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Em São Paulo, a luta dos estrangeiros em busca de uma vida nova

No pequeno palco na praça Katunta, no Pari, dois rapazes se revezam no controle de uma mesa de som simples, ladeada por duas caixas acústicas. À frente, outros jovens ensaiam passos de danças ao som de canções típicas ou populares cantadas por intérpretes da música andina. Mesmo num dia de chuva, centenas de bolivianos se reúnem para comer salteñas e anticuchos, se relacionarem e manterem vivo no centro de São Paulo um pedaço do país que tiveram de deixar para trás.

Por Priscila Lobregatte

Os dois pratos típicos – um pastel assado recheado de carne ou frango e um espetinho de coração de boi – fazem a alegria daqueles que suspiram de saudade. Em outras barracas, ponchos, flautas e mesmo pacotes turísticos são vendidos a preços populares. Luis Carlos Sebalho, 25 anos, é um dos responsáveis pela música. Há cinco anos em São Paulo, é um dos que sobrevivem trabalhando em oficinas de costura da região do Bom Retiro.

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“Sempre quis conhecer o Brasil e como não havia emprego na Bolívia, acabei ficando por aqui”, conta. Ele trabalha de segunda a sábado – em jornadas que podem chegar a 14 horas diárias conforme a demanda – e ganha em média R$ 600,00. Mas não reclama. “Estou conseguindo ganhar a vida e juntar um dinheiro, o que não conseguia em meu país”. Ele foi dos milhares de imigrantes anistiados em 2009. “Tudo melhora com a regularização porque não precisamos nos esconder. Lula está ajudando muito a comunidade latino-americana”, defende.

 
  Huarachi e Sebalho, o sonho de ganhar mais no Brasil (por Priscila Lobregatte)

Seu companheiro na mesa de som, Adalit Huarachi, 25, trabalha das 7h às 23h no mesmo local em que mora. Em meses produtivos, consegue tirar R$ 1.300,00. “Há muitos bolivianos que escravizam seus conterrâneos e também sofremos problemas de saúde. Muitos de nós acabamos tendo tuberculose porque não há máscaras de proteção”, conta.

Desde que veio para o Brasil com cinco irmãos, em 2007, deixando sua família em La Paz, ele não voltou mais. “Tenho muita saudade, mas preciso juntar dinheiro porque quero abrir um restaurante”, diz, explicando que em seu país fora chefe de cozinha. “Sei fazer comida chinesa e italiana também”, orgulha-se. “Para realizar um sonho, o Brasil é um ótimo país. Está crescendo e progredindo, com ordem e progresso, como diz a bandeira”, lembra. “Além disso, o povo é muito amável. Sentirei saudades quando tiver de voltar”.

Andando de um lado para outro da praça, seu Carlos Soto se divide entre os afazeres da Associação Gastronômica, Cultural e Folclórica Boliviana (que mantém a feira, criada em 1995) e sua barraca, Dom Carlos, uma das mais procuradas para quem deseja uma boa salteña. “Coma de colherinha para não cair”, diz, diferenciando o salgado da empanada argentina. “O nosso tem mais caldo e pedacinhos de batata”, esclarece.

Nascido na capital boliviana, ele está no Brasil há 40 anos. “Eu era ‘vermelho’ e, durante o regime militar, alguns parentes meus que viviam no Brasil ficaram sabendo que eu estava na lista de perseguidos, então, resolvi vir para cá”, relata, dizendo-se socialista. “Mas, adoro São Paulo. Para mim, é como minha cidade natal”.

 
O "vermelho" Dom Carlos torce por Evo (r Priscila Lobregatte)

 
 

Legalizado desde 1972, diz que a anistia aos estrangeiros é um passo fundamental. “É assim que passamos a nos sentir cidadãos. E sinto que hoje, o governo Lula tem feito o que o povo – nascido ou não aqui – precisa que seja feito. Ele não governa para uma classe, mas para todos. E vejo o presidente como resultado da luta daqueles que levantaram a bandeira dos trabalhadores”, enfatiza. Entusiasta da nova fase por que passa a América Latina, diz que “Evo Morales se guia pelo mesmo princípio de Lula e tem sido muito criticado pela elite, mas é adorado pela maioria”.

A feira é uma referência em São Paulo para os imigrantes latino-americanos, mas há outras instituições e associações, como a recém-criada Associação dos Imigrantes Paraguaios residentes em São Paulo. “A Katunta ajudou a integrar a comunidade. Aqui recebemos costureiros e médicos, cozinheiras e advogados, todos com o objetivo de manter viva sua identidade”, diz.

Acolhimento

Quando chegam ao Brasil, em especial em São Paulo, cidade que é a mais procurada pelos estrangeiros à procura de emprego, muitos desses imigrantes não têm onde ficar, nem o que comer. Aqueles que fogem de seus países vêm em situação ainda mais delicada, mas mesmo os que chegam para trabalhar acabam precisando de uma ajuda inicial. Um dos lugares mais procurados é a Casa do Imigrante, ligada ao Centro Pastoral do Migrante, que trabalha em contato com o serviço de assistência social do município e outras instituições públicas.

