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Última noite no cabaré

Tema recorrente nos escritos de Marco Albertim, Última noite no cabaré descreve com riqueza de detalhes o encontro de uma ex-cafetina com um estranho, com quem parece de alguma forma se identificar. Confira mais este conto do colunista do Vermelho e literato Marco Albertim.

- Reprodução

Do barulhento bordel restou a sala da frente, alumiada por um candeeiro fumacento. Prateleiras mofadas, furadas por cupins sob uma dezena de garrafas de cachaça, sortindo a vista de três homens e uma mulher. O vendeiro, com a barba desigual, os cabelos soltos, coçava o rosto com força, raiva.

Por Marco Albertim*

Engoliam com tremor convulso nas mãos, na garganta. A mulher, velha, perdera a inquietação de ocultar rugas com ruges inúteis; distraía-se com a bebida, no exame da rua abandonada. Os olhos luziam, corados, a cada gole. Tinha o juízo enfermo, e putas com pó de arroz no rosto dançavam na sua frente.

Nos quartos atrás, um vácuo de mofo. Joaquina, única moradora nos fundos, fora a dona do lugar quando era um cabaré próspero. Dormia numa cama de molas mutiladas, sem parceiro, com vultos imprecisos; sem pagar aluguel, por favor e desleixo do senhorio. Conheciam sua saga de cafetina empobrecida. Agora morria na difícil razão de estar viva.

Ela purgava-se de culpas, mencionando nomes com carinho. Perdera o pranto, e bebia para não esquecer a perda das posses. O comissário de polícia, amansara-o na recusa de fechar o cabaré mais cedo. O criado, cuja orelha ela torcera a modo de punição, acudia-a na lembrança. Avia, Goma! Vai comprar o meu cigarro! Goma aparecera sem dizer de onde, ela o adotou. Tinha o costume de ficar com os trocos. Quase arrancou sua orelha quando ele abriu a gaveta sem permissão. Pediu perdão de joelhos, nunca mais olhou para o armário. Cresceu por ali, fazendo mandados sem cobrar estipêndio. Depois que saiu do tiro de guerra, meteu-se a brabo; morreu de facada na bexiga.

Nenhum vivente do Barreirão suspeitara de morrer sem ter tempo de arrependimento. O chão fora lavado, ficou uma rala procissão de putas atalhando a morte.

Joaquina interrompeu a cisma para se dar conta do recém-chegado. Abriu com esforço os olhos. Mediu com precisão a aparição vinda, conforme seu sentido mutável, para julgar a caftinagem que exercera com crueldade. Ele encostou-se ao balcão, apoiando-se nos cotovelos. Pediu cachaça, a bem dos costumes. Olharam-no. Ela foi a única a fitar cada pormenor dele, detendo-se no rosto. Não estava bem-vestido, mas bem-conformado no cáqui da calça, no fustão da camisa. Desde a ruína do Barreirão não se via homem assim.

Cumprimentou-os com um boa-noite mudo, conveniente ao silêncio. Ninguém respondeu. Nada, nem um raio poria fim à serenidade morta dos olhos de cada um. O estranho não ficou no balcão da frente para não dar as costas à rua. Deu o primeiro gole junto a Joaquina, vizinho à porta do corredor. Ela espiou-o nas alpercatas de couro, adivinhando seus propósitos.

– Se mal pergunto, qual é sua graça?

– Josino.

– Daqui mesmo?

– Não, senhora.

Há um ano ninguém o espreitava nos passos. Sentiu-se bem, distinguido. Os outros não o olharam. Engoliu a metade da bebida, e acendeu um cigarro oferecido por ela. Os dois fumando. O fio preto do querosene juntou-se à fumaça dos cigarros. Se houvesse relógio na parede, teria ponteiros desinteressados nas horas.

– Outra – ele pediu.

O vendeiro tirou da prateleira uma garrafa de rótulo velho; destampou-a com o polegar, aparando a tampa com a outra mão. Restos de cortiça caíram no copo.

Josino, com quarenta anos, enxergou sem óculos a sujeira no fundo do copo. Engoliu a cachaça sem fazer careta, cuspindo as sobras da cortiça. Suas alpercatas se conformavam no piso de tijolos gastos.

Do outro lado da rua, sentada na esquina da calçada, uma preta mexia as brasas de um fogareiro; em cima, a grelha para assar milhos. O filho se entretinha com o que restara de um milho. Um jipe que viera da extremidade da rua, estacionou na frente da mulher. Dois polícias fardados desceram, seguidos por outro à paisana.

Josino fora à porta, e voltou para seu canto. Pediu outro cigarro.

– Com prazer.

