Sem categoria

Em entrevista, membro do Ipea fala sobre igualdade de gênero

Natália Fontoura para o Portal CTB: "Precisamos mudar o pensamento de que ainda são as mulheres responsáveis pelos afazeres domésticos"

De oito anos para cá, o Brasil está vivendo um período de grandes e decisivas mudanças rumo a um futuro melhor para a população, principalmente no que se refere à geração de empregos formais.

Segundo dados do Ministério do Trabalho, atualmente as mulheres ocupam um espaço maior no mercado de trabalho. O estudo aponta que 16,2 milhões de mulheres, hoje, estão no mercado de trabalho formal, enquanto em 2002, a participação feminina era de 11,4 milhões. Isso representa um crescimento de 40,9%.

Para Natália Fontoura, coordenadora de Igualdade de Gênero do Instituto de Pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os números mostram como elas vêm ganhando espaço e conquistando autonomia para realizações pessoais.

Em entrevista a Cinthia Ribas, do Portal CTB, a coordenadora comenta o que representa esse crescimento para a sociedade, bem como a necessidade da efetivação de medidas que garantam esses avanços, como a eleição de um governo com vistas ao bem estar social aliado ao desenvolvimento do país e a mudança do pensamento de que são as mulheres responsáveis pelos afazeres domésticos.

Portal CTB: Recente estudo do IPEA apontou que, em 10 anos, a participação masculina no mercado de trabalho se manteve praticamente estável, enquanto das mulheres, aumentou de 52% para 57,6%. Em sua opinião a que se deve esse crescimento?
Natália Fontoura: O crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho já vem ocorrendo há algumas décadas e se deve a uma série de fatores presentes na sociedade brasileira. As mulheres estão mais escolarizadas, têm menos filhos e se fazem mais presentes nos espaços públicos. Tudo isto contribui para sua entrada e permanência no mercado de trabalho. Outro eixo de interpretação enfoca a redução dos salários e do poder de compra dos trabalhadores homens, que acabou levando à entrada das mulheres no mercado de trabalho, por necessidade das famílias. Mas certamente isto também decorre de mudanças culturais, acerca de como as mulheres são vistas na sociedade, como as famílias se organizam. Em geral, as mudanças culturais ocorrem de maneira muito lenta, mas não se pode negar que vêm acontecendo nas últimas décadas em nosso país e em muitas partes do mundo.

Portal CTB: Quais seriam as medidas necessárias para garantir a continuidade desses avanços?
NF: Temos que pensar nas barreiras que permanecem para a entrada das mulheres no mundo do trabalho. Certamente, a maior delas está no fato de que, apesar de estarem mais presentes no mercado de trabalho, ainda são as mulheres que respondem pela grande parte do trabalho doméstico. Isto é, o antigo arranjo ‘homem provedor/ mulher cuidadora’ está sendo substituído por algo como ‘homem co-provedor/mulher cuidadora e co-provedora’. Isto se deve a traços culturais muito arraigados em nossa sociedade. A maior evidência de que é muito difícil alterar este quadro está na sua permanência apesar de todas as mudanças nas escolas, nas universidades e no mercado de trabalho. No espaço doméstico, quando se trata dos afazeres domésticos e dos trabalhos de cuidados, ainda são as mulheres que respondem, independentemente de sua condição de trabalho. Diante disso, as medidas necessárias para garantir que mais mulheres possam trabalhar no mercado se assim o desejarem se referem a viabilizar serviços públicos de cuidados (escolas em tempo integral, creches, serviços de atendimento a pessoas idosas e a pessoas com deficiências, lavanderias e restaurantes populares, transporte escolar público, entre outros). Além disso, são necessárias medidas que possam estimular o compartilhamento de tarefas e que possam promover a co-responsabilização de Estado, empresas e famílias no que diz respeito à reprodução social. Neste sentido, podemos ter maiores licenças-paternidade, por exemplo, e outros incentivos à paternidade ativa e responsável; folgas negociadas para acompanhar parente enfermo ou atividades escolares de filhos – que possam ser usufruídas por trabalhadores e trabalhadoras; creches nas empresas etc. A Organização Internacional do Trabalho adota o conceito de “trabalhadores e trabalhadoras com responsabilidades familiares”. Sua convenção nº 156, que trata disso, jamais foi ratificada pelo Brasil. A partir desse conceito, governos, empresas e trabalhadores (as) podem garantir que os trabalhos de cuidado sejam oferecidos àqueles que precisam (crianças, idosos, pessoas com deficiência, pessoas doentes) sem que isso prejudique somente as mulheres e sua possibilidade de participar do mundo do trabalho e a forma como nele se inserem.

