Capitalismo, Utopia e Barbárie: documentários esmiúçam a política
Há uma semana estreou em uma única sessão diária em três salas de São Paulo o novo documentário em longa-metragem de Sílvio Tendler, Utopia e Barbárie, um balanço sobre o destino da chama socialista no mundo pós-1989. Por que uma grade e um circuito tão restritos?
Por Amir Labaki, no Valor Econômico
Publicado 30/04/2010 17:36
Há quase 30 anos, o mesmo Tendler se tornava o recordista de público para documentários no Brasil com 1,8 milhões de espectadores para O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981). Tratava-se de um simpático perfil do quarteto humorístico (Didi, Dedé, Mussum e Zacharias) que levava então anualmente uma média de 4 a 5 milhões espectadores por filme aos cinemas e era visto semanalmente por dezenas de milhões de telespectadores. Qualidade do filme à parte, a pergunta que fica: o público foi ver um documentário ou foi assistir outro filme, ainda que algo distinto, d’Os Trapalhões?
Cinco anos antes, Tendler levara nada menos que 600 mil espectadores às salas para assistir seu longa de estreia, Os Anos JK, uma corajosa celebração, em pleno governo militar, do ex-presidente cassado e humilhado pela ditadura, morto num acidente de carro apenas dois anos antes.
Tendler aperfeiçoaria em 1984 sua fórmula de documentário histórico, baseado em arquivos e entrevistas, com Jango. Alcançou a marca de um milhão de espectadores num momento em tudo excepcional, pois especialmente favorável ao cinema brasileiro e de rara turbulência histórica, em plena luta pelo restauro da democracia.
Desde então, Tendler manteve-se ativo com uma filmografia de 16 documentários, a maior parte dos quais médias-metragens e produções para televisão, incluindo uma primeira versão do longa agora lançado, o média Memória e História em Utopia e Barbárie (2005). Os três longas-metragens por ele realizados alcançaram a tela grande, a ficção Retrato Falado do Poeta Castro Alves (1998) e os documentários Glauber, O Filme – Labirinto do Brasil (2002) e Encontros com Milton Santos (2007).
Esses dois últimos chegaram aos cinemas já na nova conjuntura de valorização da cultura do documentário entre nós, mas não mobilizaram sequer uma pequena fração da plateia anterior. Como o estilo de Tendler não sofreu nenhuma mudança radical, por que o mercado para suas obras mudou tanto?
Michael Moore
Simultaneamente à estreia de Utopia e Barbárie, desembarcava por aqui, em sessões especiais lotadas do É Tudo Verdade 2010, o mais recente filme de Michael Moore, Capitalismo – Uma História de Amor. Durante o festival, foi noticiado de que sua distribuidora nacional, a Paramount do Brasil, havia decidido lançar o novo MM diretamente no mercado de DVD. Desconheço os bastidores da decisão — mas deve ter sido motivada pelo desempenho fraco por aqui da obra anterior do cineasta, S.O.S. Saúde (2008), e pela relativa decepção no mercado americano da bilheteria em salas de Capitalismo.
Goste-se ou não da obra de Michael Moore, sua trajetória é única e histórica. A construção de sua grife se estendeu por uma década e meia até alcançar o recorde de US$ 119 milhões nos Estados Unidos de Fahrenheit 11 de Setembro (2004). O filme anterior dele, Tiros em Columbine, alcançara dois anos antes US$ 21 milhões, quase quatro vezes mais do que o filme que em 1989 o revelou, Roger & Me (US$ 5,5 mi).
Entre a estreia e a consagração, seu personagem foi lapidado por quatro anos em duas telesséries exibidas por canais por assinatura (TV Nation, duas temporadas, The Awful Truth, mais duas). Moore se associou no entretempo aos poderosos irmãos Weinstein, que garantiram a ele investimentos em lançamento de gente grande.
Em 2003 sua popularidade alcançou o máximo com o Oscar por Columbine. A estatueta impulsionou quase nada o filme vencedor (já então lançado nas salas dos Estados Unidos) mas turbinou, isso sim, sua produção seguinte. Além desse impulso, Fahrenheit se tornou um filme de campanha, um gesto político de oposição a Bush, num momento incomum de radicalização da opinião pública nos Estados Unidos.
Passada a onda anti-Bush, S.O.S. Saúde já o devolveu ao patamar de Columbine, com US$ 24,5 milhões nos Estados Unidos. Capitalismo alcançou US$ 14,4 milhões. Ainda assim, Michael Moore permanece uma exceção. Basta pegar os vencedores mais recentes do Oscar da categoria.
The Cove, premiado neste ano, não deve alcançar a marca de US$ 1 milhão. O Equilibrista, no ano passado, chegou próximo de US$ 3 milhões. Táxi para a Escuridão faturou US$ 275 mil.
Dependerá o desempenho acima da curva do documentário político de circunstâncias histórias excepcionais, como o combate à ditadura, aqui, ou a oposição a Bush, acolá? Estará o sucesso comercial de um filme de não-ficção vinculado à presença na tela de faces populares? Será que também o documentário é refém do sistema de estrelas?