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A direita subterrânea e os nossos desafios

A vitória do campo progressista no segundo turno nos remete a uma questão inescapável: qual o grau de consciência política do povo brasileiro? Que ele tem avançado nos últimos anos parece um consenso, mas essa resposta não basta.

Por Wevergton Brito Lima*

No futebol, quando o time ganha um título, todas as deficiências são esquecidas e momentaneamente todos viram Pelé. A luta política não permite esse raciocínio, movido mais pela paixão do que pela lógica. Portanto, não podemos, porque ganhamos a eleição, subestimar como coisa menor e passageira a intensa campanha de ódio – com elevadas doses de preconceito, fanatismo religioso e anticomunismo – movida por uma poderosa direita subterrânea. Subterrânea porque essa direita não assume forma palpável e suas maquinações não são feitas à luz do dia, mas urdidas em estruturas ultra-fechadas, como as cúpulas das igrejas conservadoras de diversos matizes, as seitas de extrema-direita, os círculos militares saudosistas da ditadura, etc. A mídia monopolista, que hoje é o maior partido conservador, guarda certa distância desta direita, embora não a denuncie e até mesmo a incentive. Qual a novidade disso, perguntará o leitor?

Realmente, novidade nenhuma. A história é farta de exemplos que provam que a direita, para vencer, usa de qualquer artifício, mesmo os mais baixos e vis. O problema que merece nossa atenção é que desta vez aconteceram duas coisas diferentes: 1) a campanha da direita subterrânea atingiu muita gente, inclusive influenciando o resultado eleitoral do primeiro turno (atenção, eu disse influenciando e não determinando) e 2) em certo momento algumas de suas bandeiras colocaram a candidatura do campo progressista na defensiva, chegando a conseguir uma vitória concreta contra o direito das mulheres: o compromisso da então candidata Dilma Roussef de não enviar para o Congresso qualquer proposta de descriminalização do aborto.

No primeiro turno, recebi um email, em uma lista de discussão sobre esporte, onde “Rafael” dizia para não votar na Dilma por diversas razões, quase todas ligadas de uma forma ou outra à religião. Em especial uma das razões elencadas por Rafael chamou minha atenção pelo que havia de apelativo e sórdido: era a que dizia que Dilma estava com câncer, iria morrer e quem assumiria no lugar era o Michel Temer, cujo filho seria satanista. Descobri que diversos conhecidos estavam recebendo mensagens com teor idêntico. Mas todos nós, homens e mulheres de esquerda, desdenhamos desta tática. Achávamos que o povo iria repudiar este tipo de baixaria, que além de tudo revelava um claro fanatismo religioso. Como estávamos enganados! Quantas pessoas encontrei depois que deixaram de votar na Dilma no primeiro turno por conta justamente desta e de outras histórias mirabolantes! Inclusive não precisei ir longe. Na minha própria família descobri proletários orgulhosos do governo Lula que, no entanto, não votaram na Dilma porque ela iria obrigar a igreja a casar homossexuais!

Dezenas de casos semelhantes foram relatados em artigos e matérias de sites e blogs, sempre afetando a principal base social de apoio do governo Lula: os trabalhadores pobres.

Na cidade proletária de Nova Iguaçu (1), no Rio de Janeiro, o vereador do PCdoB, Fernando Cid, relata que não encontrou ninguém que tenha deixado de votar na Dilma no primeiro turno por conta do escândalo da Erenice, mas encontrou muitos que deixaram de votar por conta dos boatos. Ainda no Rio de Janeiro, na pequena Bom Jesus de Itabapoana (2), cidade com 27 mil eleitores, o padre Ivoli Fernando em seu sermão pediu votos para Serra sem fazer menção a supostos casos de corrupção. O padre afirmava que, caso eleita, Dilma iria mover uma perseguição contra os sacerdotes (3).

