Valton Miranda – Loucura, afeto e poder

O psiquiatra e psicanalista Valton Miranda, um dos mais importantes pensadores da esquerda cearense, fala da presença da emoção e do inconsciente na política. O Vermelho/CE reproduz a íntegra da entrevistas concedida ao Jornal O Povo e publicada nesta segunda-feira (17/01). Leia a seguir:

Valton Miranda

De um lado, o psicanalista, que vê a prática política, no limite, como uma atividade impossível. Do outro, o militante político, com décadas de atuação nos movimentos de esquerda. Duas perspectivas de mundo potencialmente contraditórias que se conciliam em Valton Miranda.

Além de ator político, ele se converteu em um dos mais importantes formuladores da esquerda cearense. E que usa a visão do psicanalista para entender as motivações emocionais e subconscientes presentes nos conflitos da política.

Nesta entrevista, Valton Miranda, como no subtítulo de seu livro A Paranoia do Soberano, faz “uma incursão na alma da política”.

O POVO – Quem vem antes, na formação do pensamento do senhor? O psicanalista ou o militante marxista?

Valton Miranda – Eu acho que é quase que simultâneo. Não há propriamente uma dissociação, porque desde muito jovem essa relação se estabeleceu. A primeira vez que eu escrevi alguma coisa sobre Marx e Freud eu tinha 17 anos de idade. Um título estranhíssimo, um artigo que eu, hoje, abomino. Não sei nem se eu não joguei fora isso. O nome era O trauma do ovo. Na verdade, era uma espécie de encontro. Que depois eu repeti. Eu me encontrei anos depois, já jovem psiquiatra, no México, com o Erich Fromm, que escreveu o livro Meu Encontro com Marx e Freud. Não estou me comparando com o Fromm, não. Mas, de certa maneira, há uma espécie de, vamos dizer assim, repetição.

OP – No seu livro A Paranoia do Soberano, o senhor fala do motor paranoico, embora não restrito a ela, mas com foco central no pensamento de esquerda radical. De alguma forma, o psicanalista “vigiou” o militante socialista Valton Miranda, para que não manifestasse os traços que o senhor descreve?

Valton – Isso só veio a acontecer posteriormente, quando eu me dei conta, de uma maneira muito mais forte, da participação do inconsciente pessoal e grupal nas decisões políticas. Inicialmente, ainda nos anos de movimento estudantil, meu pensamento marxista era bastante radical e algumas vezes, até sectário. Mas eu creio que esse sectarismo foi abrandando na medida em que eu comecei a perceber a participação de elementos emocionais, passionais, dos inconscientes pessoais e coletivos nas decisões políticas. Comecei a perceber que as decisões políticas, principalmente no movimento de esquerda, onde eu convivi intensamente, eram extremamente influenciadas pelas dinâmicas conspirativas, paranoides das pessoas. E comecei a ver isso também na história. O comunismo sob Stalin, o Camboja com Pol Pot. E não só na esquerda e no socialismo, mas o próprio nazismo foi uma manifestação de paranoia generalizada. A paranoia nos Estados Unidos, no macarthismo. A paranoia na ditadura Vargas e na ditadura militar. Comecei a perceber que o motor da política tem um elemento inconsciente de combinações emocionais de natureza paranoica. E comecei a formular uma ideia de que a paranoia é estrutural. Ela não é uma coisa eventual. O inconsciente, com suas tendências de luta e fuga, com as suas divisões grupais. Perceba que todo grupo nasce coeso. Daqui a pouco, ele se divide em dois. Um que se considera vanguarda e o outro colocado como atrasado. Um que sabe ler o texto melhor que o outro. O texto é sempre tomado como Bíblia. De repente, o texto marxista não é mais o texto marxista, é uma Bíblia. E a Bíblia da qual eu falo é a fantasia messiânica inconsciente narcísica de grandeza e de poder.

OP – A política, pelo menos em suas origens teóricas, é uma tentativa de conciliação pensamentos, de interesses, uma pactuação para permitir a vida em coletividade. Esses mecanismos psíquicos que o senhor descreve é uma obstrução desse diálogo, a incapacidade de dialogar com outras ideias?

