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Fierro Kalbhenn: a face oculta da luta pela liberação do Tibete

No Ocidente – e, com Ocidente, quero dizer a hegemonia neoliberal tributária da Casa Branca – é costume mistificar os processos históricos reais eliminando, justamente, sua história. O apoio da maioria dos governos mundiais, juntamente com a apologia midiática na qual Hollywood tem importante papel, posicionou o dalai-lama e sua luta “pela libertação do Tibete.” como uma panaceia da justiça e da espiritualidade pacifista.

Por Sebastián Fierro Kalbhenn, no Librered.net

Foi suficiente que famosos atores comerciais, como Richard Gere e Sharon Stone, elogiassem o 14º dalai para que a imagem cosmética do oriente “espiritual” fosse vista como signo da luta mundial contra a opressão totalitária. Entretanto, neste clima de fervoroso apoio à libertação do Tibete, raramente se leva em conta a história real desta província chinesa, marcada pela repressão, pela tortura e um feudalismo teocrático sumamente explorador.

Pouco importa ao Comitê do Prêmio Nobel as permanentes violações dos direitos humanos realizadas sob o governo do dalai-lama, violações que incluíam amputações de narizes e olhos, entre outras, ao outorgar-lhe o Prêmio Nobel da Paz em 1989.

O clero e a luta de classes no antigo Tibete

O Tibete anterior à Revolução Chinesa era um sistema teocrático feudal baseado principalmente na servidão da maioria da população, muito parecido com a escravidão. Mais de 90 % da sociedade era formada por servos sem terra, que em sua imensa maioria era propriedade do clero monacal. A classe dominante era formada por um reduzido grupo de monges provenientes da aristocracia, enquanto a maioria do povo oprimido era formada por camponeses e monges de baixo escalão.

“Esta desigualdade econômica, determinada pela classe, dentro do clero tibetano, era muito parecida ao clero cristão na Europa medieval. Juntamente com o clero superior, se beneficiavam os dirigentes leigos. Um exemplo notável foi o comandante em chefe do exército tibetano, que possuía 4. mil quilômetros quadrados de terra e 3.500 servos. Também era membro do gabinete laico do dalai-lama”, diz o historiador estadounidense Michael Parenti no ensaio “Tibete – Um inferno sob a teocracia e o feudalismo”.

Numa população de 1,25 milhão de pessoas em 1953, 700 mil eram servos. Viviam como propriedade de seus “senhores”, que de fato regulavam suas vidas. A expectativa de vida era de 35 anos, enquanto a mortalidade infantil era de 43%. A jornada de trabalho era de 16 a 18 horas por dia; mais de 95% dos Tibetanos eram analfabetos, não existiam escolas nem hospitais. Muito menos eletricidade. Mas havia uma opressiva carga tributária.

“Pagavam imposto para casar, pelo nascimento de cada filho, e por cada morte na família. As pessoas pagavam impostos por ir à prisão e por sua libertação. Inclusive os mendigos pagavam impostos. Os que não podiam encontrar trabalho pagavam impostos por não tê-lo, e se viajavam a outra aldeia em busca de trabalho em outra aldeia em busca de trabalho, pagavam um imposto pelo direito de trânsito. Quando as pessoas não podiam pagar, os mosteiros emprestavam o dinheiro cobrando uma taxa entre 20 e 50%. Algumas dívidas passavam de pais a filhos e a netos. Os devedores que não podiam pagar seus compromissos podiam ser escravizados durante todo o tempo exigido pelo mosteiro, algumas vezes pelo resto de suas vidas”, diz Michael Parenti.

Por outro lado, as torturas eram uma prática sistemática neste despotismo teocrático. Era comum a amputação de extremidades, olhos, narizes e bocas por delitos comuns. Vários mosteiros tinham seus próprios cárceres privados, onde se aplicavam arbitrárias condenações aos camponeses, além das torturas. Não há nem mesmo o que falar das condições gerais de vida dos tibetanos comuns, acostumados à mais precária das existências.