Acusar a Dilma de ter um vice satanista, de ser “sapatão”, de ter desafiado o próprio Jesus Cristo, de ter planos para fechar igrejas e perseguir os padres, são acusações tão primárias que chegam a ser risíveis. O problema, grave problema, é que essas acusações tiveram eco. Encontraram alguma ressonância justamente no seio do povo trabalhador. Começaram na internet, mas rapidamente ganharam às ruas, passando de boca a boca. O povo comentava o assunto nas esquinas e nos bares e o que era inicialmente boato virava, na versão de quem contava, fato incontestável. Juarez Guimarães relata em seu artigo O Caluniador, Figura da Barbárie: “A senhora ao lado no ônibus me diz que recebeu a informação que Dilma desafiou Jesus Cristo em um comício realizado na Praça da Estação, em Belo Horizonte. O motorista de táxi conta que um médico lhe assegurou que um outro médico, seu amigo, diagnosticou gonorréia em Dilma.” (4).

É justo e até necessário que comemoremos a eloqüente vitória do campo progressista no segundo turno, mas temos que ter também humildade para entender o fenômeno dos boatos rasteiros que atingiram muitas parcelas do eleitorado, principalmente no 1º turno, revelando claramente os limites do grau de consciência política do povo brasileiro.

O papel da educação e da cultura

Surge então, mais uma pergunta: o que permite que temas tão medievais ainda tenham espaço e influência no debate político em 2010?

Eu começaria analisando algumas das nossas contradições como nação. Apesar dos avanços do governo Lula, ainda hoje temos mais de 18 milhões de brasileiros analfabetos totais e mais de 38 milhões de analfabetos funcionais. São mais de 56 milhões de brasileiros ou cerca de 30% da população (5).

Recentemente, professoras de história de uma escola municipal de um dos mais ricos municípios do país, o Rio de Janeiro, fizeram por conta própria um mutirão entre os alunos do 6º e 7º anos e descobriram que 80% (80%!) são analfabetos! Não divulgaram seu trabalho com medo de represália e organizaram cursos fora do horário de aula para tentar ajudar os alunos.

Lênin, já doente e ditando os seus últimos textos durante poucos minutos por dia, preocupado com a recém nascida Rússia socialista, dizia que ela não superaria o atraso “sem a alfabetização completa, sem um grau suficiente de inteligência, sem habituar suficientemente a população a utilizar os livros” (6).

A razão de toda esta minha cantilena é a seguinte: está claro que o caldo de cultura que permitiu que as calúnias reacionárias da direita subterrânea atingissem parcela dos trabalhadores, foi o analfabetismo, total ou funcional. A esquerda deve ter a coragem necessária para encarar sem vacilar este tema, sem medo de ser confundida com aquela elite estúpida que não combate o analfabetismo, mas o analfabeto, sem se dar conta de que aquele analfabeto é mais atento às coisas do seu país do que as alienadas dondocas e os alienados playboys do Leblon ou dos Jardins Paulista.

Mas o analfabetismo era um atraso na Rússia destruída pela guerra civil em 1923 e hoje é um atraso ainda maior no Brasil industrializado do século XXI.

Lênin sabia que a ignorância é o caminho certo para o obscurantismo. É a terra fétida onde chafurdam o preconceito, a intolerância e o fascismo, verdadeiras identidades de gente como Diogo Mainard e outros.

Ao se alfabetizar, o cidadão tem mais referências para valorizar sua própria história, suas tradições, afirmar sua individualidade, desenvolver seu raciocínio crítico e interferir em um patamar superior nos rumos do seu país e do mundo.

Ou seja, companheiros, obscurantismo se combate com educação e cultura. Cultura no sentido lato da palavra. Cultura como antônimo de ignorância. Como antônimo de obscurantismo. Cultura para amplas massas através do estudo e das artes (literatura, teatro, etc.). Cultura que, inevitavelmente, começa no ensino básico e fundamental ou não começa.

Não estou dizendo que educação e cultura são a panacéia que levará o Brasil ao socialismo. Diversas variáveis compõem esta complexa equação: luta política, correlação de forças, conjuntura internacional, situação econômica, fatores subjetivos, etc. Mas como já dizia Paulo Freire há 17 anos atrás: “é urgente que a questão da leitura e da escrita seja vista enfaticamente sob o ângulo da luta política” (7), pois objetivamente um índice de 30% de analfabetos totais ou funcionais é empecilho concreto para o avanço da consciência política dos trabalhadores.

