Lejeune Mirhan: A Terra Treme no Oriente Médio
Afastado há alguns meses por outros compromissos das colunas semanais do Portal Vermelho, retorno agora ao objeto de meus estudos e pesquisa há quase trinta anos – o Oriente Médio árabe – a convite, desta vez, do portal da Fundação Maurício Grabois, na condição de colaborador. E retorno em um momento especial: a terra treme em todo o Oriente Médio em termos políticos.
Por Lejeune Mirhan*
Publicado 04/02/2011 18:55
Dias de Fúria
Em termos de história, na maior parte do tempo, sejam em atitudes pessoais, atos coletivos ou mesmo descobertas e invenções, nem sempre aquilatamos as dimensões que essas atitudes e descobertas podem ter na história da humanidade e no futuro imediato ou de médio e longo prazo.
Pois arrisco um palpite que o caso do jovem de 26 anos Mohammed Boazizi, vendedor de frutas ambulante, mas com formação universitária, é um desses casos. Inconformado com o fato da polícia ter entrado no seu carrinho, tomado seu ganha pão, decidiu imolar-se em frente ao palácio presidencial onde governava desde 1988, por longos 23 anos, Zine Abdine Ben Ali. A partir desse momento até a queda do ditador, em 16 de janeiro, transcorreram-se 27 dias de grandes manifestações. A polícia atacou com fúria, diariamente, a multidão que, de peito aberto, enfrentou-a. O ditador – chamado durante todos esses anos de “presidente” por ser amigo de Washington – fugiu em debelada com sua família e, dizem, com mais de cem malas carregadas de ouro e dólares.
Em vários outros países ocorreram imolações nas capitais árabes. Essa forma de manifestação não é novidade no movimento popular. Foi muito usada pelos monges budistas na década de 1960, contra os Estados Unidos, na Guerra do Vietnã. Na Guerra dos Bálcãs, na década de 1990, em especial na Albânia, esses episódios também ocorreram.
Toda a região do Oriente Médio, nos 22 países árabes (incluindo a Palestina, que ainda não tem seu Estado nacional), possui governos longevos. São monarquias absolutistas ou ditaduras disfarçadas de democracias, onde a cada cinco ou seis anos, fazem-se “eleições” farsescas, fraudulentas, para tentar legitimar ditadores amigos dos Estados Unidos, para garantir ao império norte-americano a defesa de seus interesses nessa estratégica região, em especial a garantia do fluxo de petróleo para a América, a passagem dos seus navios petroleiros e cargueiros pelo Canal de Suez. Garantir, fundamentalmente, a existência do Estado racista e sionista judaico de Israel, algoz do povo palestino.
Nas últimas semanas houve a derrubada de um ditador na Tunísia, protestos na Jordânia contra o Rei Abdulláh 2º, no Iêmen do ditador Ali Abdulláh Saleh, no poder há 32 anos, e até contra o rei Abdulláh Bin Abdel Aziz, da família que governa a Arábia Saudita há séculos (até o nome do país vem do ancestral Ibn Saud). No entanto, há uma diferença imensa de alguns protestos e o que está agora acontecendo no Egito.
No Egito, onde os protestos se iniciaram desde a queda do ditador tunisiano, as coisas são completamente diferentes. É o maior país árabe, com 80 milhões de habitantes, e aliado estratégico tanto dos Estados Unidos como de Israel, pois se coloca como inimigo dos árabes e dos palestinos.
Eu pretendia dar um panorama geral de todos os outros países árabes neste momento, com suas encruzilhadas históricas, em especial o Líbano, a Palestina e o Iraque. No entanto, ainda que os problemas desses países que mencionei se insiram no contexto geral de que comentarei sobre o Egito em particular, esta análise ficaria por demais longa se tratasse de todos. Ficarão para as próximas colaborações que enviarei.
Egito, um país estratégico
O Egito é um dos países árabes mais milenares, ao lado da Síria. É claro que é justo falar de uma época dos faraós e suas dinastias e outra do momento no século sete, quando foi ocupada pelos muçulmanos do Império Árabe.
