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Joachim Hirsch: “Senhora Merkel ao Diktat, por favor!”

“Senhora Merkel ao Diktat, por favor!” era a manchete do jornal alemão Süddeutsche Zeitung de 23 de agosto passado. Desse modo, o jornal consegiu expressar bem a atual correlação de forças no país. Ela explica ainda a rápida mutação sofrida por Angela Merkel à frente do governo alemão: de chanceler do clima para chanceler da energia atômica.

Por Joachim Hirsch*, no Linksnetz

Que governos legitimamente eleitos atuem como peões de poderosas empresas, não é algo novo. A novidade está no fato de que, mais recentemente, escritórios de advocacia que trabalham para essas firmas preparem os projetos de lei que depois são apresentadas pelo governo no parlamento. Ou então, o fato de que a própria indústria escreva diretamente o projeto-de-lei, tal como aconteceu há pouco com a regulamentação sobre a aprovação de remédios.

Raramente estas relações de forças apresentaram-se de forma tão aberta como nos últimos tempos na Alemanha. Lembremos: as leis e decretos que possibilitaram as ações de ajuda aos bancos no valor de bilhões, no curso da recente crise, foram em parte elaborados pelos próprios bancos – naturalmente sob a forma de “consultoria”. Como mostrou o último colapso econômico, eles contam com grandes especialistas em mercado financeiro.

O presidente do Deutsche Bank, Josef Ackermann, porém declarou, com a sua conhecida franqueza, que ele não poderia de modo algum aconselhar o governo por , no final das contas, representar interesses próprios. De fato, ele não precisa aconselhar. Ele e seus parceiros simplesmente ordenam.

O caso mais recente é o vai-e-vem envolvendo a prorrogação do prazo de funcionamento das usinas atômicas. Um projeto que segundo a opinião de todos os especialistas independentes é absurdo, que não conta com o apoio da maioria da população e que impede consideravelmente a necessária reconstrução do setor visando o fornecimento de energia renovável. Esse presente dado aos monopólios da indústria atômica envolve um lucro assegurado no valor de vários bilhões de euros.

Para conferir alguma legitimidade ao caso, o governo quer desviar uma pequena parte desse lucro para o orçamento estatal sob a forma de imposto sobre combustível – e assim contribuir para o cobertura do déficit causado pela ajuda aos bancos e pelas subvenções às empresas. Mas esse imposto sequer será suficiente para cobrir os gastos com a ampliação de um depósito final para o lixo atômico, ou a desocupação do depósito de Asse, ameaçado de ruir.

Com a prorrogação do prazo, o lixo radiotivo das usinas atômicas aumentarão em mais de 4.400 barris. E ninguém sabe se esse lixo, cuja poder radioativo perdurará por muitas gerações, poderá ser deixado de forma segura em algum depósito próprio. Inicialmente, planejou-se a cobrança de uma taxa da industria atômica que deveria apoiar o desenvolvimento da energia renovável. Em vez disso, as empresas declararam contribuiriam apenas “voluntariamente” com um fundo destinado a isso, mas, claro, sob condições bem definidas.

É natural que as empresas envolvidas movam-se contra tais exigências. Além do intenso lobby, há uma grande atividade de propaganda – apoiada por toda a elite da indústria alemã e personalidades promissoras como Oliver Bierhoff – ex-jogador e atual administrador da seleção de futebol alemã -, ou Otto Schily – ex-ministro social-democrata que agora está a serviço da Siemens – e Wolfgang Clement – também ex-ministro social-democrata e atuando pelo monopólio de energia RWE.

Como se fosse coisa combinada, a chanceler Merkel desempenhou bem o seu papel: demonstrando segurança, disse que esse imposto sobre combustível seria porém reduzido e válido apenas por um prazo limitado, e renunciou às demais exigências. Mas esse cenário não tinha nada de casual. O jornal Frankfurt Rundschau, de 8 de setembro de 2010, publicou os termos da estratégia encomendada pela empresa de energia Eon junto a uma agência de relações públicas.

A indústria atômica pode pagar sem problema o novo imposto, pois ele corresponde apenas à pequena parte dos lucros adicionais. O mesmo vale para a questão de segurança que é urgente para alguns reatores sucateados. Para tranquilizar a opinião pública, bastou o anúncio de que no futuro, de algum modo será feito algo para aumentar a segurança das usinas e dos depósitos de lixo atômico. Enquanto isso, a televisão informava sobre a existência de um outro projeto-de-lei, com o qual o governo pretende reduzir ainda mais as medidas de segurança. O que foi desmentido – entretanto, sem maiores explicações.

Na realidade, a prorrogação do prazo de produção de energia atômica seria quase inviável sem a redução dos gastos com segurança. Por trás de tudo isso, há uma questão explosiva do ponto-de-vista político-constitucional. A indústria atômica, em vez de confrontar-se com impostos e taxas, desejava originalmente apenas fechar um contrato com o governo, pagando algo em troca da prorrogação do prazo de funcionamento de suas usinas.

O descaramento dessa proposta está no fato de que ela se veria desobrigada de adotar novas medidas de segurança, garantido o máximo de lucro e, ao mesmo tempo, tornando impossível a futuros governos a redução do prazo de funcionamento das usinas. Um contrato jurídico privado não poderia ser simplesmente anulado por uma mudança legislativa. Esse abrangente contrato, inicialmente não resultou em nada, porque ele deixaria bem claro quem manda no país e o governo não poderia admitir um maior enfraquecimento de sua legitimidade.