Lula e Dilma já se comprometeram em melhorar a educação, inclusive destinando verbas do pré-sal para isso. Mas gostaria de finalizar com a seguinte reflexão. A história da esquerda em geral, e a dos comunistas em particular, sempre esteve ligada intimamente a noção de “educação popular”, tentando levar ao povo instrumentos que despertassem nas massas o desejo de aprender e estudar. Não me esqueço da figura emblemática do veterano militante comunista “Seu João”, porteiro de um colégio na Zona Sul do Rio, filho de camponeses, aprendeu a ler, como contava orgulhosamente, “nas escolas organizadas pelo Partido”. Eram outros tempos, é certo. Mas creio que hoje ainda não estamos suficientemente convencidos de que educação e cultura são importantes instrumentos de luta na construção de um novo Brasil, mais solidário, mais justo e mais democrático, e precisamos despertar para isso já, pois o que existe de melhor na esquerda brasileira foi incapaz, diante da ofensiva do obscurantismo, de sustentar diante do povo uma bandeira tão primária quanto a da descriminalização do aborto, o que dirá de lutas muito mais acirradas que exigirão a mobilização de uma base social de apoio muito maior, para citar apenas dois exemplos: na questão da democratização da mídia e na luta contra os juros altos que favorecem a ciranda financeira.

Não podemos permitir que, na nossa militância, caiamos na armadilha de encarar o povo apenas como potenciais eleitores a serem abordados de dois em dois anos. Por mais importante que sejam as eleições, no dia a dia dos sindicatos, das associações de moradores, dos diversos movimentos, devemos resgatar a nossa tradição militante no melhor estilo “educação popular”, estimulando as atividades culturais e educacionais, envolvendo cada vez mais pessoas, ajudando a despertar a chama que arde no peito de todos, como mostra o depoimento de 1987 do lavrador mineiro Antônio Cícero de Souza, o Ciço, para o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (8): “Como o senhor mesmo disse o nome: ‘educação popular’, quer dizer, dum jeito que pudesse juntar o saberzinho da gente, que é pouco, mas não é, eu lhe garanto, e ensinar o nome das coisas que é preciso pronunciar pra mudar os poderes. Então era bom. Então era. O povo vinha. Vinha mesmo e havia de aprender. E esse, quem sabe? É o saber que está faltando pro povo saber.”

* Wevergton Brito Lima é jornalista e secretário Estadual de Comunicação do PCdoB-RJ

Notas do autor

1 – No primeiro turno da eleição em Nova Iguaçu Dilma teve 46,07%, Marina 33,94% e Serra 18,07%. No segundo turno Dilma ganhou por 65,37% a 34,63%.

2 – Em Bom Jesus Serra ganhou no primeiro e segundo turnos, com respectivamente 48,08% e 56,27%.

3 – Na missa estava presente o presidente do PCdoB em Bom Jesus, católico praticante, Bill Carlos Manhães.

4 – “O Caluniador, figura da barbárie, Juarez Guimarães, site da Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/politica/o-caluniador-figura-da-barbarie).

5 – Síntese dos Indicadores Sociais 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) Tabela 8.2 – Taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por cor ou raça, segundo as Grandes Regiões, Unidades da Federação e Regiões Metropolitanas – 2009. Tabela 8.3 – Taxa de analfabetismo funcional das pessoas de 15 anos ou mais de idade, por cor ou raça, segundo as Grandes Regiões, Unidades da Federação e Regiões Metropolitanas – 2009.

6 – Obras Escolhidas, V.I. Lenin, Editora Alfa Omega, Sobre a Cooperação, página 659.

7 – A Importância do Ato de Ler, Paulo Freira, Cortez Editora, página 9.

8 – “…e uma Educação pro povo tem?”, vários autores, Editora Caetés, “Pronunciar-se para mudar”.