Acendeu-o enxertando-se nos costumes do Barreirão. Lamentou não ter um chapéu de abas curtas, igual ao dos outros; com o feltro cobrindo a testa.

Os homens entraram. O ar viciado não confundiu a intuição de cães. O paisano olhou para o vendeiro, a modo de obter informação combinada. Trocaram ideias com os olhos. O paisano se dirigiu a Josino, pediu-lhe os documentos. Examinou-os dando piparotes no plástico. A voz do polícia combinou com o ar malsão:

– O prazo de validade está vencido. Precisa trocar!

– Sim, senhor.

Os polícias de farda abriram a cortina do corredor; sabiam das teias de aranhas, de lacraias. Cumpriam o rito. Voltaram tapando os narizes.

– Deve ter ratos aí – arriscou um soldado.

O paisano foi para fora. Os soldados o seguiram. O jipe roncou preguiçoso pela rua.

A bodega voltou ao desinteresse.

Meia-noite.

Os dois no balcão da frente, cambaleantes da cintura para cima, dormindo em pé. Joaquina, sentada, dormindo para acordar com soluços; tinha os restos dos sentidos em Josino. O vendeiro bocejou para avisar o fim da noite. Os homens pagaram. Josino fez o mesmo com desagrado, porque não tinha para pagar a bebida da mulher. Quando estavam na rua, sem se importar com o rumo de cada um, o vendeiro fechou a porta com um cadeado velho, pesado. Os dois bêbados foram para um lado.

Joaquina, por dívida, perdera tudo para o vendeiro, até o mando nas mulheres. O bordel falira com o descaso dos moços dos engenhos, depois de casados. O vendeiro deixara o quarto dos fundos para abrigo da cafetina. Deu-lhe um baú velho, para guardar o vestuário descorado. Ela nunca lhe agradeceu; dizia vai com Deus, pedindo perdão a Deus por ter lhe receitado os quintos. Implorara sua permanência no negócio em meia com ele. Recorreu à reza. Dispôs-se a negociar a alma para manter a autoridade de cafetina. O homem não arredara pé. Ela assistiu com prazer à crescente pobreza do usurpador de seus domínios.

Josino seguiu a marcha vadia de Joaquina. Estava grogue, ela. Seguiam na direção oposta à do vendeiro.

– Tem pra onde ir, moço?

– Vou no rumo do vento. Assim não me canso.

– Pode não parar nunca. Se o vento parar de soprar, pode não ter pra onde ir.

– E a senhora, cansou de ser levada?

– O vento não liga mais pra mim. Me escondi dele também.

– O que faz para evitar a ventania?

– Escondo-me lá embaixo, onde ninguém sopra o lume de minha vela. Venha. Tem lugar pra você.

Desceram por uma vila de quartos, com velas e lamparinas acesas. Cheiro forte de fumos em brasa nos cachimbos. Na trilha encharcada, andaram em ziguezague. Ela conhecia cada poça, toda pedra fora do lugar. Aqui e ali se ouvia um gemido.

– Está com medo?

– Está um céu bonito. Não é preciso ter medo – Josino sentiu-se tão oculto quanto ela.

Embaixo, margearam um rego com água morta. Ela tirou do bolso do vestido a chave, e abriu a fechadura. As dobradiças rangeram. Entraram na meia-água escura. Descobriu uma caixa de fósforos e acendeu a lamparina. Duas velas numa prateleira coberta por uma cortina vermelha. Josino viu a estatueta de um exu rubro, segurando um garfo preto com pontas para cima. Em cima, pendurado na rede, um jarro em forma de cone guardando flores murchas, ainda recendendo. Cheiro comum a velórios.

– É aqui que a senhora mora?

– Onde queria que eu morasse, rapaz, depois de me ver tomando cachaça branca na bodega de Manoel Tibúrcio!?

– A senhora…

– Pare de me chamar de senhora! Você não é mesmo do lugar! Por isso lhe chamei para dormir aqui.

– Desculpe…

– Desculpe, nada. Você parece um moço de engenho que nunca tirou o cabaço! Tem uma esteira enrolada, encostada na parede. Vamos, bote no chão. É aí que você vai dormir.

– Já está deitada? Vou sair para mijar.

Quando voltou, ela disse:

– Estou deitada como uma galinha velha.

– Você não é uma velha-galinha…

– Antes fosse. Se eu fosse esperta, quem estaria morando no galinheiro era o velho Tibúrcio. Sim… aquele mesmo que serviu cachaça de olho no nosso enterro.

– Por que não gosta dele?

