Zé Celson Martinez – Viva o palco brasyleiro

Em entrevista ao jornal O Povo publicada nesta segunda-feira (24/01) José Celso Martinez Corrêa fala sobre militância, política e teatro. Questionado sobre a eleição de Dilma Roussef para a Presidência da República, Zé Celso respondeu: "A vitória da Dilma é a minha própria vitória. É como se eu tivesse sido eleito presidente". Leia a seguir a íntegra da entrevista:

Zé Celso

Ele nasceu na morada sol, como diziam os tupis. Menino ainda, se encantou com o céu. Brincou de empinar papagaio até já bem graúdo. Um dia, eis que a linha partiu e pipa voou longe, voou alto. “Encontrei ela toda molhada, tinha chegado nas nuvens”, lembra. De volta para casa, mesmo desconfiando do papel molhado, acreditou que, seca, a arraia poderia voar uma vez mais. Não deu outra. O vento forte bateu e o papagaio subiu. Cerca de 40 minutos depois, a cena emblemática já não era mais vida, era arte. O rapazote José Celso Martinez Corrêa também era outro, tinha descoberto o teatro. “Eu me encontrei ali. Naquele momento, prometi que nunca mais iria ser infiel aquela experiência, ao que tinha acabado de viver”.

Lá se vão mais de 50 anos do ocorrido. Nessa trajetória, Zé Celso se inventou e reinventou umas 300 vezes, ao passo que inventou e reinventou o chamado teatro brasileiro. Em cena, fez possível o impossível. Tirou do papel a peça imontável do modernista Oswald de Andrade, seu anjo da guarda. O Rei da Vela (1967) mudou tudo, tirou uma geração inteira do lugar, pôs o Brasil em cena devorado e regurgitado. Incansável, Zé não titubeou, mesmo quando a vida lhe grunhiu feito cão bravo. Preso, torturado, exilado, teve seu projeto artístico aninhado no Teatro Oficina destroçado. Retomada a democracia, ele recobrou o sonho e se superou. Com Zé Celso, o teatro venceu todos os limites, desafiando-se enquanto linguagem ao mesmo tempo em que decifrava uma nação. Com Zé Celso, o Brasil ganhou definitivamente os palcos, não saiu mais de cena e, tão pouco, se conteve com um papel de coadjuvante.

O POVO – Como o menino de família tradicional de Araraquara e o jovem estudante de Direito da clássica Faculdade do Largo do São Francisco olhariam hoje para o festejado artista de ruptura?

José Celso Martinez Corrêa – Eu não me surpreendo comigo porque eu sou isso aqui e estou onde estou. Eu nunca fui messiânico, eu sou carismático. Meu lema sempre foi o aqui e o agora. Então, tanto o menino quanto o jovem me veriam hoje com muita tranquilidade. Mas é claro que eu mudei. Nos anos 1950, por exemplo, eu vivi no armário. Eu tive um relacionamento de 10 anos sem me assumir. Eu era assim quando criei o Oficina. Só com O Rei da Vela eu me libertei. Foi quando eu descobri que não foi o Padre Anchieta que trouxe a cultura para o Brasil, catequizando os índios; mas, sim, os índios que devoraram o Bispo Sardinha que nos construíram culturalmente. Foi aí que a minha vida começou.

OP – Por mais que a gente tente fugir, a gente acaba sendo sempre um reflexo das nossas casas, das nossas famílias. Mesmo que um reflexo distorcido. Que família era essa sua, que viu nascer dois artistas, dois artistas de teatro?

Zé Celso – Dois artistas de teatro, um arquiteto, uma historiadora… Minha família não era tão tradicional. Eu sou filho de vira-latas. Eu tinha um avô português de Trás-os-Montes; outro avô espanhol, da Galícia. Tinha uma avó italiana, analfabeta, de Gênova; e outra avó índia. Acontece que meu avô era muito esperto e ficou rico. Meu pai também. Foi o único dos irmãos que largou a roça. Meu pai era um homem letrado, criou uma escola, adorava os livros, tinha uma biblioteca, gostava muito de cinema, filmava muitas coisas. Então, nós todos lá em casa tivemos muito acesso à cultura. A minha geração, porém, foi muito cruel com a família, de uma maneira geral. Eu, por exemplo, rompi com os meus pais quando saí de casa. Fui cruel demais com eles. Mas tive uma família maravilhosa. Minha mãe era muito reacionária, teve uma formação muito católica, obrigava a gente a rezar… Eu odiava tudo aquilo. Ela foi uma mulher que vestiu luto uma vida inteira, por conta de uma filha que perdeu antes mesmo de eu nascer. Já meu pai era totalmente diferente, era um sujeito leve.

