Rosemberg Cariry apresenta livro de Célio Turino na Teia 2010

O cinesta e escritor, Rosemberg Cariry, Presidente do Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), foi quem apresentou o livro “Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima”, do Secretário da Cidadania Cultural do MinC, Célio Turino, lançado na noite de sábado (27), como parte da programação da Teia 2010, que acontece em Fortaleza (CE), desde o dia 25 e vai até 31 de março.

Por um momento poder-se-ia imaginar que se tratava de um encontro de membros do Nação Cariry, movimento que agitou a cena cultural e política cearense na década de 1980. No palco do SESC Cultural, em Fortaleza, Ronaldo Lopes, talentoso artista do Pirambu, bairro popular de Fortaleza, acompanhado do veterano percussionista Marcão Melo e de jovens músicos, na platéia Rejane Reinaldo, Rosemberg Cariry, Gerardo Damasceno e muitos que acompanharam aquele fervilhar cultural que repercutiu além das fronteiras do Ceará, em plena mobilização política que ajudou a apressar o fim da ditadura militar.

Ainda não era a necessária homenagem que se deverá fazer aos 30 anos de fundação do Nação Cariry, mas pelo menos em termos de Ceará, era um evento que tem muito a ver com aquele movimento. Merecidamente coube a cineasta e escritor Rosemberg Cariry, presidente do Congresso Brasileiro de Cinema, fazer a apresentação do livro “Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima”, de Célio Turino, onde é relatada a rica experiência do atual Secretário de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura na implantação da inovadora política pública dos pontos de cultura , um dos destaques do Governo Lula na área cultural.

Em sua apresentação, Cariry abordou a infinita riqueza cultural da nação brasileira e se referiu aos pontos de cultura como “uma experiência vital e transformadora, porque plantada na alma profunda de uma nação, cultivada nas regionalidades perdidas que conseguiram emergir e se afirmar como nacionalidade e universalidade, no mundo contemporâneo”. Numa demonstração de otimismo e fé no povo, Rosemberg afirmou ainda que “ os Pontos de Cultura são o povo brasileiro em movimento, e quem o pôs em movimento, acredito, não conseguirá mais pará-lo”.

Ao final de sua apresentação, o respeito diretor de obras como “Corisco e Dadá”, afimou: “Meu caro Célio Turino, já que você não se ofende, deixe-me aqui chamá-lo de radical, utópico e comunista. Gostaria de acrescentar mais um adjetivo: apaixonado. Assim denominando-o, coloco-o em uma tribo importante, ao lado de Gilberto Gil, Juca Ferreira, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Câmara Cascudo, Glauber Rocha, Patativa do Assaré, Oscar Niemayer, Jorge Amado, Oswald Barroso, Mário de Andrade, João de Cristo Rei e Ariano Suassuana, para citar apenas alguns desses homens que se apaixonaram de forma luminosa pelo Brasil”.

Econômico nas palavras, mas esbanjador de entusiasmo pelas experiencias culturais que ajudou a consolidar, Célio Turino, ao invés de fazer discurso de agradecimento, leu dois trechos de seu livro. Um deles relata seu contato com o trabalho da ACARTES, ponto de cultura de Fortaleza. Aplaudido entusiaticamente, Turino foi calorosamente saudado pelo público que adquiriu grande partes dos livros que se encontravam à venda.

Leia abaixo a íntegra da apresentação de Rosemberg Cariry:

A BANDEIRA DO DIVINO VAI NA FRENTE TREMULANDO

“Des-silenciar”, o que significa? Reinventar-se na palavra Cariri, que, em língua travada, quer dizer silencioso, calado? Reaprender a falar os significados e os sonhos? “Desesconder”, o que significa? O avesso de invisível? O ato de revelar-se, enquanto indivíduo na coletividade, ou enquanto coletividade no indivíduo, por meio da cultura e da arte? Será a criação contínua do reinventar-se, gente e agente das transformações, dentro de uma comunidade de destino? Será sinônimo de compartilhar, de encontro solidário entre povos e culturas? Para saber, vamos jogar os búzios do candomblé, vamos consultar os xamãs do Xingu, vamos espiar as “mirações” do chá de Ayausca, vamos consultar os oráculos do Juazeiro nas romarias sagradas, vamos tomar vinho de jurema nas mesas de catimbó do sertão da Paraíba. Também vamos nos valer da história, da antropologia, da sociologia, da filosofia e das razões dialéticas. Queremos descobrir o tradicional que se fez novo e o novo que nasceu em contato com o tradicional. Novo e velho, erudito e popular, tradicional e contemporâneo, regional e nacional, nacional e universal, quem separa com precisão esses conceitos na geleia pós-moderna brasileira? É com essa gramática nova, recheada de reflexões, de poéticas e dizeres, em textos que ensaiam neologismos e significados decifrados ou ainda à espera de códigos para serem decifrados, que Célio Turino, no livro “Ponto de Cultura – O Brasil de Baixo para Cima”, narra as suas experiências vividas e compartilhadas com os Pontos de Cultura, que ajudou a semear em todo o Brasil. Com este livro, Célio Turino "des-silencia-se" de uma experiência vital e transformadora, porque plantada na alma profunda de uma nação, cultivada nas regionalidades perdidas que conseguiram emergir e se afirmar como nacionalidade e universalidade, no mundo contemporâneo. A nação vive um renascimento cultural, a partir dos seus povos que se reinventam Brasil.

Ninguém pode falar mais de Brasil sem falar do mundo. O aboio do vaqueiro traz a solidão profunda e também o brilho de 800 anos de civilização árabe na Península Ibérica, da qual somos herdeiros. O Magreeb, o Saara, a Andaluzia, o sul da França, com sua língua doc e seus trovadores, tudo se reinventa nas toadas dos violeiros e nos cantos dos cegos cantadores de feira que são revisitados pelos jovens do rock, do hip-hop, da MPB e da Nação Zumbi. Somos árabes contadores de histórias e mestres de arabescos, somos moçárabes nas cantigas de amor, somos todas as Áfricas reais e reinventadas, somos índios isolados, somos índios de José de Alencar medrosos de morrer sem ver Paris, somos judeus em muitos costumes e crenças, somos cristãos de um jeito novo, porque o catolicismo popular mistura todas essas influências e Padre Cícero baixa em terreiro de macumba e o Capitão Corisco é espírito poderoso nas mesas de catimbó. Somos seguidores de Tia Neiva do Vale do Amanhecer e acreditamos que o índio Seta Branca, cercado de avatares hindus, descerá de um disco voador e sobre o mundo derramará a doçura da sua luz. Caetano, o doce bárbaro, já cantou:

Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul, na América, num claro instante
(…)
Um índio preservado em pleno corpo físico
Em todo sólido, todo gás e todo líquido
Em átomos, palavras, alma, cor, em gesto e cheiro
Em sombra, em luz, em som magnífico
(…)
E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos, não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio.

Somos Aves de Jesus, somos filhos de Chico Xavier, somos devotos do padre Cícero e de Frei Damião, somos apóstolos do profeta Gentileza. Somos conselheiristas e esperamos Dom Sebastião, que se encantou na Ilha de São Luiz e revisita o mundo nas folias do Boi-Bumbá, com sotaques de zabumbas, matracas e orquestras. Festa pagã do fogo para cultuar São João Batista, em junho, ou o nascimento do Sol Invicto, na festa da natividade, em dezembro.

O abade calabrês Joaquim de Fiore (1132-1202), que foi condenado pela igreja como herege, sonhou a Terceira Era, depois da Era do Pai e da Era do Filho, como sendo a Era do Espírito Santo; a Era da Redenção, tempo de paz, de justiça, de harmonia, de igualdade e de solidariedade entre os homens. Nesta Terceira Era, qualquer plebeu pode ser um imperador, pois a sabedoria divina, irradiada pelo amor, será um bem comum. Como no Reisado do mestre Aldenir Callou, no Crato.

