercado reveja gradualmente suas apostas e para que o processo de ajuste das taxas de câmbio ocorra de forma saudável para a economia", ditou o presidente do BC, segundo o jornal com a cautela de quem redige uma nota oficial. "Como temos repetido, não temos meta de taxa de câmbio, trabalhamos com meta de inflação", completou.

Preocupado em demonstrar o compromisso com o “controle fiscal” no ano de eleição presidencial, Mantega informou que o governo quer lançar também no início do ano um novo sistema de comparação de gastos nas diversas unidades de governo, para verificar aumentos indevidos de despesas ou desperdício orçamentário. "Vamos estabelecer uma espécie de central de custos no governo para acompanhar os gastos das principais unidades de despesa da federação", disse o ministro. "Vamos aprimorar o que já existe e lançar acompanhamento dos principais gastos da União", detalhou.

Linhas do BNDES

Mantega não descarta novas medidas de alívio aos exportadores. A falta de avanços nesse tema se deveu à "falta de espaço fiscal para novas bondades", explicou ele. "Não havia espaço para maior devolução de créditos (sobre impostos recolhidos indevidamente)", disse o ministro, acenando com uma ligeira possibilidade de mudança de política neste ano. "Temos de ver a arrecadação; se sobrar espaço, faremos (novas medidas de alívio fiscal aos exportadores)", disse.

O que já está definido é a ampliação das linhas do BNDES para financiamento à exportação. Segundo Mantega, está confirmada a expectativa de se iniciar a operação ainda no começo do ano, de novas facilidades do banco para venda de máquinas e produtos brasileiros a clientes nos mercados em desenvolvimento e países de menor renda, na América Latina e África.

Com o BNDES Exim automático, o banco pretende credenciar redes de bancos nos países dessas regiões para operarem como agentes financeiros, em sistema similar ao que é feito hoje dentro do Brasil. "Estamos trabalhando em regras de modo a fazer grande escala no financiamento de produtos como máquinas agrícolas", disse Mantega. "Queremos financiar importação de produtos brasileiros na Argentina, Peru, Colômbia etc.", explicou.

Antes de participar do Fórum Econômico Mundial, Mantega havia dito que o governo começaria a retirar os estímulos criados no auge da crise financeira, em 2008, a começar pelas isenções de impostos para produtos como eletrodomésticos da linha branca e automóveis. Por trás da decisão há a preocupação do ministro em evitar que o BC eleve os juros para desaquecer a economia brasileira e evitar excesso de consumo e inflação.

Bens de capital

O presidente Lula parece ter a mesma precaução. Segundo ele, o governo não renovará mais as reduções do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) porque ele já cumpriu seu papel. "Na semana passada, considerando os sinais claros de recuperação da economia, decidimos não renovar mais as reduções de IPI, uma vez que os nossos objetivos foram alcançados", disse ele. O presidente acrescentou que o crescimento das vendas "mostra que a medida foi determinante para o fortalecimento do setor (de eletrodomésticos)".

No caso de bens de capital (máquinas e equipamentos para indústrias), o incentivo fiscal vai vigorar até 30 de junho. Para os automóveis, Lula afirmou que a redução do IPI acabará no fim de março. Resta saber como se comportará a indústria automobilística com seu enorme poder de fogo. Enquanto vigour a redução do IPI, o setor vendeu carros como água.

Segundo a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), os emplacamentos de veículos novos no mercado brasileiro somaram 212.937 unidades em janeiro, uma alta de 7,85% ante igual período de 2009. No confronto com dezembro, mês em que o comércio de veículos é tradicionalmente mais forte, vê-se um declínio de 27,33%.

É bom lembrar que o primeiro mês do ano é, para o setor, um mês com vendas mais fracas. Os dados incluem automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus. Levando-se em conta o desempenho de todos os segmentos analisados pela Fenabrave, que inclui motos e implementos rodoviários, o setor automotivo vendeu 342.242 unidades em janeiro, alta de 4,53% sobre o mesmo intervalo de 2009, mas baixa de 25,70% ante dezembro.

Trajetória do juro e do dólar

Para o chefe do departamento de economia da Confederação Nacional do Comércio (CNC), Carlos Thadeu de Freitas, as vendas de eletrodomésticos poderão ser "marginalmente" afetadas pelo fim da desoneração do IPI, sobretudo no Dia das Mães. "Mas vai ser um impacto pontual, que não deve alterar o resultado do ano", acredita. Ele avalia também que as promoções nas lojas vão diminuir ou desaparecer com o fim dos incentivos.

Mas esclarece que a trajetória dos juros e do dólar é que será determinante para o desempenho do varejo em 2009. No que diz respeito à inflação, Thadeu de Freitas também acredita que o fim da deflação nos preços dos eletrodomésticos registrada no ano passado não vai comprometer o resultado final do IPCA em 2010, que para ele permanecerá na meta de 4,5%. "O quadro para a inflação em 2010 permanece inalterado até o momento", afirma.