Valton – Essa questão envolve diretamente o poder. Porque você não pode ter um modo de lidar com isso senão organizando o Estado e, dentro do Estado, um sistema de poder. Quando você coloca poder, você coloca paranoia. O poder é paranoico. Hobbes dizia que o impulso mais intenso que existe na sociedade e no homem é o impulso para a posse e para o domínio. Seja na política, no saber ou em qualquer outra área. Agora, o que você pergunta é assim, só para colocar de uma maneira talvez não muito otimista: uma anula a outra? Eu digo que, frequentemente, a paranoia anula as possibilidades de o poder alcançar seus objetivos de igualdade, de justiça. Porque a paranoia é o impulso para domínio, posse a qualquer preço.

OP – Mas, ao mesmo tempo em que o senhor fala do poder, o pensamento do senhor foca particularmente grupos radicais, extremistas, que muitas vezes brigam entre si e se dividem mesmo quando estão muito distantes de qualquer horizonte de poder institucionalmente constituído. É uma outra perspectiva de poder que, nesses casos, está em disputa?

Vanton – Às vezes, a luta entre os grupos é por uma fantasia de pureza. Pureza ideológica, pureza teórica, pureza das ideias. Há uma vivência que é tomada como defesa da doutrina, mas que, na verdade, encobre uma outra coisa inconsciente. É a nossa concepção interior paranoica de que nós podemos ser puros. Quando eu acredito que eu sou o mais decente, ou o mais ético, ou mais puro do que os outros. Então você diz: por que um grupo se divide e fica uma parte brigando com a outra? Isso faz parte da própria natureza do grupo. Eu tenho um amigo que diz: “Nesse caso, a política é impossível”. É. A política, se você tomar no limite, é uma atividade impossível.

OP – O senhor falou das manifestações da paranoia no nazismo, no fascismo, na ditadura Vargas, na ditadura militar. A própria ideia de ditadura nasce, em alguma medida, desse delírio paranoico?

Valton – Eu creio que sim. A ditadura é uma espécie de necessidade inconsciente do homem que foi sendo superada pelo processo histórico. Essa necessidade de ter um poder todo-poderoso que o submeta à obediência. Isso não é dito por mim. Maquiavel já dizia isso. Hobbes dizia isso. Depois, com o desenvolvimento da visão democrática, Locke e outros pensadores, Rousseau, você vai ter a perspectiva do contrato social. Mas o contrato social é uma sofisticação que não consegue esconder as origens da necessidade de estabelecer um poder soberano capaz de manter a maioria da população obediente. Essa coerção foi racionalizada. Ela hoje está dentro do processo institucional. Weber diz isso. Foi racionalizada. Mas continua coerção. E, de vez em quando, essa coerção institucional, colocada dentro de parâmetros democráticos, é rompida. E emerge novamente tudo aquilo que, atavicamente, persiste. Esse atavismo está constantemente fazendo força para vir à tona, a partir do inconsciente grupal e individual.

OP – Quando o senhor percebe manifestações semelhantes na democracia, isso foi uma surpresa?

Valton – Não. A democracia é, na minha visão, apenas uma espécie de cobertura, de invólucro jurídico-político para algo subjacente, que é um impulso constante no sentido do estabelecimento de regimes de exceção. Não faz parte da natureza do inconsciente humano a democracia. Democracia é um artifício, enquanto ditadura é a estrutura fundamental do funcionamento do grupo humano. Não estou defendendo a ditadura. Mas eu estou dizendo que esse artifício, que hoje é estabelecido através da justiça, da lei, é sempre muito instável.

OP – O presidente Lula, em certo sentido, seria a antítese desse pensamento paranoico, pelo menos em suas relações políticas, na medida em que ele superou esse radicalismo de esquerda e conseguiu dialogar com praticamente todo mundo?

Valton – O Lula é, na minha visão, um gênio da política. Um indivíduo genial. Ele intui coisas que um indivíduo precisa formular conceitualmente para poder entender. Ele não precisa tanto do saber acadêmico, porque ele tem a intuição do gênio. Eu creio que não é que tenha conseguido essa proeza, porque isso seria passar por cima da natureza da política. Agora, na verdade, o Lula fez um governo de conciliação. E essa conciliação começou com a Carta ao Povo Brasileiro (em 2002). E é da própria personalidade dele, que juntou uma proposta conciliatória com o capital, com a elite empresarial, principalmente paulista, e o trabalho. Juntou com essa personalidade conciliatória por essência. Isso facilitou o trabalho do gênio político do Lula.

OP – Mas, para além da capacidade de conciliação, o messianismo é algo que o senhor vê presente na figura do Lula?