Portal CTB: Apesar das mulheres ocuparem, cada vez mais, espaço no mercado de trabalho, muitas ainda encontram dificuldades de permanência por conta da dupla (e extensa) jornada, optando por empregos precários. Quais as medidas cabíveis para reverter esse quadro?
NF: As famílias necessitam de serviços públicos que dêem suporte no que diz respeito aos trabalhos de cuidado e aos afazeres domésticos. Mas, além de assumir que o Estado também tem responsabilidade nas atividades de reprodução social – assim como as empresas –, é preciso promover a mudança de hábitos arraigados. Isso pode ser feito não somente por meio de atuação junto às crianças (na educação, na capacitação de professores, no material didático) e de campanhas de conscientização, por exemplo, mas também por meio da adoção de medidas concretas que contribuam para desfazer o vínculo (que existe fortemente na cabeça dos empregadores) entre mulher e responsabilidades pelo cuidado. A adoção de uma licença parental, por exemplo, que possa ser usufruída pelo pai ou pela mãe, pode contribuir para isso. A possibilidade de (ou, ainda melhor, o incentivo a) trabalhadores do sexo masculino assumirem responsabilidades familiares sem prejuízo de sua colocação no local de trabalho também. Trata-se de abandonar a concepção de um trabalhador-padrão, inteiramente disponível para o trabalho – porque tem suporte em casa para a realização do trabalho doméstico – e adotar a concepção de um trabalhador ou de uma trabalhadora que tem responsabilidades profissionais, mas que também tem responsabilidades familiares, as quais não devem ser objeto tão somente de arranjos e acordos privados, mas que são interesse de toda a sociedade. É interesse de toda a sociedade que crianças cresçam com saúde, proteção e atenção, e também que homens e mulheres tenham qualidade de vida e que possam encontrar equilíbrio entre trabalho, família e vida pessoal.

Portal CTB: A responsabilização das mulheres pelos trabalhos domésticos não remunerados é apontada como fator preponderante na desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Quais as conseqüências dessa mentalidade presente na sociedade e com maior intensidade das camadas mais pobres?
NF: As conseqüências são perversas para a maior parte das mulheres e principalmente para as mais pobres, que têm muito menos possibilidades de pagar por serviços de cuidados disponibilizados pelo mercado, muito mais prejuízos quando se ausentam do mercado de trabalho e grandes dificuldades de acesso a serviços. As conseqüências diretas da responsabilização feminina pelos trabalhos domésticos são que as mulheres participam menos do mercado de trabalho; quando participam, têm mais dificuldade de encontrar emprego (maiores taxas de desemprego); ocupam postos mais precários; têm jornadas remuneradas menores (involuntariamente) e salários menores que os dos homens. Além disso, concentram-se fortemente em alguns setores de serviços que reproduzem a divisão sexual do trabalho. São as mulheres que se encontram mais nos serviços de educação, saúde, assistência social etc., enquanto os nichos do mercado de trabalho que tendem a ser mais valorizados são tradicionalmente masculinos.

Portal CTB: Qual a importância de se eleger um governo comprometido com questões sociais aliadas ao desenvolvimento para a criação de políticas públicas nesse sentido?
NF: As políticas públicas citadas – que têm por objetivo gerar transformações nas relações de gênero e promover a inserção das mulheres no mercado de trabalho – devem ser aliadas das políticas sociais de educação, saúde, assistência social e políticas de emprego e renda. Certamente, a existência de políticas sociais robustas traz grandes benefícios para a maioria da população. Mas podemos ter políticas sociais que reproduzem os tradicionais papéis desempenhados por homens e mulheres. Isto é, podemos ter grandes melhorias mas também aliadas a permanências nas desigualdades entre homens e mulheres. Devido a isso, é importante a incorporação da perspectiva de gênero às políticas públicas. O gestor ou a gestora pública devem levar em conta que os beneficiários de suas ações não constituem uma população homogênea. E algumas características são determinantes no que diz respeito à possibilidade de se tornar vulnerável, e sexo é uma delas.

Portal CTB: A Agenda da Classe Trabalhadora, aprovada na Conclat, traz propostas unitárias das centrais para o desenvolvimento do país com vistas às questões sociais, como da igualdade de oportunidades e o combate à discriminação. Qual a importância do documento na aplicação de propostas que ajudem na mudança desse cenário de desigualdade entre homens e mulheres?
NF: Certamente, a incorporação dos temas da igualdade de oportunidades e do combate à discriminação na pauta de trabalhadores e trabalhadoras somente qualifica o debate. E possibilita que as centrais sindicais possam pensar conjuntamente em medidas a serem demandadas e negociadas com empregadores para que se reduzam as desigualdades entre homens e mulheres no mundo do trabalho. Temos muitos exemplos nos quais nos inspirarmos, dentro do nosso país (em alguns acordos de negociação coletiva), nos países vizinhos e em países mais desenvolvidos. Certamente, são medidas que trarão benefícios para toda a sociedade.

Fonte: Portal CTB