A ameaça do Copom e o fim das reduções do IPI criam um cenário preocupante. Tanto que Mantega pediu aos empresários para que não se deixem levar pelo "canto da sereia" das projeções pessimistas baseadas no fato de este ser um ano eleitoral, sob pena de conturbar os ganhos obtidos na economia. Mas, independente do “canto da seria”, alguns dados merecem preocupação.

É o caso da média anual de remessas ao exterior de lucros amealhados por estrangeiros em aplicações financeiras. Segundo o BC, na média os estrangeiros remetem anualmente US$ 4,87 bilhões em lucros desde 2003. A cifra é 277% maior que a sangria ocorrida entre 1995 e 2002, de US$ 1,29 bilhão/ano. Em relação a 2001, o derrame é 560% maior.

Mudança estrutural

O salto coincide com a volta da lucratividade nas aplicações em ações, já que por 12 anos seguidos as remessas financeiras eram originadas exclusivamente nos juros pagos pelos títulos de renda fixa. Números do BC mostram que estrangeiros nunca remeteram tanto lucro obtido no Brasil com aplicações em títulos de renda fixa e na Bolsa de Valores.

Em 2009, a sangria chegou a US$ 7,45 bilhões, a segundo maior da série iniciada em 1979. O recorde ainda é de 2008, logo após o agravamento da crise: US$ 8,52 bilhões. O aumento espetacular dos ganhos dos especuladores ocorreu após a concessão de grau de investimento ao país em 2008 pelas agências de classificação e risco, valorização do real, a ostentação do maior juro real do mundo e a forte saída de recursos em meio à crise, para cobrir buracos nos países de origem.

“O quadro reflete estoque elevado de investimentos estrangeiros em ações e títulos. Hoje, o estrangeiro está muito mais presente no mercado brasileiro. Além disso, os últimos anos foram afetados pela crise, que exigiu a remessa de lucros para a cobertura de perdas em outros países", diz a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da Unicamp Daniela Prates, em entrevista ao Monitor Mercantil.

As remessas passam por uma mudança estrutural. Entre 1995 e 2006, os ganhos eram basicamente com os juros elevados. Desde 2007, as ações voltaram a gerar lucro remetido para o exterior. Naquele ano, 24,2% das remessas foram originadas no mercado acionário.

Posição estrangeira

O estoque de capital especulativo no mercado financeiro brasileiro cresceu expressivos 80,1% em 2009, na comparação com o ano anterior. Segundo levantamento anual da instituição, investidores de outros países terminaram o último dia útil dezembro com US$ 517,9 bilhões aplicados no Brasil.

O valor é bem maior que o total de investimentos ditos produtivos, o Investimento Estrangeiro Direto (IED), que somou US$ 396,7 bilhões no mesmo mês, com aumento de 37,9% em um ano. O forte aumento do estoque de capital de motel no ano passado aconteceu sobretudo no mercado acionário. Em um ano, o total de aplicações saltou 137,2%, para atingir US$ 354,9 bilhões.

Apesar do desempenho, o número ainda não voltou ao patamar de 2007, antes da crise, quando a posição estrangeira em renda variável era recorde e somava US$ 363,9 bilhões. Na opinião do economista Luiz Fernando de Paula, da Uerj, em entrevista ao Monitor Mercantil, o diferencial entre as taxas de juros internacionais e as pagas pelo Brasil — as maiores do mundo — é a principal atração para o capital financeiro.

"A partir de 2007, houve crescimento forte nas aplicações em carteira. Embora a taxa de juros estivesse menor em relação à série histórica, o diferencial ainda era alto em relação ao resto do mundo. Havia também o aspecto da melhoria do risco país", disse ele.

O falso dilema de Meirelles

O economista lembrou que a partir da quebra do Lehmann Brothers, os estrangeiros passaram a ser os grandes investidores da bolsa. "Acharam que o Brasil saiu da crise com bons fundamentos, mas esse capital é de alta volatilidade. Não é à toa que é chamado hot money", observou, acrescentando que a volatilidade atinge o dólar, "o que é muito ruim para as expectativas empresariais".

O grande nó da economia brasileira continua sendo o Copom. Sua composição limitada, que representa basicamente o setor financeiro da economia, e suas decisões arbitrárias compõem uma equação difícil para o chamado “setor produtivo”. E criam complicações políticas para os movimentos democráticos interessados no crescimento de fato sustentável da economia brasileira, com geração de riquezas e distribuição de renda.

O ano eleitoral é um fator que pesa na resolução dessa equação, já que os elogios à atual política monetária partem da mídia, de lideranças do PSDB e do DEM, da Febraban e até do governo dos Estados Unidos. O problema desta vertente "ortodoxa" enquistada no BC é que ela não admite o debate. A expressão cabal disso é a sentença de Meirelles, segundo a qual o país cada vez mais segue o "consenso" de que não há um dilema entre "estabilidade macroeconômica" e desenvolvimento.