OP – O Luís Otávio, seu irmão, morre em 1987, assassinado, brutalmente assassinado. De que forma esse episódio te vitimou?

Zé Celso – Foram 107 facadas. Com uma, você mata uma pessoa. As outras todas estão, na verdade, matando uma outra coisa, que está em quem mata e não em que está sendo morto. O Luís era uma figura formidável, mais alegre que eu, mais livre que eu… Mais que a censura, mais que a prisão, mais que o exílio, a morte do Luís foi definitiva para mim: foi quando eu me dei conta de que a vida é trágica. Ali, eu rompi com o drama. Eu rompi com tudo, com as regras, com os dogmas.

OP – Em dezembro, o Ministério da Justiça autorizou o pagamento de um retroativo de R$ 569 mil, além de uma aposentadoria vitalícia de R$ 5 mil mensais, a você, como parte das indenizações daquilo que você sofreu ainda durante a ditadura. Isso paga?

Zé Celso – A justiça, eu fiz Direito e sei, é superior à lei. Nada vai pagar o que eu sofri. Nada na vida supera a tortura. A tortura foi a experiência mais terrível de toda a minha vida. Nenhum dinheiro do mundo apaga isso. Agora, eu sou pragmático. Vejo essa indenização que estou recebendo como um dever do Estado. É pouco, é muito? Não sei, não me interessa. Só sei que vou receber. É o que tem que ser. Eu não tenho culpa em relação a nada que fiz na ditadura e também não tenho ressentimento. Agora, lei é lei. Tortura é crime e a indenização deve-se a isso.

OP – Como é que você acompanhou a chegada de Dilma Rousseff à Presidência?

Zé Celso – A vitória da Dilma é a minha própria vitória. É como se eu tivesse sido eleito presidente. Eu me identifico totalmente com ela, nós vivemos a ditadura com uma mesma energia. A Dilma, desde o enfrentamento aos militares, foi uma figura ligada ao pensamento, à organização, como ela foi agora com o Lula. A gente não pode esquecer que foi a Dilma, com a competência dela, o rigor dela, a organização dela, que ajudou o Lula no momento mais crítico de todo o Governo, que foi durante o caso do mensalão. Todos os grandes do PT foram abalados e o Governo se manteve firme. Miticamente, a vitória da Dilma mexe muito em mim. Agora, claro, isso é o que eu penso. É a minha verdade. Se tem uma coisa que eu aprendi com o Nelson Rodrigues, é que não existe verdade absoluta. Durante a campanha, eu até cheguei a fazer uma réplica carinhosa a algumas questões colocadas pelo Caetano Veloso em relação à Dilma e ao Lula, mas tudo isso entendendo a liberdade do Caetano de pensar o que ele quiser e dizer o que ele quiser. Cada um tem sua versão, a História é feita de perspectivas.

OP – Independente da orientação política, Zé, você é um apaixonado pelo Brasil. Que gigante é esse que você tanto ama?

Zé Celso – Eu sou apaixonado pelo Brasil porque o Brasil não é só o Brasil. O Brasil é o mundo todo. Dia desses, vi uma coisa na Internet, que justifica muito o meu amor pelo Brasil. O (Gilberto) Gil, participando de um evento na África, disse o seguinte: “A África civiliza o Brasil”. Porra! Essa é uma visão totalmente nova… Ou seja, o Brasil me surpreende! O Brasil é, por excelência, uma experiência da antropofagia. Aqui, nós somos todos misturados. Nós não temos dificuldade alguma de nos relacionar com o outro.

OP – Além do Brasil, você tem outras referências muito queridas em sua criação. Tem Oswald de Andrade, tem Nietzsche, tem Cacilda Becker e tem o nosso Antônio Conselheiro. Que salada você faz dessas influências?

