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Terrorismo: No final da ditadura, bombas contra a democracia

Há trinta anos um atentado terrorista matou a secretária da OAB, Lyda Monteiro; aquela ação fez parte da resistência da direita contra os avanços da democracia e constitui um capítulo ainda não esclarecido da repressão da ditadura de 1964

Por José Carlos Ruy

Na tarde do dia 27 de agosto de 1980 uma explosão na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, no Rio de Janeiro, matou a secretária Lyda Monteiro da Silva, que tinha 60 anos de idade.

Era uma carta bomba detonada pela própria vítima ao abrir o pacote enviado pelo Correio. No mesmo dia ocorreram outros atentados: uma carta semelhante feriu gravemente, na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, José Ribamar de Freitas, assessor do vereador carioca Antônio Carlos de Carvalho (PMDB), que perdeu um braço e um olho em consequência da explosão. Outras cinco pessoas foram feridas. Antes, na madrugada daquele dia, outra bomba havia destruído a redação carioca do jornal Tribuna da Luta Operária, publicado pelo Partido Comunista do Brasil, que se encontrava em uma situação de semiclandestinidade. Duas outras bombas não chegaram a explodir: uma enviada para a sede da Associação Brasileira de Imprensa e outra, de alto poder explosivo (tinha capacidade para destruir um prédio de quatro andares), em um edifício da Sunab, no Rio de Janeiro.

A ditadura militar estava em crise terminal. A aprovação da anistia, exatamente um ano antes (em agosto de 1979), permitiu uma atividade dos partidos e lideranças democráticos e de esquerda que, embora limitada pela perseguição policial da ditadura que ainda não chegara ao fim, intensificava a luta pela democracia e pelo fim do arbítrio. Era uma situação ambígua onde, graças à anistia "recíproca" adotada pelos dirigentes da ditadura, os agentes do aparato repressivo continuavam ativos contra o avanço da luta democrática.

Um levantamento publicado em setembro de 1980 pelo jornal Movimento ilustra como o aparato repressivo no período do crescimento da luta de massas contra a ditadura mudou a forma de agir. Com menor espaço para atuar sem controle, como ocorria no auge da repressão, partiu para ações armadas contra pessoas e organizações que, nos anos anteriores, eram alvo de prisões, torturas e assassinatos nos porões da ditadura.

Assim, entre 1971 a 1975 não há registro de atentados terroristas promovidos pela direita, mas o número de desaparecidos contava-se às dezenas (51 em 1971; 44 em 1972; 43 em 1973; 13 em 1974; 12 em 1975). Esse número declina a partir de 1976 (quando foram 8; em 1977, 1; 1978, 2; 1979, 3; 1980, zero). Em contrapartida, os atentados terroristas passam de 8 em 1976, para 6 em 1977; 19 em 1978; 10 em 1979; 29 em 1980. E continuaram nos anos seguintes. Um levantamento publicado no portal Wikipedia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Abertura_pol%C3%ADtica) relaciona alguns destes atentados, mostrando que eles ocorreram em praticamente todo o país, no Distrito Federal e em sete estados (Bahia, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo).

Esta extensão tão grande revela que se tratava de uma ação coordenada de agentes das forças repressivas com o objetivo de fortalecer a ditadura em crise e prolongar aquele regime contra o qual a sociedade e as forças democráticas se organizavam e cujo fim acelerava-se.

Muitos anos depois, em abril de 2010, um dos comandantes da repressão durante a ditadura , o general Newton Cruz – num depoimento ao jornalista Geneton Moraes Neto, no Dossie GloboNews – admitiu ter conhecimento daquelas ações terroristas. "Era moda aquele negócio de bomba", disse cinicamente o general referindo-se aos ataques contra bancas de jornal que vendiam os periódicos da imprensa alternativa de oposição à ditadura.

Além de atuar para assassinar oposicionistas, destruir suas organizações e amedrontar os militantes da democracia, um dos alvos daquela "moda" terrorista era calar a voz das publicações ligadas à oposição e às organizações democráticas. Assim, vários jornais foram atacados: Tribuna da Luta Operária no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980 e em São Paulo, 22 de abril de 1984; Em Tempo (Belo Horizonte, 23 de maio de 1980); Hora do Povo (Rio de Janeiro, 30 de maio de 1980); Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro, 26 de março de 1981); Gráfica Americana (Rio de Janeiro, 3 de abril de 1981).

Na outra ponta, agiam para sufocar economicamente aquelas publicações inviabilizando sua comercialização. Houve ataques contra livrarias em São Paulo (livrarias Capitu, Livramento e Kairós, em abril de 1980) e Belém (livraria Jinkings, 18 de novembro de 1980). Entre abril a setembro de 1980, bancas de revistas que vendiam jornais como Movimento, Pasquim, Tribuna da Luta Operária, Tribuna da Imprensa, Coojornal, Em Tempo e outros da luta democrática, foram atacadas a bomba ou incendiadas em Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Belém e São Paulo. O objetivo era intimidar seus proprietários para que deixassem de vender aqueles jornais.

O atentado mais marcante realizado pelo terrorismo da direita ocorreu em 30 de abril de 1981, durante a realização de um show em homenagem ao Dia do Trabalhador no RioCentro, Rio de Janeiro. A intenção era explodir bombas no local onde 9.892 pessoas acompanhavam as apresentações e, depois, atribuir a responsabilidade pelo atentado a organizações de esquerda, justificando uma onda repressiva que fazia parte do plano. A ação era articulada. Aqui vale um depoimento pessoal: era uma quinta-feira e, naquela noite, eu, juntamente com colegas da redação do jornal Movimento, estávamos finalizando a edição que circularia na semana seguinte. Num dado momento, atendi ao telefone e uma voz recomendou que alertasse aos responsáveis pelo jornal que iria ocorrer uma "operação gaiola" com a prisão de lideranças da oposição. Colocamos o telefonema na conta dos trotes que eram comuns e demos risada; só na manhã do dia seguinte, com as notícias da bomba no RioCentro, conseguimos ter uma idéia da dimensão do risco. E também da dimensão nacional daquela articulação terrorista.

Mas o atentado falhou, tragicamente para os terroristas envolvidos, e também para a reputação e o que restava do prestígio da ditadura militar. Ao preparar a bomba, ela explodiu e feriu gravemente dois militares, o sargento Guilherme do Rosário (que morreu) e o capitão Wilson Dias Machado. O destino do capitão é um exemplo da impunidade dos terroristas e do acobertamento, pelas autoridades da ditadura militar, da ação dos agentes da repressão. Promovido a coronel, há notícias de que ele é professor no Colégio Militar de Brasília.

A ação terrorista da direita e de agentes da ditadura militar constitui um dos capítulos ainda não esclarecidos do espólio daquele regime e faz parte das explicações que a sociedade brasileira exige e que ainda são sonegadas há um quarto de século depois do fim dos governos dos generais. O restabelecimento da verdade histórica é precondição para a reconciliação democrática da nação consigo própria.