Homero Costa: Sobre o patrimonialismo no Brasil

Em discurso recente, o candidato do PSDB à presidência da República, José Serra, fez uma dura crítica ao que chamou de “patrimonialismo selvagem” – definido como o “uso do governo como propriedade privada” – que afirmou existir no Brasil.

Homero
Para ele, o país está “no momento mais patrimonialista da nossa história (…) nem a República Velha, que era um regime oligárquico, tinha um patrimonialismo selvagem como o de hoje”. Segundo o candidato “as práticas patrimonialistas voltaram ao Brasil em sua plenitude, em tudo que tinha de pior”.

Para José Serra, quando o PSDB esteve no poder (anos do governo Fernando Henrique Cardoso) houve uma diminuição do patrimonialismo. Será? Fernando Henrique Cardoso no livro “Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional” analisa a formação social brasileira, fazendo uma crítica a herança do sistema colonial português, e mostra no entanto que as desigualdades sociais transcendeu à gestão privada do Estado e, mais ainda, no seu governo, não conseguiu (nem pretendia) a superação de um Estado que se caracterizou pela defesa dos interesses privados. Foram esses setores, aliás, quem mais lucrou com os processos (no mínimo discutíveis) de privatização em seu governo.

O sentido da crítica é claro: trata-se do Estado, que é “demonizado”. Nesse tipo de crítica e partindo de quem partiu, está implícito a “divinização” do mercado, como “reino da virtude”. .

Mas, afinal, o que é mesmo patrimonialismo? Num dos mais completos dicionários da língua portuguesa, o Dicionário Houaiss, é definido como “Forma de organização social que se sustenta no patrimônio considerado como conjunto de bens, materiais e não materiais, mas com valor de uso e de troca, e que podem pertencer a um individuo ou a uma empresa, pública ou privada”.

Nas ciências sociais, o conceito tem sua origem em Max Weber (l864-1920) que, essencialmente trata da privatização do público, ou seja, a indistinção das esferas públicas e privadas e o uso privado da chamada “coisa pública”.

No Brasil, o uso original do conceito, utilizado para compreender e analisar a política brasileira, foi feito por Sergio Buarque de Hollanda (1902-1982) no seu livro clássico “Raízes do Brasil” (1936), desenvolvido depois em outro livro também clássico: “Os donos do poder” de Raymundo Faoro (l959). Em ambos, há uma análise da formação do Brasil, desde o início da colonização. E o sentido é o entendimento de que as instituições políticas tem no patrimonialismo uma das características mais marcantes do desenvolvimento do Estado brasileiro, no qual a dicotomia de público e privado não apresenta uma separação muito distinta.

Na análise pioneira de Sérgio Buarque, utiliza-se do conceito para caracterizar um dos aspectos mais importantes herdados do processo da colonização portuguesa, que moldaram a país, com modelos institucionais patriarcais, com uma prática do uso privado do Estado.

O patrimonialismo é para ele o desdobramento do que chama de “personalismo” – compreendido como forma de viver em sociedade que enfatiza os vínculos pessoais, em detrimento de inclinações impessoais. É o primado das emoções e sentimentos e não do uso da razão, que é uma das características da modernidade. Nesse sentido, não há uma separação nítida entre o público e o privado e o Estado (e o que chama de “estamento burocrático” – que é a camada ou fração de classe organizada politicamente no Estado) é usado como instrumento de poder, ou seja, o instrumento de poder do estamento é o controle patrimonialista do Estado.

Um das críticas mais pertinentes e contundentes desse conceito é de um dos mais importantes sociólogos brasileiros: Jessé Souza. No livro “A ralé brasileira: quem é o como vive” (especialmente na 1ª. Parte) (Editora UFMG, 2009) analisa os conceitos de patrimonialismo e do personalismo como “marcas fundamentais da cultura brasileira” e que se constitui para ele na interpretação que irá dominar tanto a academia quanto o senso comum brasileiro (aí incluído a imprensa) até nossos dias (p.55).

Esses conceitos derivam de outro conceito fundamental: o de homem cordial “ ainda hoje extremamente influente” com uma das categorias centrais das ciências sociais brasileira. Para ele se Gilberto Freyre pode ser considerado como o pai-fundador da concepção dominante de como o brasileiro se percebe no senso comum quanto na dimensão cientifica, Sérgio Buarque de Hollanda foi o grande “sistematizador” das ciências sociais brasileiras do século XX.

Para o autor, Sérgio Buarque apenas transforma em “negativo” o que antes era “positivo” em Gilberto Freyre, ou seja, a glorificação do que ele chama de “herança pré-moderna: “esse é o mote que confere o “charminho” crítico às leituras de Buarque e, por extensão, a todas as leituras liberais pseudocríticas da realidade brasileira que se seguem a ele”. No fundo, está subjacente uma idéia de “atraso”, de um Estado patrimonialista que entrava o desenvolvimento econômico, como se o progresso econômico por si mesmo fosse panacéia para resolver todos os problemas da desigualdade, marginalização e subcidadania; como se a expansão do mercado (espaço da “virtude” por excelência) fosse à resolução de todos os problemas sociais.

A tese do patrimonialismo é para ele a nossa “ideologia política” conservadora por excelência, na medida em que “ela nos explica o mundo de modo fácil e coerente, sendo ao mesmo tempo, a melhor maneira de manter privilégios arraigados entre nós”.

Creio a crítica ao conceito de patrimonialismo colocado nestes termos é pertinente, da mesma forma que serve também para uma crítica ao discurso pretensamente crítico em relação ao Estado. Porque a crítica não é ao Estado Capitalista e sua necessária superação, mas a atribuição de todos os males ao “Estado”, atribuindo ao Mercado todas as virtudes, ou seja, como se o mercado fosse apenas virtude.

O objetivo dos críticos não é certamente acabar com os privilégios, mas manter o Estado a serviço dos interesses privados. Como afirma Jessé Souza todos falam em “cortar gastos do Estado” como um bem em si, para além de qualquer justificação, porque o “Estado, de todo modo, apenas gere mal, por definição todos os recursos. Melhor seria deixar o dinheiro com o Mercado, que gera recursos, por definição, com eficiência” e conclui “o caro leitor consegue imaginar uma melhor ideologia para a manutenção de privilégios dos que lucram com nossa desigualdade?”

 

Homero de Oliveira Costa é Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN