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Conselho de Defesa Sul-Americano: unidade na prática

A aprovação do Estatuto do Centro de Estudos Estratégicos de Defesa pelos ministros de defesa dos 12 países da Unasul, na cúpula de Guayaquil, no começo de maio, aponta para a solução de uma aguda falência histórica na região em matéria de produção de conhecimento e avaliações estratégicas que girem em torno da Defesa numa perspectiva regional.

Por Germán Montenegro*, em Opera Mundi 

O Conselho de Defesa Sul-Americano, integrado pelos ministros de defesa da região, é o marco no qual será implementado este novo instituto. Este empreendimento está em processo de consolidação, mas já atingiu resultados palpáveis.

A decisão de criar este conselho foi aprovada em dezembro de 2008 por todos os países da nascente Unasul. Trata-se de uma iniciativa que tem como finalidade criar um foro para tratar os temas da agenda sul-americana de defesa, valorizando as perspectivas e enfoques regionais, estabelecendo uma instância de diálogo institucionalizado no nível dos Ministérios de Defesa de seus países, algo que não existia na região.

Um diálogo e cooperação intensa já aconteciam entre as Forças Armadas dos nossos países, e devem continuar incentivados, já que alimentam a confiança mútua e contribuem para consolidar um ambiente de tranquilidade e paz.

No entanto, não se pode perder de vista que este é um processo que deve ser conduzido politicamente. Seus objetivos e sua direção devem ser definidos e executados respectivamente pelos governos democráticos da região e instrumentalizados através de seus delegados especializados, os ministros de defesa. São eles que devem definir o processo de cooperação militar em formação. Trata-se de ampliar a condução civil e política de defesa e das Forças Armadas no âmbito internacional, em um contexto estratégico crescentemente incerto e complexo.

Durante as últimas duas décadas e de maneira paralela ao agravamento do descrédito e da falta de operacionalidade dos mecanismos interamericanos clássicos surgidos a partir da Segunda Guerra Mundial e no calor do início da Guerra Fria, dedicados à segurança internacional, à paz e à defesa na Organização dos Estados Americanos e no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), proliferaram iniciativas políticas de diversos alcances, favoráveis a criar espaços institucionalizados de diálogo e intercâmbio de ideias para a construção de uma agenda específica da defesa com diversos alcances e magnitudes.

As cúpulas de ministros de defesa das Américas, iniciadas em 1995, são um exemplo neste sentido. O alcance continental desta iniciativa teve como consequência a inclusão de Estados com perspectivas, problemas, organizações institucionais e marcos legais diversos, quando não contraditórios. Muitos dos países que participam deste fórum nem sequer possuem ministério de defesa e alguns não possuem sequer Forças Armadas.

Estes encontros de cúpula continuam se desenvolvendo – a última reunião aconteceu no Canadá em 2008 e a próxima será na Bolívia este ano –, mas seu dinamismo e impacto continuam sendo frágeis.

Em contrapartida, desenvolveram-se numerosas iniciativas de alcance multilateral que envolveram os Ministérios de Defesa e às vezes o de Relações Exteriores sobre problemas e assuntos concretos – por exemplo o “Grupo 9×2” referente ao Haiti. Sem dúvida estas reuniões, tanto por seu tamanho reduzido como pelos temas específicos tratados, não permitiram elaborar e gerir de maneira sustentada uma agenda de defesa sul-americana.

Por certo, este é um momento propício para apoiar este tipo de iniciativa, em função da evolução recente das tendências estratégicas a nível mundial e seu desenvolvimento no âmbito regional.

Para além do fato de a região sul-americana ser uma zona de relativa calma em comparação a boa parte do mundo, temos de registrar que, durante os últimos anos, aconteceram conflitos e atividades militares relativamente intensas.

A situação entre Equador e Colômbia, a tensão que se verifica entre este país e a Venezuela, a presença da Quarta Frota dos Estados Unidos e a instalação de bases norte-americanas na Colômbia, o convite para que embarcações militares russas participem de manobras na Venezuela e a aproximação do Irã com alguns países da região são alguns acontecimentos sobre os quais se apoia este registro.

Além disto, há as disputas por recursos naturais (que por certo não se escasseiam em nossa região) que se estabeleceram fortemente nas agendas de segurança internacional.

