Sem categoria

Quem fala do Brasil é visto como "exótico", diz escritor

Em sua crítica do romance Terras baixas, do irlandês Joseph O'Neill, Ronaldo Correia de Brito pondera que o escritor brasileiro que usasse em seu texto tantos elementos culturais como usa O'Neill seria tachado de "exótico, regionalista". Muito elogiado, Terras baixas traz várias páginas sobre o jogo de críquete.

Eu não me interesso pelo jogo de críquete. E você?

Por Ronaldo Correia de Brito* , em Terra Magazine

Terras baixas, romance do irlandês Joseph O'Neill, foi considerado "brilhante", "maravilhoso" e "impactante" por jornais como Guardian, Daily Telegraph e New York Times, e um dos dez melhores lançamentos de 2008. Nem questiono que o jornal Observer afirme que se trata de uma "obra-prima pós-11 de setembro". Outras questões me inquietaram mais, durante a leitura do romance.

O autor não tem a menor consideração pelos leitores que não se interessam pelo críquete e desconhecem suas particularidades. O críquete, jogo inventado pelos ingleses, que ganhou adeptos na Holanda, África do Sul e colônias do império britânico e tenta ganhar espaço nos Estados Unidos, ocupa metade das páginas do livro.

O'Neill aporrinha nosso juízo com citações de nomes famosos, jogadas inesquecíveis, times dos sonhos, indumentárias, campos, lances, perfis de jogadores e por aí afora. Um massacre para o leitor. Comparável aos intermináveis, obsessivos e pegajosos parágrafos descritivos de Em busca do tempo perdido, de Proust.

Se o leitor for ignorante sobre o críquete, como eu sou, busca outras saídas para ler o romance e se não as encontra, desiste da leitura. Nem consultando os verbetes do Google sobre o jogo disputado num gramado entre duas equipes de onze jogadores, que batem com pás de madeira numa pequena bola maciça, me empolguei.

Pergunto se um escritor brasileiro ocuparia as páginas de seu romance escrevendo sobre as sambadas dos maracatus de baque solto, da zona da mata norte de Pernambuco. Se o fizesse, seria chamado de exótico, regionalista, folclorista e por aí afora.

Ninguém chamou Joseph O'Neill de exótico, regionalista e folclorista. Ele escreve em inglês e trata de um joguinho inventando por ingleses, que dominaram o mundo e exportaram sua invenção, o que nos obriga a conhecê-la. O'Neill não considera a possibilidade de o restante do mundo, o Brasil incluído nele, desconhecer o jogo pelo qual é fissurado.

O editor inglês de O'Neill também não considera que existem leitores que desconhecem o críquete. Eles têm certeza de que da mesma maneira que os ingleses vendiam cobertores e paletós de lã a países dos trópicos, onde a temperatura média estava acima dos trinta graus, eles também venderão seus livros, mesmo contando histórias desinteressantes e alheias às outras culturas. Principalmente se vierem recomendados por jornais e revistas especializados e forem produzidos em mercados culturalmente dominantes.

A história se passa em Nova Iorque. Somos bombardeados por nomes de ruas, avenidas, praças, pontes e prédios. Supostamente, o leitor conhece tudo. É claro que todo leitor deve conhecer Nova Iorque, da mesma maneira que no século dezenove e até metade do século vinte todo leitor conhecia Paris. Não soa exótico ambientar um romance ou filme em Nova Iorque. Exóticos são Recife, Istambul, Málaga, Havana e Teerã.

Passado pouco mais de meio século, como aparenta ser provinciana a Paris de Proust, Maupassant e Gertrude Stein. A Atenas de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes arruinou-se, mas seus poetas não sofreram ranhuras, pairaram sobre a cidade e o tempo, ganharam o mundo.

Proust ainda não abandonou Paris, é preciso recorrer à cidade para encontrá-lo nos seus livros. Shakespeare não é Londres, também não é lugar nenhum, embora seja todas as latitudes e todos os homens. A Nova Iorque de O'Neill é provinciana, apesar da epígrafe de Whitman e da filosofia do "Destino Manifesto" de Emerson, que outorga aos americanos o direito de se expandirem pelo mundo.

* Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galiléia.