O que sobrou foi um contrato que obriga a indústria a fazer depósitos em um fundo destinado à energia renovável. E isso perante o fato de que a prorrogação da produção de energia atômica impedirá enormemente o desenvolvimento dessa energia. Além disso, prevê-se que os depósitos serão sempre menores, quanto maiores forem os eventuais investimentos em segurança e mais breve o prazo de funcionamento de cada usina.

Qualquer modificação nisso poderia prejudicar o orçamento público – ou seja, trata-se de uma espécie de chantagem financeira tendo em vista o endividamento do Estado alemão. E o modo como será implementado tal fundo já mostra o grande interesse que os monopólios da energia têm em colocar sob seu controle também esse mercado do futuro. O procedimento da indústria atômica indica bem do que se encarrega hoje o Estado de direito democrático realmente existente. Em vez de leis surgem acordos entre o governo e as empresas envolvidas. O direito é estabelecido não mais através dos processos parlamentares previstos na Constituição, mas em negociações entre os chamados parceiros de direitos iguais.

O desvario de tal procedimento fica claro quando se imagina obrigações fiscais negociadas isoladamente com o Ministério das Finanças, e não reguladas pela legislação. Se contratos privados substituem o direito, o legislador pode perceber o que lhe sobra. E isso diz respeito tanto ao parlamento, quanto ao Conselho Federal (composto pelos governos estaduais alemães) que por conta de uma incômoda maioria – alguns governos da base de apoio de Angela Merkel não aceitam a prorrogação do prazo –, nem sequer foi consultado. Isso evidencia o que caracteriza o conjunto da situação atual : uma massiva feudalização da política.

O fato de que ela tenha-se degradado, em grande estilo, para uma política de clientela também promove o surgimento de novas formas. Poderosos grupos econômicos estabelecem suas próprias regras, e caso achem que devam entregar algo dos lucros delas decorrentes ao orçamento estatal, eles preferem fazê-lo voluntariamente, exatamente sob a forma de um contrato com limitações claras para o legislativo.Esses acontecimentos deveriam provocar um massivo protesto público.

É preciso notar inicialmente que nem a imprensa, nem os especialistas em Constituição que deveriam apontar o seu significado, não falaram que trata-se de violação da Carta Magna. É verdade que parte do conteúdo foi criticado, mas sem indicar as mudanças das relações jurídicas e constitucionais implicadas no caso. Somente bem depois, quando o conteúdo original do contrato mantido secreto foi conhecido, é que pelo menos alguns políticos da oposição pronunciaram-se. E a opinião pública deu-se conta das relações de força que levaram a esses acontecimentos.

Na história da República Federal da Alemanha não havia, até agora, nenhum precedente de um governo tenha-se curvado tão abertamente à pressão das empresas. A chanceler Angela Merkel anunciou a decisão de prorrogação como sendo uma “revolução” – cujo conteúdo, aliás, é bem mais abrangente do que o anunciado oficialmente. Na verdade, seria bem mais uma espécie de golpe de Estado.

Já a bizarra escolha da palavra revela que a política dominante tenta justificar-se apelando à ocultação, à dissimulação e à sistemática tergiversação. É por isso que as decisões tomadas, assim como os acordos contratuais feitos com a indústria atômica, foram publicados por partes e de forma incompleta.

Todo esse processo oferece material de estudo para a teoria do Estado. Ele mostra que as garantias para um desenvolvimento social seguro, e de longo prazo, são colocadas em questão quando frações isoladas do capital definem a política; em sentido teórico, quando a autonomia relativa do Estado frente ao capital é eliminada.

Na Alemanha, essas frações do capital são notadamente, ao lado da indústria farmacêutica, os monopólios da indústria energética e os bancos, junto com as outras empresas do setor financeiro. A urgente e necessária reconstrução do setor energético é sacrificada inteiramente em favor dos lucros de alguns monopólios, o que representa uma grave ameaça para a população.

Sabe-se que a política dominante é guiada pelos interesses do grande capital e contra os da maioria da população, seja na questão da prorrogação do prazo de funcionamento das usinas atômicas, no da operação de guerra no Afeganistão e no da reconstrução da estação central de trens em Stuttigart.

Pouco a pouco, parece que a dissolução da democracia constitucional vai assumindo também formas jurídicas e institucionais. O que mostra que as questões constitucionais são questões de poder. A crise de representação revelada pelo fato de que a política dominante praticamente não precisa mais mostrar-se preocupada com os interesses da população, apresenta agora o seu outro lado: o Estado agindo abertamente como servidor do capital.

Se a claque dominante conseguirá sair-se bem desse processo ainda é uma questão aberta. Ela manobrou em uma situação que evidenciou a sua incompetência e a sua falta de influência. As propostas da agência de relações públicas da Eon revelaram-se absolutamente ineptas. Enfrentar tal situação com os meios institucionais democráticos não oferece muita perspectiva. Provavelmente, os partidos do governo alimentam a esperança de que a situação tranquilize-se até as próximas eleições. Mas para algo realmente mude é novamente necessário a intervenção de um movimento popular extra-parlamentar de massas.

* Joachim Hirsch é autor de Teoria Materialista do Estado