Ao mesmo tempo, é necessário observar acontecimentos que mostram uma situação mais complexa em matéria de segurança internacional, o que tende a aquecer o cenário sul americano. Esta situação está caracterizada pela existência de uma grande potência militar –Estados Unidos –, países com estatura de potência e pretensões crescentes e competitivas, e atores não estatais com inegáveis influências em assuntos nacionais e internacionais. Também nos últimos anos assistimos a uma deteriorização relativa do sistema multilateral e a uma certa predisposição para ações unilaterais e coercitivas.

É nesse contexto que durante os últimos anos a questão dos recursos naturais se instalou como um assunto importante em matéria de segurança. Esta perspectiva é também relevante para a região latino-americana, em função da importância crescente que revestem estes recursos, presentes em diversos locais da região.

As reservas de petróleo, gás e minerais que se encontram no fundo do mar e em diversas partes do continente, a descoberta de reservatórios de lítio, a existência de importantes áreas para a pesca no Atlântico Sul – em contraste ao esgotamento destas áreas nos mares do norte – são algumas das situações em que a questão dos recursos naturais está em jogo.

A escalada recente do conflito político-diplomático entre a Argentina e o Reino Unido em torno da soberania das Ilhas Malvinas, gerado pela decisão do governo das ilhas de outorgar licenças para a exploração petrolífera em águas marinhas e nas cercanias destas ilhas, a colocação em operação da plataforma Ocean Guardian e o descobrimento de jazidas configuram uma modalidade de situação de conflito em torno de recursos naturais que pode se proliferar e a ficar mais aguda no futuro.

Por fim, neste marco dinâmico, que claramente pode ter impacto na região em termos de segurança internacional e de defesa, é que a consolidação de uma instância sul-americana permanente e efetiva de diálogo, consulta e intercâmbio de opiniões políticas em matéria de defesa adquire significação.

Em um contexto regional que deve reconhecer a diferença entre os problemas e perspectiva em matéria de defesa, por exemplo, entre a Zona Andina e o Cone Sul ou o norte da América do Sul, a continuidade desta iniciativa está associada à identificação e ao aprofundamento de afinidades em torno das quais ela pode avançar, e não agravar as diferenças que efetivamente também existem.

Neste sentido, por exemplo, é importante promover ações para consolidar a direção política democrática sobre os assuntos da defesa e das Forças Armadas, apontar mecanismos de construção de confiança mútua, afiançar a região como uma zona de relativa paz e estabilidade, desenvolver laços em matéria de produção para a defesa e investigação em ciência e tecnologia aplicada à Defesa.

Essas são algumas das linhas de ação sobre as quais parece existir um claro consenso sobre o qual devemos construir, de alguma maneira, e reconhecendo particularidades, uma identidade regional de defesa.

A colocação em funcionamento do Centro de Estudos Estratégicos de Defesa se torna, portanto, sumamente relevante. Assim entendem duas potências do sul, Brasil e Chile, que garantiram na cúpula de Guayaquil recursos concretos para financiar parte do equipamento do novo organismo internacional. Da mesma forma, por iniciativa do Chile, decidiu-se que o diretor do centro seja um cidadão argentino e que seu subordinado seja alguém de outro país da Unasul.

O Centro de Estudos Estratégicos da América do Sul, que deverá abrir suas portas em novembro em Buenos Aires, tem um antecedente do Ministério da Defesa argentino, o Ceepade Manuel Belgrano, criado pela presidente Cristina Fernándes de Kirchner em 2008 e que atualmente tem em seu encargo o desenvolvimento de oito projetos de pesquisa dentro de suas cinco sedes (os Institutos Universitários das três Forças Armadas, mais o Estado Maior Conjunto e a Escola de Defesa Nacional).

Por isso, no atual contexto – tão dinâmico e complexo – a região deve construir uma capacidade “própria” para questionar a evolução das situações, produzir diagnósticos, gerar novas perspectivas que lhe permitam abordar estes assuntos e também produzir opções de ação que orientem as decisões dos Estados.

* Germán Montenegro é professor nas universidades nacionais argentinas de Buenos Aires (UBA) e Quilmes (UNQ), na Universidade de Belgrano (UB) e na Escola de Defesa Nacional (Edena). Foi Secretário de Estratégia e Assuntos Militares do Ministério da Defesa da Argentina (2006-2010).