"O sistema feudal impedia o desenvolvimento das forças produtivas. Não permitia o uso de arados de ferro, a extração de carvão, pescar, caçar, nem realizar inovações sanitárias de nenhum tipo. Não havia comunicações nem comércio ou indústria, por elementar que fosse. Mil anos atrás, quando se introduziu o budismo, calcula-se que viviam no Tibete dez milhões de pessoas; em 1095, existiam apenas dois ou três milhões”, escreveu Sara Flounders, do Workers World Party (Partido Mundial dos Trabalhadores, dos EUA) e co-diretora do International Action Center (Centro de Ação Internacional) no artigo “A CIA e o dalai-lama”.

O governo no exílio e a conexão com a CIA

Os revolucionários chineses chegaram ao Tibete em 1951, reivindicando o “teto do mundo” como um protetorado, nada diferente na realidade do que ocorria há mais de 700 anos. Diferentemente do mito popular, a ocupação comunista não ocorreu pela invasão do território mas sim através de um programa paulatino de mudança do sistema econômico e político. De fato, o dalai-lama foi mantido no governo, reservando para a China o controle militar e o direito exclusivo de conduzir as relações exteriores.

“Se o Tibete se integrasse na República Popular da China, o governo de proprietários de servos (chamado “kashag”) poderia continuar no poder durante um tempo sob a direção do governo central popular. Os comunistas só aboliriam de imediato as práticas feudais ou tomariam medidas contra a religião desde que o povo apoiasse as mudanças revolucionários. O governo feudal aceitou a proposta e firmou o Acordo de 17 Pontos que reconhecia a soberania chinesa e se aplicava nas zonas submetidas ao “kashag” e não em outras zonas Tibeteanas onde vivia a metade da população. Em 28 de outubro de 1951 o Exército Popular de Libertação entrou pacificamente em LLassa sob o comando do general Zhang Guojua”, explica Flounders.

Mas os “senhores” e lamas não confiavam nos comunistas chineses, que poderiam mudar radicalmente as relações de produção dentro dos feudos. Em 1956, bandos armados recrutados pela teocracia e subvencionados pela CIA começaram a assediar ao Exército Popular de Libertação da China, sem maiores resultados. Cerca de 1.700 mercenários Tibeteanos foram treinados em campos militares dos EUA.

Vendo seus privilégios em perigo, “sua santidade” partiu para o estrangeiro junto com grande parte da aristocracia, criando na cidade indiana de Dharamsala um “governo no exílio” financiado pela Casa Branca com 1,7 milhões de dólares anuais até a década de 1990, pelo menos. O próprio Dalai era um agente da CIA com uma renda de 180 mil dólares anuais.

O Tibete e sua relação com os nazistas

Em 1996 estreou o filme Sete Anos no Tibete na qual um internacionalmente reconhecido Brad Pitt encarnou o alpinista austríaco Heinrich Harrier, que viveu em Llassa, capital do Tibete, entre de 1944 e 1955. Condecorado com a “luz da verdade” pelo governo no exílio em recompensa por sua campanha internacional pelo “Tibete livre”, e amigo pessoal do próprio dalai-lama, Harrer conseguiu esconder durante décadas seu passado de militante nazista.

Em seu livro, Harrier – homônimo do protagonista do filme – se apresenta a si próprio como um exímio montanhista guiado pelo mero interesse esportivo de explorar o Diamir, uma das faces do Nanga Parbat, a nona mais alta montanha do mundo. Entretanto, os nexos entre o Terceiro Reich e o governo dos lama sugere algo diferente.

Em 1929, uma expedição das SS comandada por Ernst Schäfer, zoólogo alemão, e patrocinada por Himmler, que tinha grande admiração pelo misticismo Tibeteano, permaneceu dois meses em Llassa. Dentro dos objetivos da missão estava a comprovação científica de que os Tibeteanos seriam os arianos do norte, pensando em somar aliados na expansão pelo Oriente e a confrontação com os ingleses na Índia.

Por isso é difícil pensar que Harrier estivesse motivado por interesses meramente esportivos, em especial quando se em conta o grande apreço que Hitler sentia pelo alpinista.