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Você se ufana de seu país?

Quando Afonso Celso de Assis Figueiredo Jr., Conde de Ouro Preto, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, lançou seu controverso livro "Porque me ufano de meu país", em 1900, o Brasil era uma República que engatinhava. Fora o avanço político no seu mais amplo sentido, não havia grandes feitos econômicos e nem evolução social para celebrar.

O ufanismo mirava um futuro provável, mas não garantido. Exaltava o tamanho territorial, os caudalosos rios, a verdejante e virgem floresta, a bela e extensa costa, além dos minérios e de outros poucos produtos.

Por Maria Clara R. M. do Prado

Todos faziam parte da lista dos onze motivos aos quais Afonso Celso atribuía a superioridade do Brasil, entre eles alguns "nobres predicados do caráter nacional como a paciência e a resignação". Está claro que tratava-se de um limitado e exagerado entusiasta. Tudo o que ele idolatrou no início do século XX não ia muito além do que Cabral havia encontrado em terra firme, quatrocentos anos antes.

A República brasileira foi ao longo dos anos mudando de cara. Experimentou domínios militares, com ou sem ditadura, viveu o apogeu da aristocracia rural e a luta urbana da classe operária, mas politicamente mais fechada ou mais aberta, pautou-se sempre pelos interesses da elite. A enorme diferença de renda a dividir pobres e ricos se impunha como o sinal mais evidente de que por anos e anos o Brasil, ainda que independente e republicano, viveu com mentalidade de colônia.

Muito tempo levou para que se entendesse que a maior riqueza, a da inserção da mão de obra no processo produtivo, não estava sendo apropriadamente considerada. Uma massa enorme de brasileiros foi mantida por anos em uma espécie de isolamento, condenada a viver de biscates e trabalhos temporários, mal pagos e irregulares. Sem cidadania, nem renda, não conseguia consumir. E aqui está o pulo do gato que a elite brasileira demorou a enxergar. Consumo cria mercado. Mercado cria oportunidades de negócios, movimenta a economia e gera desenvolvimento.

A transformação econômica e social pela qual passa o país, embora tardia, é profunda e não tem volta. Teve início há 25 anos, com a Nova República que restaurou a democracia, abrindo assim as portas para a liberalização do debate e da participação política. Foi o primeiro passo para a retomada de consciência da cidadania, em especial para o grande grupo de brasileiros mantido no substrato da pobreza.

O segundo grande passo veio com o Plano Real, perto de fazer 16 anos. Sem ele, não seria possível absorver economicamente as classes mais baixas de renda pelo simples e lamentável fato de que não existia processo econômico. Até 1º de julho de 1994, o país movia-se impulsionado apenas pela inflação. Todos se lembram do menosprezo que a própria classe empresarial tinha pelo investimento. O dinheiro rendia mais no banco, ainda que fosse uma rentabilidade ilusória. Essa prostração da iniciativa privada estimulou o desemprego e ampliou a desigualdade de renda.

Com a estabilização criou-se a base sobre a qual os diversos grupos da sociedade brasileira passariam a disputar espaço. Com o empurrão das políticas públicas sociais, o país construiu um significativo mercado interno. Mais e mais cidadãos estão se transformando em consumidores, com poder de compra para usufruírem de confortos nunca antes disponíveis e até de produtos supérfluos, um comportamento típico das classes em ascensão.

Nenhum outro motivo – nem as matas, os rios, os planaltos ou as planícies – explicam o extraordinário interesse dos investidores estrangeiros no país. É o mercado, hoje mais do que nunca, que atrai o capital. Um simples levantamento junto às estatísticas do Banco Central mostra que em 1950, ano que marcou a volta de Getúlio Vargas ao poder, o estoque de investimento direto estrangeiro (IDE) não passava de US$ 307, 117 milhões, a preços de dezembro de 1985, medido pelo critério de paridades históricas (valor considerado nas datas de ingresso).

Em 1985, o estoque daquele tipo de investimento era de US$ 25, 664 bilhões. Dez anos depois, havia dobrado para US$ 52,729 bilhões. Houve ali não apenas o impulso da estabilização econômica e política, mas também a atração de um mercado em potencial que se abria na região com a expectativa do Mercosul que acabou por não vingar. No ano 2000, o estoque de IDE já havia alcançado US$ 103 bilhões. Esses valores, deve-se dizer, somam investimentos, reinvestimento e conversão de empréstimos em investimento direto, a maioria realizada como financiamentos "intercompanies".

De lá para cá, os investimentos diretos estrangeiros têm se ampliado cada vez mais. Nem precisaria olhar as estatísticas. Basta seguir o noticiário cotidiano para conhecer a enorme quantidade de projetos e de plantas sendo instalados no país, nas mais diferentes áreas dos segmentos primário, secundário e terciário. Em dezembro de 2007, ainda pelos dados do BC, o estoque de IDE alcançou US$ 309,6 bilhões e no final de 2009 chegou a US$ 400 bilhões, ou seja, quatro vezes mais em nove anos.

Se somados os investimentos realizados em portfolio, que mistura aplicações em ações com títulos de renda fixa, o capital estrangeiro somou no final de 2009 o significativo valor de US$ 1, 079 trilhão. A mudança que se vê nos últimos dois anos no nível de investimento no país foi sem dúvida muito motivada pela estagnação econômica dos países desenvolvidos, como se sabe.

Mas não se deve menosprezar o papel essencial que a melhoria da distribuição de renda desempenha no desenvolvimento do país. A massa de 92 milhões de pessoas que compõe hoje a classe C – com renda mensal de R$ 1.115,00 a R$ 4.807,00 – é o alvo. E não para aí: existem ainda 30 milhões de miseráveis a serem incorporados ao mercado. Com esse adicional agregado à nova classe C e às classes AB – 20 milhões de pessoas -, o poder de compra da sociedade brasileira não seria nada desprezível.

Para além das implicações puramente econômicas, há influências políticas a considerar a partir das transformações em curso. Até a imagem que o brasileiro tem de si mesmo como povo, classificado que foi por Afonso Celso como "paciente e resignado", tende a desaparecer, com a predominância de um caráter mais participativo e reivindicador.

Maria Clara R. M. do Prado, jornalista, é sócia diretora da Cin – Comunicação Inteligente e autora do livro "A Real História do Real". O artigo foi extraído do jornal Valor.