– Já fui dona disso tudo. Quando não havia paredes sujas, o chão era lavado com água de rosas. A polícia não entrava para pedir documento, entrava pra pedir favor. Eu dava croquetes, eles não aborreciam os fregueses. Meus fregueses era gente dos engenhos que vinha paparicar minhas moças. Davam presentes, dinheiro. Ainda me agradeciam depois de deixar minha gaveta cheia. A parte do canavial que me cabia.

– Como conseguiu ser a dona?

Ela aproveitou o breu para não enxugar os olhos marejados.

Fora moça bonita, tratada com paparicos até se tornar mulher de banguezeiro rico. Morreu cedo, ele. Bebera cerveja com ovos cozidos; comera tanto que entupiu as coronárias. Tivera o cuidado de lhe repassar o costume de amealhar. Não teve a chance, ela, de rezar na frente do caixão porque fora sua teúda. Foi para o enterro, ficou atrás de um mausoléu, coisa pouca de distância. Ninguém viu. Cobrira-se de um véu escuro para esconder o rosto, os cabelos. Fez que estava rezando para defunto antigo. Quando a família dele se retirou, foi à cova depois de dar uma gorjeta ao coveiro. Acompanhada de uma afilhada, mãos dadas. Deixou um ramalhete na campa com homenagem ao único homem que deixara para ela um pecúlio. Os filhos dele ainda frequentaram o cabaré, chamavam-na mãe Joaquina. Ela lhes poupava a despesa.

– Por que não poupou para você mesma?

– O lugar tornou-se pequeno pra tanta gente. Pedi dinheiro emprestado pra comprar a casa vizinha, aumentar o negócio, fazer agrado com roupas às meninas que eu mais gostava. Manoel Tibúrcio era meu fornecedor de bebida; ele foi me emprestando de pouco, depois fez eu assinar promissória. A dívida cresceu. Ele assumiu a propriedade e tocou a reforma começada por mim. Foi quando a freguesia sumiu. Ele afundou também. É dono disso aqui, mas só tem inseto pra devorar o resto. Um dia vão comer os ossos dele e ele não vai soltar um pio. Tá mais infeliz do que eu, porque perdeu o depósito de bebidas também.

– O que pensa em fazer da vida?

– A vida pensa por mim. Quando bebo, olhando pra Tibúrcio, juro que vou morrer depois dele. Quero segurar a alça de seu caixão. Mas quero olhar nos olhos dele quando estiver deitado numa cama, morrendo, olhando pra mulher que ele arruinou sem dó. Ele calculou a minha ruína. Vou apodrecer aqui, sem ter ninguém que me leve pra sepultura. Tibúrcio ainda vai dizer no meu ouvido: “Joaquina, descanse no lugar que sempre foi seu.”

– Como faz para pagar a bebida, a comida?

– Tenho uma aposentadoria de nada. Não devia nem ter isso; só serve pra me lembrar da fartura que meu banguezeiro me dava.

– Não tem parentes?

– Parentes que não vejo há anos. Pensam que estou morta. Assim é melhor. Me aconselharam um abrigo. Joaquina do cabaré não vai ter fim num abrigo de velhos, vai apodrecer em sua própria cova, a cova do cabaré!

Tirou da prateleira um rádio pequeno, ligou na emissora de costume. Música remelenta. Embalou as lembranças do bordel.

– Por que ficou nervoso quando a polícia chegou?

– Não gosto dos meganhas. São mais sujos que as baratas.

– Você deve alguma coisa à polícia?

– Os meganhas é quem devem a todos nós. Deviam estar aqui, e não você.

A noite não foi vã para Joaquina. Pensou em dar o que restava de si ao homem que se dispusera a ouvir o enredo de sua ruína. A última noite no cabaré. Morrer com pouco mais de sessenta anos, sob o peso de um estranho procurado pela polícia por crime menor que caftinagem. Fora julgada por raparigas que tiveram outra fortuna. Morrer seria mais fácil que tirar a roupa florida no meio da rua. Cruel seria o derradeiro suspiro, apodrecendo sob os olhos pagãos de um desconhecido.

Por toda a noite ouviram o ruído miúdo do rádio.

Também a ele não escapou o palpite de deitar a cabeça no peito sumido de Joaquina. Ela tirara o vestido depois de se cobrir com uma camisola sem mangas, puída. Não fora reconhecido pela ronda da polícia, mas atraído ao regaço da última cafetina do Barreirão de Goyaninha. Nenhum boa-noite. O dia anunciaria outro bulício de suspeitas.

*Marco Albertim é jornalista e escritor, colunista do Vermelho colaborador do espaço Prosa, Poesia e Arte. Menção honrosa dos Prêmios Literários da Cidade do Recife, com o livro "Um presente para o papa e outros contos". Integra as antologias de contos" Recife conta o Natal" e "Panorâmica do conto em Pernambuco".