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Crise corrompeu a fé na eficiência suprema dos mercados

A crise que começou com o estouro do cassino que inflava a dívida superlativa dos americanos por falta de regulação, como concluíram os doutores da economia e da política, e que parecia resolvida com a intervenção estatal em doses maciças sobre o mercado, voltou. Ou nunca se foi. Aguardava a oportunidade de desmoralizar outro mito.

Por Antonio Machado, no Correio Braziliense

A débâcle de Wall Street corrompeu a fé na eficiência suprema dos mercados desregulados para redistribuir os excedentes financeiros e prevenir riscos. Essa nova ortodoxia ruiu pelos seus excessos. Outra ortodoxia, dominante no mundo entre a Grande Depressão dos anos 30 e a década de 90 do século passado, do Estado planejador, regulador e até empreendedor, pensada pelo economista inglês John Keynes, também começa a fraturar neste dominó de utopias.

Menos por Keynes, copiado e adaptado em versões variadas do que se ajustou chamar de keynesianismo. E sim pelo que nunca escreveu: que o poder interventor dos Estados seria infinito e inimputável. O professor Luiz Gonzaga Belluzzo, estudioso de Keynes e muito respeitado pelo presidente Lula e a ministra Dilma Rousseff, cita uma reflexão do economista sobre as políticas anticíclicas e suas sequelas: “Você acentua demais a cura e muito pouco a prevenção”.

Muito menos Adam Smith, outro pensador inglês cujas ideias foram centrais para a modelagem das economias modernas, via os mercados em antítese aos Estados. Ambos se complementam e interagem. Os grandes pais do pensamento econômico deveriam poder descansar em paz. Suas ideias não provocaram a crise que teima em ficar. Os governos e a soberba de economistas em que se basearam para pôr em ação os piores desatinos, normalmente com o álibi social, são os responsáveis. A imperícia com a macroeconomia conduziu às crises.

O epicentro da atual está na Europa, Éden do dirigismo econômico — apontado por muita gente mundo afora, Lula entre tantos, como a resposta contra desmandos e carências do mercado. O gasto público sempre foi alto na Europa, mas regulado pelas regras da gaiola do euro: teto para o deficit público de 3% do PIB de cada sócio do clube da moeda única, mais banco central independente e ortodoxo.

Essa é a grande diferença do euro em relação ao dólar: o Federal Reserve o emite quanto precisar e, via juros interbancários, pode influenciar a taxa cambial, também uma função do estoque de dívida emitida pelo Tesouro. Na União Europeia, o Banco Central não tem instrumentos para orientar o câmbio, e a política fiscal é questão de soberania de cada país associado ao euro. Tudo está questionado pelo encurtamento do crédito ainda em curso e que vai acentuar-se.

Plantador de azeitona

Os grandes da zona do euro, Alemanha e França, seguiam a regra do pacto de estabilidade. Os médios, tipo Itália e Espanha, pareciam cumpri-la, embora suas dívidas fossem elevadas. Grécia e Portugal, na periferia, estavam piores. Mas, tais como os países médios, iam na valsa dos juros baixos, liquidez oceânica, mansidão dos bancos e investidores diante do risco e a certeza: em qualquer emergência os vizinhos ricos correriam a acudi-los. Talvez o façam.

Não por solidariedade. Para que a falência desses sócios frágeis, “plantadores de azeitona” — como se refere a eles a imprensa da velha Europa preconceituosa —, não respingue em suas economias.

Limites da soberania

As aflições nos EUA e Europa, com o primeiro indicando um melhor cenário que o segundo mas ainda longe de sair da crise, provam que os países têm limites para sustentar seus deficits e dívidas. Os da Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda e Itália, nessa ordem, que respondem por 37% da economia da Eurozona, excederam o teto.

Não só da União Europeia, mas o teto que os investidores e bancos estão dispostos a bancar. Volta a surgir o desajuste, previsto no fim de 2008, inclusive por esta coluna: que a bolha de especulação inflara o crédito no mundo. Com o seu estouro, viria uma fase de contração equivalente do valor dos ativos e da demanda real.

Epílogo só foi adiado

Os programas anticíclicos adiaram o encontro do fim da ilusão da riqueza financeira com a riqueza real, esta função daquela. Não se resolveu nada desde então. Os governos engoliram os títulos podres que tornaram a banca insolvente na Europa e EUA e atraíram para as dívidas soberanas a desconfiança da própria banca socorrida pelos fundos públicos, sinal da insustentabilidade do que hoje se vinha chamando de “nova normalidade”. Até agora o Brasil soube evitar as contradições do mundo pós-bolhas. Mas convém não abusar da sorte.

US$ 2 tri em suspeita

As cinco economias mais frágeis da zona do euro, apelidadas pela imprensa europeia de Piigs, acrônimo que remete à palavra porco em inglês e se contrapõe a outro mais famoso, Bric, dos emergentes como Brasil que têm costeado a crise, acumulam uma dívida soberana passível de reestruturação de US$ 2 trilhões, o triplo dos US$ 600 bilhões de custo direto atribuído à quebra do Lehman Brothers.

Nos EUA, a economia está tendo de operar com US$ 1 trilhão menos de oferta de crédito que havia antes da crise. China e Índia, as esperanças da Ásia, começaram a pisar no freio, temendo inflação. Enfim, o mundo parece que voltará a piorar antes de melhorar. Os candidatos à sucessão de Lula deveriam considerar tais incertezas.