Sem categoria

Michael Krätke :A grande jogatina com o pão de cada dia

Bancos e fundos especulativos ganham com a fome de milhões. Alguns conhecem a história: um autor quer escrever uma peça de teatro sobre um herói do mundo das finanças. O dramaturgo quer entender o que move o seu personagem. Mas ele não consegue explicar o que acontece na Bolsa de Valores.

Por Michael Krätke*

A Bolsa de cereais de Chigaco mostra-se como algo incompreensível; “um saco sem fundo” de trigos, onde os próprios atores não entendem o que acontece. A peça nunca foi escrita. Em vez de escrevê-la, o autor Bertold Brecht, começou a estudar Karl Marx. Conforme se diz, só então ele teria passado a entender as suas próprias peças de teatro. Isso tudo ocorreu em 1928, um ano depois começaria a Grande Depressão.

Fazer negócio nas Bolsas de valores pode provocar a morte, pois nas Bolsas de mercadorias de todo o mundo também são negociados os meios alimentícios. E é aí é onde determina-se o seu preço, que terá efeito sobre bilhões de pessoas.

Geralmente, a miséria não é equiparada com a morte. Mas para mais de um bilhão de habitantes, a subalimentação é um fato real. Assim como é real a gigantesca quantidade de bens alimentícios que é produzida anualmente e que seria suficiente para alimentar a população atual do mundo inteiro. Entretanto, o mundo passa de uma crise de alimentos a outra.

Há pouco tempo, na capital de Moçambique, Maputo, milhares de pessoas protestaram contra os preços em elevação do pão e da energia. A polícia interveio com brutalidade, provocando a morte de pelo menos dez manifestantes. Já em 2007 e 2008, os preços de muitos produtos alimentícios subiram dramaticamente. Eles duplicaram ou triplicaram no caso do trigo, do arroz e do milho, chegando a atingir alguns de seus maiores valores dos últimos trinta anos. O arroz, por exemplo, subiu quase 180% em um período de menos de dois anos.
 
Enquanto quase todo mundo deteve-se na análise da crise financeira e bancária, por trás dela desenrolava-se uma brutal crise dos produtos alimentícios. Pelo menos, 120 milhões de seres humanos foram atingidas pela onda da miséria. Em algumas nações do hemisfério sul, que graças à globalização deixaram de exportar produtos alimentícios e se viram obrigados a importá-los, ocorreram levantes contra a fome. Em mais de 30 países, a população realizou protestos e manifestações.

Agora, a conjuntura econômica recupera-se em alguns países, mas, em todo o mundo, os preços do café, do cacau, do açucar e dos derivados do leite atingem seus maiores valores. O mesmo ocorre nas Bolsas de mercadorias com os cereais. Os principais negócios são feitos em Nova Iorque ( Nymex/Comex ) e em Chigado ( CBOT e CME ). Na Europa, os produtos alimentícios e as matérias-primas são negociados em Londres, Paris (Matif), Amsterdam e Frankfurt am Main ( Eurex ), e mais recentemente também nas cidades alemãs de Mannheim e Hannover. Em todos esses lugares, os produtos agrários não são negociados em natura, mas como unidades estandartizadas. Os contratos de compra e venda baseiam-se em prazos determinados no futuro, chamados em inglês de “Futures”. Desse modo, por exemplo, negocia-se o trigo antes de que ele seja plantado – um negócio especulativo envolvendo os rendimentos e os preços dos meses ainda vindouros.

O preço do pão na Rússia

No final de 2007, antes da crise, os pesos pesados do mercado financeiro – tendo à frente os fundos especulativos -, passaram a especular com os produtos alimentícios e as matérias-primas. As Bolsas de derivativos e futuros foram invadidas por eles, o que provocou uma explosão nos preços das matérias-primas e do petróleo. De forma inevitável, subiram também os preços dos alimentos, mesmo daqueles que normalmente são negociados nas bolsas de mercadorias normais. Apesar da crise, os bancos e os fundos especulativos ganharam ainda mais dinheiro com isso. Na Alemanha, o Deutsche Bank fez propaganda de ótimos ganhos junto aos seus investidores graças ao aumento dos preços dos produtos agrícolas.

