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Pedro Eugênio: conhecer a verdade é respeitar a alma do povo

O decreto de criação do Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3) tem sido criticado como inoportuno. Inoportuno para alguns, acrescento. Há quem prefira ver o País se escondendo de debates importantes, que acontecem em todo o mundo.

por Pedro Eugênio, deputado federal pelo PT-PE
Artigo publicado no Jornal do Commercio (PE)

Prefiro vê-los ocorrendo no Brasil, de forma aberta e franca. Defendo a legalização do aborto, salvando-se assim milhares de vidas que hoje são perdidas na prática desumana de abortos clandestinos. Defendo que a negociação esteja sempre presente na solução de conflitos sociais, inclusive fundiários, evitando-se ao máximo a adoção de falsas soluções que, por falta de diálogo, levam a simples postergação de problemas graves. Defendo que a liberdade de imprensa se dê sempre nos marcos do respeito à liberdade coletiva e individual e não a elas se sobrepondo. Defendo que a memória histórica seja preservada e que a verdade venha sempre à tona, principalmente em questões cruciais aos direitos humanos, como acontece com a prática de tortura por parte de agentes públicos.

O decreto que apresentou à Nação o PNDH3 abre este debate. Incorpora ?resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos e propostas aprovadas nas mais de 50 conferências nacionais temáticas, promovidas desde 2003? (página 11 do decreto).

As diretrizes ali expostas terão que ser confirmadas em lei, terão que ser discutidas no Parlamento e, mais uma vez, na sociedade, ampla e democraticamente. O que não podemos aceitar é que se queira praticar sobre o decreto e o plano um linchamento político e impedir o livre debate de idéias na sociedade brasileira.

Tomemos, por exemplo, a proposta de criação, através de projeto de lei a ser enviado a Congresso (pág. 174 do decreto), da Comissão Nacional da Verdade. Quem ler a proposta verificará que ela não se propõe a alterar a lei de anistia, mas tão-somente esclarecer fatos, identificar corpos e restos mortais de desaparecidos políticos, tornar públicas informações e documentos ainda mantidos em segredo e assim por diante.

Sendo filho de militar, do coronel do Exército Nadir Toledo Cabral, falecido em 1963, aprendi desde cedo a conhecer e reconhecer as Forças Armadas como sinônimo de respeito à pátria, à brava gente brasileira. Aprendi com ele os hinos militares e, entre eles sempre me tocou a estrofe do hino da artilharia: "Abraçado ao canhão morre artilheiro, em defesa da pátria e da bandeira. O maior valor de uma nação, vibra n'alma do soldado, ruge n'alma do canhão". E explicava ele, ao menino curioso, que o canhão tem alma, aquele oco por onde a bala passa, que ruge ao disparar. E que a alma do soldado é a alma da nação, de seu povo. Vibra a alma, ruge a alma… E ele se emocionava. Cursei sete anos no Colégio Militar, onde recebi ensinamentos que muito contribuíram para minha formação intelectual. Jamais ouvi ali o elogio à tortura e ao desrespeito aos direitos humanos. Anos depois, não muitos, ainda jovem, conheci o gosto ocre, metálico, dos elétrons a correr pelo corpo, acionados por gente que vestia farda, comandados por oficiais, no DOI-Codi, em instalações do QG do IV Exército, ali no Derby. Eu e meus companheiros e companheiras soubemos onde estávamos pelas badaladas do relógio da Faculdade de Direito, inconfundíveis. Conheci a tortura sendo praticada sistematicamente por gente fardada, como método, não como prática acidental, mas como método, parte de um sistema montado para destruir uma oposição que ali, naquele grupo em que eu estava, reunia em sua grande maioria, jovens de 18 a 23 anos, Pouco antes de nossa prisão, fora preso e assassinado um jovem geólogo, recém-formado, Ezequias Bezerra da Rocha. Morto por terem pensado que ele era da direção do partido (o PCBR), quando apenas emprestara um carro a Miriam Verbena e a seu marido, Sá Benevides, mortos em desastre até hoje envolto em mistério.

Apesar dessa dolorosa experiência, quando vejo a instituição castrense, seus soldados, seus oficiais, não me sobrevém a lembrança do opróbrio. Não me ocorre lembrar-me da mão a torturar, mas da mão paterna a transmitir dignidade. Nego-me a tomar o desvio dos que desonraram a farda como se fosse o leito principal, este sim, parte integrante e digna da nossa Nação.

Agora, quando o decreto que estabelece a política nacional de direitos humanos é apresentado ao País, levantam-se vozes a se colocar contra a afirmação do Estado brasileiro de que o direito à memória e à verdade precisa ser praticado. Que ameaça institucional representa sabermos quem torturou e matou Ezequias? E quem matou e queimou Almir, Ranúzia e Ramirez? Onde estão seus corpos? Onde estão nossos mortos? Queremos enterrá-los com dignidade e saber como e por quem foram sacrificados. Qualquer conflito social, político ou ideológico jamais pode permitir a institucionalização da tortura. A preservação da memória e da verdade do passado é fator básico para banirmos a tortura, não apenas do futuro, mas do presente, onde continua a vitimar gente do povo, no cotidiano de práticas policiais medievais e vergonhosas.

Querer conhecer a verdade não é ato de ameaça a qualquer instituição. É ato de respeito à alma do nosso povo.