Valton – Eu acho que tem. Ele tem um componente carismático. E como as populações sempre vivem em busca dessa organização messiânica, carismática. Em maior ou menor grau, as sociedades vivem sempre em busca de uma realização fetichista, mágico-messiânica. Creio que isso acabou entrando também como um elemento que compõe esse conjunto. Não só isso. O Lula não é um caudilho, no sentido dos caudilhos latino-americanos, exatamente. Mas tem alguns elementos mágicos e messiânicos, sim.

OP – O senhor falou que talvez a política seja uma prática impossível. Como é para um militante, pensador e ator político como o senhor lidar com isso?

Valton – É um conflito para mim. As relações de mercado foram ao encontro do narcisismo, do individualismo das pessoas, de tal maneira que nós vivemos hoje num mundo onde o social, a sociedade não intercambia afeto e emoção. Os intercâmbios são de objetos-fetiche. O indivíduo não ama porque deseja uma mulher de uma forma realmente afetuosa, mas porque aquela pessoa se transformou num objeto-fetiche. As relações humanas estão sendo fetichizadas e substituídas por intercâmbios coisificados, objetivados. Que eu chamo objetos-fetiche porque eles têm um conteúdo mágico. Não são bem objetos de uma realidade humana. Nesse sentido, o consumo passa a ser consumo de tudo. Aí você tem um caminho para a barbárie. Se você juntar a ideia política da paranoia com a ideia do fetichismo social, você vai dizer que isso é um percurso sem saída. E é, de fato, assim que eu penso. Não existe pós-modernidade. Existe, isso sim, um caminho que está levando o homem, inclusive com os problemas ecológicos, os problemas de meio ambiente, a um beco sem saída. E esse beco sem saída, a política não resolve, porque, além desses aspectos que eu falei, ela está, hoje, mercantilizada. Estamos dentro de um contexto que, no meu modo de ver, não estimula otimismo.

OP – O senhor atuou e produziu muitas reflexões na época em que a Luizianne (Lins, prefeita de Fortaleza) foi candidata contra o Inácio (Arruda, do PCdoB, hoje senador), em 2004. Qual a avaliação que o senhor faz desse processo todo, incluindo a experiência da prefeita no poder?

Valton – Quando a Luizianne se candidatou, nós já tínhamos firmado compromisso com o Inácio. Quando o (José) Genoíno (então presidente nacional do PT) entrou em contato conosco, para entrarmos no PT, nós colocamos como condição que a gente entraria já com essa situação firmada, eu o Eudoro e outros, que saíram do PSB, de apoio ao Inácio. Isso foi um ponto. A outra coisa é que eu já vinha criticando a própria estrutura, a política de organização do PT. Que eu dizia que essa política de organização era tendencialmente paranoica. E é. O outro é tomado como inimigo absoluto, não como adversário eventual. Eu dizia que isso era um caldo de cultura da paranoia. E quando a candidatura da Luizianne veio à tona, eu dizia: isso é a manifestação desse caldo de cultura emocional e passional que impulsiona essas tendências paranoides. Não tinha nada a ver com a Luizianne em si, como pessoa. Esse sistema tem um componente inconsciente de elementos puristas, vanguardistas, que acabam sendo um passionalismo paranoico. Eu creio que, independentemente de toda boa vontade, toda sinceridade e as boas intenções, isso acaba prevalecendo. Esse conteúdo subjacente acaba prevalecendo.

OP – O pensamento clássico sobre a política, que se consolida com Sócrates, Platão, Aristóteles, tira a emoção de dentro da reflexão política. Tenta fazer uma política destituída de emoção e como pura razão. A busca dessa racionalidade pura atrapalha a reflexão sobre a prática política?

Valton – A questão é que isso é uma ficção. Não existe isso. Não existe nenhuma possibilidade. No meu título de doutor honoris causa, meu discurso na universidade foi: “Limites da razão científica”. O que eu digo? Que a emoção, os afetos, os sentimentos são produtores de saber. Não há como retirar. A produção do saber depende, estruturalmente, dos afetos. Eu não posso produzir saber sem a participação real dos seres humanos. Seus intercâmbios reais, afetivos e emocionais. Isso é bobagem. Não existe matemática que dê conta de tudo. Somos seres nos quais a produção do saber é acoplada estruturalmente à emoção, ao afeto, ao intercâmbio afetivo. Você não tira da política o elemento passional.

Fonte: O Povo