Das ilhas dos Açores, chegou-nos o culto ao Divino Espírito Santo e as sabedorias difundidas por Joaquim de Fiore, depois de vencer todas as perseguições e ortodoxias. O império do Divino Espírito Santo é a apoteose da história, a epifania da humanidade, ao contrário dos que apregoam que a culminância da história seria o capitalismo com suas barbáries e o assombroso reino do mercado. E esta pureza do novo tempo, da Terceira Era do Espírito Santo, é representada por um menino, escolhido entre o povo, que é coroado rei, com o poder de distribuir o pão comunitário e, simbolicamente, abrir as portas das cadeias, libertando os que têm fome de justiça e sede de amor, apontando com seu cetro os caminhos da liberdade. Se alguém me perguntasse como deveria ser a bandeira do Brasil, eu diria: vermelha como a bandeira do divino, com a pintura da branca pomba da paz, tremulando ao vento e enchendo os nossos corações de sabedorias e espiritualidades. Essa bandeira jamais deveria ser hasteada, deveria sempre estar em movimento, carregada pelos mensageiros da folia, como símbolo da humanitária nação, acompanhada por violas caipiras, violas de cocho e tambores de timbaúba. Por toda a noite ficava decretada a festa, em devoções dos espíritos, em improvisos de cururus, cateretês, catiras e curraleiras, benditos e jaculatórias grávidas de futuro nos lábios de nossos avôs. Tudo isto só para dizer ao mundo que acreditamos no homem e no bem comum.

O que é novo se faz novo pelo nosso olhar. Essa mistura já vem de longe. Antes de nós nos inventarmos como Brasil, o que era a Península Ibérica, senão a mistura de mil povos? O que era o português senão o latim vulgar fertilizado pelas línguas bárbaras e pelas poéticas do mundo? Mário de Andrade disse: “Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”. Da mesma forma como poderia ter dito: “Eu sou mil eu sou mil e um”. O Brasil nasce de centenas de povos indígenas, de centenas de povos africanos, de centenas de povos europeus, de centenas de povos asiáticos, quem por sua vez já vem de centenas de misturas, e isto determina uma vocação de ser mundo, de ser planeta, de ser humanidade.

Esse Brasil é o Brasil dos pontos de Cultura, dos milhares de espaços culturais tradicionais e contemporâneos que, no seio das suas comunidades, vivem um renascimento. O poeta, cantor e compositor Gilberto Gil, empossado como Ministro da Cultura do Brasil, no dia 2 de janeiro de 2003, prometeu em seu discurso: “Vou fazer uma espécie de “do-in” antropológico massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do País. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção”. Naquele momento, Gilberto Gil inaugurava um momento novo para a cultura brasileira. Esse impulso inicial encontrou em Juca Ferreira, atual Ministro da Cultura e em Célio Turino, secretário de Políticas Públicas do MinC, os seus pensadores e executores mais entusiastas.

Os pontos de cultura nascem assim da reflexão de um poeta, de um homem negro que, mesmo pertencendo à elite intelectual baiana, negros ricos e da classe média em processo de embranquecimento, tinha também um pé na senzala e compreendia o destino de grandeza do povo brasileiro, talvez tocado, por meio do inconsciente coletivo, pelas ideias de Joaquim de Fiore e pelas luzes de outros orixás. Juca Ferreira fez desta ideia um apostolado, e Célio Turino, como um guerreiro, foi a campo desbravar e construir, junto com o povo, as novas possibilidades e a gestão dos novos sonhos.

Alguma coisa está mudando radicalmente, não se trata mais da elite intelectual do País levando ao povo sobejos das culturas eruditas, pasteurizadas pelas indústrias de consciência, ou pela arrogância dos conscientizadores do povo, como se o povo fosse desprovido de consciência e da graça do espírito. Ao contrário, percebem-se agora os povos brasileiros em movimento, com suas heranças de humanidade e suas utopias, anunciando a concretude de uma nação bonita chamada Brasil. Os Pontos de Cultura são o povo brasileiro em movimento, e quem o pôs em movimento, acredito, não conseguirá mais pará-lo. À frente da folia, a menina mais bonita, segurando a bandeira do Divino, cantando e bailando, acompanhada pela viola de Badia Medeiros. Mestre tão sábio e inspirado quando Zé Coco do Riachão. Ave!

Meu caro Célio Turino, já que você não se ofende, deixe-me aqui chamá-lo de radical, utópico e comunista. Gostaria de acrescentar mais um adjetivo: apaixonado. Assim denominando-o, coloco-o em uma tribo importante, ao lado de Gilberto Gil, Juca Ferreira, Darcy Ribeiro, Milton Santos, Câmara Cascudo, Glauber Rocha, Patativa do Assaré, Oscar Niemayer, Jorge Amado, Oswald Barroso, Mário de Andrade, João de Cristo Rei e Ariano Suassuana, para citar apenas alguns desses homens que se apaixonaram de forma luminosa pelo Brasil.

Fortaleza, 27 de março de 2010.

Da redação local.