Zé Celso – Eu sempre digo que o Teatro Oficina é o terreiro da arte. Nesse nosso espaço sagrado, as entidades vão emergindo. Então, tem Oswald, tem Nietzsche, tem Cacilda, tem Conselheiro… Não há regra. O meu teatro é o teatro do desregramento da vida. Essas entidades todas se retroalimentam. De repente, você está estudando Cacilda, aí já está em Oswald, depois pula para Artaud… Conselheiro, por exemplo, me ensinou coisas fabulosas de teatro. Foi com ele que eu aprendi o que é ser um conselheiro, e não um Messias, um líder, um juiz. Foi o Antônio Conselheiro que me fez entender que o teatro é o lugar do apoderamento humano. Eu detesto quem fala dos atores do Oficina, como meus pupilos, meus seguidores…

OP – Você se ressente, de alguma forma, da sua geração? Seria melhor viver todo esse presente da companhia com um Renato Borgui, por exemplo, que fundou o grupo com você em 1958?

Zé Celso – Eu gostaria imensamente de trabalhar com os atores da minha geração, como o Renato Borgui. O Renato é um ator extraordinário. Mas o meu desejo, a minha vontade, no entanto, não é o suficiente. De repente, a minha geração se castrou. A minha geração é uma geração de arrependidos. As pessoas se arrependeram da luta armada, as pessoas se arrependeram do desbunde… O desbunde, aliás, foi uma revolução, para a minha geração, muito mais impactante do que foi a luta armada. Mas eu não estou só. Eu estou com a Vera Barreto Leite, que vai fazer 75 anos. Eu tive a Renée Guimel, que ficou comigo até os 97. O Marcelo Drumond está comigo há 25 anos. Então, você, aos poucos, vai construindo outras relações. Eu não me sinto sozinho, mas queria muito reencontrar minha geração no palco e na plateia. Saudade, eu não tenho. Não tenho saudade de nada. A memória, para mim, é uma coisa completamente ativa. Ela não me põe no passado, não me traz angústia.

OP – Na carta aberta que você encaminhou ao governador Cid Gomes, há uma ligeira, mas importante, citação de Cacilda: “Um dia, o mundo voltará a compreender a o valor incomensurável do teatro”. Lá, você conclui: “Este dia chegou”. O que leva você a acreditar nisso?

Zé Celso – Eu acredito que as artes cênicas são um instrumento fenomenal de formação e transformação social. Elas são uma experiência de encontro e toda experiência de encontro é transformadora por excelência. Quando eu paro e penso como começamos a montar Os Sertões há 10 anos, me dou conta do absurdo que fizemos. Uma peça com 100 pessoas, com quase 30 horas de duração, apresentada em cinco dias? Era um absurdo, sim, sem dúvida; mas um absurdo completamente libertário para quem viveu e para quem se permitiu viver aquela experiência. O teatro que eu acredito é um teatro de divas e divos, um teatro de sujeitos plenos e radiantes, um teatro de estrelas. Estrelas, no plural. O meu teatro é um teatro-constelação, eu não quero coadjuvantes, nem assistentes, quero todo mundo brilhando. A minha filosofia de vida é essa.

Perfil

Paulista de Araraquara, José Celso Martinez Corrêa nasce em 30 de março de 1937. Nos anos 1950, já na capital paulista, entra para a tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco e participa do Centro Acadêmico 11 de Agosto. Na militância política, desperta para a criação artística. Em 1958, funda o Oficina, inicialmente um grupo de teatro amador. Seus primeiros textos, Vento forte para papagaio subir (1958) e A Incubadeira (1959), ambos autobiográficos, são montados pela equipe sob a direção de Amir Haddad. Em 1961, o Teatro Oficina inaugura a sua fase profissional e sua casa de espetáculos, alugada e reformada na Rua Jaceguai, onde mantém as atividades até hoje. Nos anos 1970, a censura barra as atuações do coletivo. Exilado, Zé Celso reencontra o sucesso nos anos 1990. Em 2000, encena Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Em 1958 aconteceu a Fundação do Oficina
O grupo nasce reunindo jovens da Faculdade do Largo do São Francisco.

Em 1974 Zé Celso é preso e exilado
O impacto da censura foi devastador. A companhia só resurge nos anos 1990.

Fonte: O Povo