Na França, tunisianos temem retorno da ditadura

"Enquanto a democracia não for instaurada, as manifestações devem continuar", diz Arfaovi Ali, membro do Partido do Movimento Democrático Socialista

Faltando pouco mais de cinco meses para as eleições diretas na Tunísia, o povo deste país insiste em demonstrar nas ruas que a Revolução de Jasmim, responsável pela queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali, somente começou. O discurso conciliador e com tons progressistas do primeiro-ministro, chefe interino do governo, Mohammed Gannouch, proferido na sexta-feira 21, na televisão estatal, não foi capaz de arrefecer os protestos dos tunisianos. O Palácio do Governo, em Tunis, está sitiado por camponeses, estudantes e trabalhadores, desde o último domingo, quando diversas caravanas originadas do centro-oeste do país chegaram à capital.

Os manifestantes querem a imediata dissolução do partido do ditador, a renúncia de Gannouch e de todos os outros membros do antigo governo, que ainda ocupam os principais ministérios, como o da Defesa, do Interior, Relações Exteriores e Finanças. Além disso, eles querem a convocação de uma assembléia constituinte. A manutenção do toque de recolher e de membros da ditadura no governo de transição representa, para os insurretos, sinais de um golpe palaciano. O povo parece não se contentar com os gestos de abertura e de concessões políticas. Nem mesmo com o anúncio sobre o mandado internacional de prisão contra Ben Ali e seus familiares, expedido pelo ministro da Justiça, Lazhar Karoui Chebbi, devido à "aquisição ilegal de bens e transferência ilícita de fundos para o exterior".

"Enquanto a democracia não for instaurada através das eleições e os resquícios da ditadura não forem dissolvidos, as manifestações devem continuar", afirmou Arfaovi Ali, membro do Partido do Movimento Democrático Socialista, ilegal há 23 anos, desde que Ben Ali assumiu o poder. Ele disse que o povo teme pela reprise da experiência de 1987, quando Ben Ali conspirou e destituiu Habib Bourguiba, que passou de um dos principais líderes da independência da Tunísia, em 1956, a um governante vitalício.

Refugiado do desemprego em Reims, na França, Arfaovi Ali chegou a ser preso por quatro meses em 1987 e proibido de sair do país até 1992. O militante, que sobrevive hoje da construção civil, critica o posicionamento do governo Sarkozy. Segundo ele, este se mostrou tímido diante das atrocidades recentes cometidas pela polícia de Ben Ali. Ele avalia que o ditador, para silenciar a insatisfação do povo, ordenou uma carnificina. Em poucos dias, foram mais de 100 mortos nas manifestações de repúdio à ditadura, segundo os números divulgados pela ONU.

"O silêncio do governo francês já era um tanto esperado, já que a França é uma aliada política histórica da ditadura na Tunísia. A estabilidade francesa também depende da estabilidade de países como o nosso", afirmou Arfaovi Ali, ressaltando que os países europeus fizeram uma aposta equivocada ao pensar que governos sangrentos iriam garantir isso no mundo árabe.

Sem se dar conta das possíveis consequências diplomáticas do posicionamento público por parte do governo francês, a ministra do Exterior, Michèle Alliot-Marie, chegou a oferecer publicamente o apoio das Forças de Segurança francesas a Ben Ali, antes de o ditador fugir para a Arábia Saudita. Sarkozy tentou embaçar o episódio negando refúgio ao antigo aliado.

Condenando a "indiferença" do governo e de parte da sociedade francesa, a internauta Mary Anne, moradora da região de Champagne-Ardene, no norte da França, comenta na rede social da Associação Franco-Tunisiana de Reims: "o povo francês faria bem em olhar tudo isso mais de perto e lembrar de seu próprio passado".

O biólogo e professor tunisiano B. D., de 27 anos, que prefere não se identificar por motivos de segurança, afirma que foi a primeira vez que o povo de um país árabe fez uma revolução pacífica. Isso justificaria o nome de batismo: "Revolução de Jasmim", em referência ao símbolo da Tunísia, a flor branca que evoca as idéias de paz e tolerância.

"O governo ditador foi que respondeu com bombas de gás lacrimogêneo e atiradores de elite", disse. Ele critica a corrupção alastrada pela família de Ben Ali, que consolidou durante décadas uma "verdadeira cleptocracia". "Eles utilizaram o poder para enriquecer. Ben Ali e sua esposa desviaram muito dinheiro público para contas em diversos países. Eles têm um castelo no Canadá, mansões em Dubai, na Argentina, e em outros lugares do mundo", denuncia.

Esperança e cautela

Em relação à construção de um novo sistema político na Tunísia, o biólogo e professor B.D. disse que não será uma etapa fácil. "Nunca tivemos uma experiência democrática. A ditadura existia antes mesmo de Ben Ali. Só sabemos sobre democracia através dos livros. Não confio nesse governo de transição. Por isso prefiro não revelar meu nome. A chance de perseguição ainda é fato", disse. Ele revela que o governo de Ben Ali era uma farsa para os outros países. Aqueles que se opunham, relata o professor, eram capturados, torturados e presos. Segundo informação oficial do ministro da Justiça tunisiana, Lazhar Karoui Chebbi, somente no episódio das manifestações antes e depois da queda de Ben Ali, 71 prisioneiros foram mortos sob a guarda do governo.

Mais otimista, o membro do Partido do Movimento Democrático Socialista, Arfaovi Ali, diz acreditar que, de agora em diante, os caminhos estão abertos para "a construção de uma verdadeira democracia na Tunísia, com a expressão de todas as correntes, partidos políticos, seja de esquerda ou de direita". "A revolução na Tunísia vai mudar o ponto de vista do mundo ocidental em relação ao mundo árabe. Espero que o mesmo que os tunisianos fizeram aconteça em outros países", aposta.

A estudante de mestrado em administração em Reims, na França, Sarah Essouda, de 23 anos, filha de tunisiano e francesa, diz ter um forte pensamento de dor e esperança por sua família que mora na Tunísia, assim como pelas famílias que perderam seus filhos, pais e vizinhos. "Essas pessoas são símbolos desta liberdade conquistada", disse. Autora de vários vídeos amadores no Youtube de depoimentos em solidariedade aos tunisianos na França, ela afirma que a falta de liberdade de imprensa e a necessidade de expressar a dor de se viver na censura culminaram na ruptura do silêncio forçado através das redes sociais. "Agora, eu espero que o povo tunisiano seja de fato livre, possa se exprimir, construir um novo país e que tenha um governo que esteja do lado dele", torce.

Fonte: Débora Alcântara, de Reims, França, para Terra Magazine