Em setembro de 2010, houve pânico com a ameaça de bancarrota estatal de países como a Grécia, Espanha e Portugal, o que fez com que suas ações e juros baixassem. Exatamente por isso, os especuladores voltaram a investir nas Bolsas de derivativos e futuros, tentando se manter através do negócio com as matérias-primas e os alimentos.

Na Austrália – um dos maiores exportadores mundiais de trigo -, entre 2007 e 2008, houve uma má colheita de cereais. Esse ano, a catástrofe da seca na Rússia teve efeito na colheita e provocou uma alta de 20% no preço do pão. E quando o governo de Moscou limita a exportação de alimentos – o Primeiro-Ministro Wladimir Putin acaba de prorrogar a proibição de exportação do trigo -, isso provoca alegria entre os especuladores. De fato, nem todos os alimentos agrícolas são negociados nas Bolsas de derivativos e futuros, mas justamente alguns daqueles que são os mais importantes para a alimentação da população no mundo: trigo, arroz, soja e milho.

O orgão de fiscalização do governo americano para essas transações (CFTC) constatou, várias vezes, que a definição dos preços agrícolas já não tem mais relação alguma com a oferta e a demanda, ou com as perspectivas de plantio e de venda. A prática dominante nos mercados provoca uma extrema oscilação nos preços. Mesmo diante de um aumento mínimo, ou mesmo da estagnação na produção de alimentos , assiste-se a uma explosão do número de negócios agrícolas futuros nas Bolsas. Se até alguns anos atrás, esse número em Chicago era de 30 mil ao dia em relação, hoje passa de 250 mil.

Naturalmente, nessa jogatina os grandes donos do dinheiro – como o Deutsche Bank ou o BN Paribas -, não se fazem presente de forma aberta, mas por meio de fundos especiais criados para isso. Fundos que duplicaram no ano passado. Quanto maior é o número de especuladores a caminho das Bolsas de mercadorias, mais frequentes tornam-se os efeitos da especulação sobre os preços dos produtos agrícolas. E apenas 2% dos negócios futuros agrícolas negociados levam a uma real transação no comércio de mercadorias – isto é, a um verdadeiro envio de mercadorias em troca de uma ação com prazo determinado. Todo o resto é pura especulação, de preços em queda ou em elevação, e servem apenas ao enriquecimento de poucos.

O transe das bolsas

O Index de preços dos alimentos da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) é calculado para uma cesta de mercadorias com os principais produtos alimentícios do mundo. Alguns deles não são negociados nas bolsas, o que contribui para conter um pouco o aumento de preços, mas não é suficiente para evitá-lo. Entre 2007 e 2008, os custos dos alimentos nos países mais pobres subiram entre 30% e 37%; em 2008, novamente entre 37% e 40%. Depois, no verão de 2009, houve uma desaceleração. Mas a partir de dezembro do ano passado o FAO-Index retomou a sua tendência ascendente.

Por isso, os especialistas da FAO já contam com a próxima crise lançando mais alguns milhões de habitantes da terra na miséria. Isso porque a especulação, praticamente isenta de riscos, nas Bolsas de derivativos e futuros é um negócio milionário para o qual exige-se menos dinheiro do que para o comércio normal com as ações. É um negócio que corrompe constantemente os produtores, levando-os em todas as partes a buscar o ganho mais fácil. Mas é uma péssima notícia para os pobres de todo mundo que são vítimas de suas consequências. Essa corrida provoca milhões de famintos e dezenas de milhares de mortos na terra.

*Professor de Economia na Universidade de Lancaster

Fonte: Der Freitag
Tradução do original alemão de Luciano C. Martorano