O local, fundado em 1974, abriga 100 pessoas por vez, sete por quarto, em geral separadas por sexo. Em 2009, 573 migrantes passaram por lá. O tempo máximo de estadia é de seis meses, o que em alguns casos pode ser revisto conforme a situação de cada indivíduo. Eles chegam, em geral, em situação irregular e a instituição também os orienta no processo de regularização. À frente da Casa está o padre Mário Geremia, coordenador e pároco. “Nosso esforço é para que consigam sua documentação porque assim passam a ter melhores oportunidades de trabalho e de vida”.

 
Padre Mário: situação de muitos trabalhadores é um calvário (Priscila Lobregatte)  

Mas, Geremia diz que o grande problema ainda é a grande exploração da mão de obra de maneira análoga à escravidão, especialmente nas oficinas de costura. “Enquanto não mudar o sistema de produção e enquanto os responsáveis não assumirem suas responsabilidades, dificilmente essa situação vai mudar e nossos irmãos continuarão sofrendo pressões, trabalhando em jornadas excessivas, em condições precárias e sem a garantia de seus direitos. É um verdadeiro calvário”, lamenta.

De acordo com o padre, “o governo brasileiro hoje está sendo um modelo para o resto do mundo na acolhida e na abertura do país para os estrangeiros, enfrentando a xenofobia e lidando com os problemas legais. Mas ainda é preciso que haja políticas públicas que os insiram de fato na sociedade porque hoje o migrante ainda é uma pessoa desprotegida e vulnerável”.

Na raiz de sua preocupação está o fato de que, segundo ele, as migrações tendem a aumentar. “A concentração do capital e da riqueza não mudou diante da crise e parece, inclusive, ter aumentado. Além disso, tem havido muitos cataclismos naturais e já existem cerca de um milhão de migrantes climáticos em todo o mundo”.

Enquanto analisa o povo brasileiro como naturalmente acolhedor, Geremia ressalta que ainda há racismo no país, mas de uma parcela específica da população. “Por incrível que pareça o preconceito vem justamente daqueles que um dia foram imigrantes e de seus descendentes. A migração histórica é xenófoba”, argumenta.

Sotaques variados

Por volta das 17 horas, um aroma de comida caseira toma conta da Casa do Migrante. No mesmo horário, homens e mulheres ali hospedados estão retornando depois de um dia atrás de oportunidades de emprego ou da regularização de sua situação. O pátio central vira ponto de encontro e sotaques diferentes se misturam tentando se entender num misto de linguagem falada e gestual.

Por orientação da assistência social da casa, seus moradores não devem ser identificados ou fotografados a fim de preservar sua identidade já que muitos são perseguidos e a maioria vive de maneira irregular.

Maria é o nome fictício da bela jovem de 15 anos que toma conta do irmão, de dois anos, enquanto espera a volta do pai. Nascida no Congo, ela é uma das refugiadas da guerra que já dura cinco anos. Em um desses constantes conflitos, perdeu-se de sua mãe e seu irmão e veio com o pai e outros dois irmãos para o Rio de Janeiro e de lá para São Paulo há dois meses. Antes, passou por Angola. “Até hoje não sabemos o que aconteceu com eles, se estão mortos ou vivos”, lamenta. “Ainda não sei o que vamos fazer, se ficamos ou voltamos. Se pudesse, gostaria de ficar porque aqui é normal; aqui, não tem guerra. Quero que meu país tenha paz porque muita gente já foi morta”. A jovem parou seus estudos na 6ª série, mas sonha retomar a vida. “Quero um dia ter minha família e ser engenheira de petróleo”, conta.

A.A. é um rapaz de 31 anos de Bangladesh. Veio para o Brasil devido a perseguições políticas, depois que seu irmão foi morto pelo mesmo motivo. Além dele, outros seis bengaleses estão na Casa. “Não consigo contato com a minha família; há três meses venho tentando”, diz, em inglês. “Amo o Brasil porque é pacífico, o povo é bom e é aqui que quero continuar. Estou desempregado, mas procurando algo e um dia quero trabalhar com marketing”, planeja. Quando chegou ao país pelo Pará, foi roubado. “Levaram US$ 1.300,00, meu notebook e minha máquina fotográfica”, conta, mostrando o Boletim de Ocorrência.

E.Z., 60 anos, peruano, foi roubado quando saía do Brasil, vindo de Lima, com destino aos Estados Unidos, onde vivem sua mulher e seus filhos. “Fiz isso porque é mais fácil sair daqui clandestinamente para os EUA pelo mar”. Depois de apanhar e ter todo seu dinheiro roubado no terminal da Barra Funda, foi para o hospital. “Fiquei 15 dias internado, sem memória. Bateram-me com soco inglês e chutaram minha cabeça”, recorda. Há dois meses na Casa, diz que deve sua vida “à caridade dos brasileiros”. “Se não fosse isso, morreríamos de fome. Amo o Brasil e seu povo, mas preciso continuar minha jornada para reencontrar minha família”, lamenta.

Padre Mário Geremia se lembra de memória muitas dessas histórias. E vê um elemento em comum a todas: a desigualdade social. “Não é justo que alguns tenham tanta riqueza enquanto a maioria não tenha nada. Devemos lutar contra isso porque quando se luta pela justiça, o necessário é suficiente. Afinal, o que queremos: uma economia a serviço da vida ou a serviço da concentração?”, questiona. E finaliza lançando uma semente: “se foi possível construir o capitalismo, responsável por tudo isso, acho que é possível fazemos algo diferente”.