O marco fundamental do Egito ocorre com a revolução de 1952, que derruba o rei Farouk e instaura a República. Foi uma iniciativa dos jovens oficiais livres, liderados pelo coronel Gamal Abdel Nasser. Um presidente interino foi colocado no poder, o general Mohammad Naguib, que durou até 1954. Dessa data em diante, esse país, que diz fazer eleições regulares para presidente, teve apenas e tão somente três presidentes. O primeiro deles, Nasser, o maior e mais querido líder árabe da história, governou de 1954 até 1970, quando morreu. Anuar El Sadat assume e é assassinado em 1981 e, de lá para cá, Hosni Mubarak, o ditador de plantão, foi “eleito” e reeleito nada menos que seis vezes, muitas vezes com votações que atingiam quase cem por cento.
Sempre foi amigo dos Estados Unidos. Governou com a mão de ferro esses trinta anos e nem sequer teve a pretensão e nem precisou indicar um vice-presidente. Era vice de Sadat desde 1975, como chefe da Força Aérea. Após a assinatura dos acordos de paz com Israel em 1979, sob os auspícios da administração Carter, após as conversações de Camp David em 1978, Mubarak vai ganhando destaque até que, com o assassinato de Sadat por extremistas islâmicos, que o consideraram traidor, assume definitivamente a presidência.
O Egito, sob o seu governo, viveu trinta anos de corrupção e repressão do povo, dos sindicatos e dos partidos de esquerda e progressistas. Reprimiu, em nome de uma suposta laicidade, a organização Irmandade (ou Fraternidade, dependendo da tradução) Muçulmana, fundada por Hasan Al Banna, em 1928, sob a inspiração de Sayyid Qutb (falaremos dela posteriormente).
O Egito é o país do Oriente Médio que mais recebe ajuda direta do tesouro americano, autorizado pelo Congresso dos Estados Unidos. Isso significa em torno de dois bilhões de dólares ao ano nos últimos trinta anos, pelo menos. Israel recebe o dobro, ainda que tenha um décimo da população egípcia.
Não é a primeira vez que as massas egípcias vão às ruas, nem mesmo as atuais dimensões são inéditas – a manifestação do dia 1º de fevereiro atingiu dois milhões de pessoas, apesar da imprensa ocidental e brasileira falar em “alguns milhares” –; o povo já havia protestado contra a ocupação turca e depois britânica nos idos dos últimos anos da década de 1910 no século passado. No entanto, as características atuais são completamente distintas.
O momento delicado que vive o Egito
Quero a seguir, com base na literatura internacional a que tivemos acesso, tecer diversas considerações sobre a realidade desse histórico e estratégico país, sob diversos aspectos, citando, sempre que possível, a fonte.
A economia do país
O Egito vive um modelo econômico de absoluta inspiração neoliberal. Privatizou praticamente metade das suas antigas 300 empresas estatais, em especial as estratégicas. É o chamado capitalismo financeiro, que engordou as contas das famílias e grupos rentistas do país em detrimento da pauperização das amplas massas árabes. Como diz Pepe Escobar em seu blog, é como se o vírus latino-americano contra o neoliberalismo tivesse contaminado o Egito e todo o Oriente Médio. O desemprego é elevadíssimo e a renda per capita não cresce há anos. O Fundo Monetário Internacional (FMI) dizia para todo o mundo que o Egito era um “modelo de economia a ser seguido” (corte de gastos, juros altos, sem controle de câmbio, arrocho salarial… aliás, muito parecido com as primeiras medidas do governo brasileiro). Esse é o contexto econômico em que ocorreram as manifestações na Praça Tahrir (Praça da Liberdade).
A Questão política
O Egito, assim como qualquer outro país árabe, nunca foi exemplo de democracia. Não, pelo menos, nos moldes a que estamos acostumados no Ocidente e no Brasil, desde a redemocratização, em 1985. Não há liberdade de imprensa, nem liberdade partidária. No parlamento, o único partido consentido, a Irmandade Muçulmana, elegeu, nas eleições parlamentares de 2005, 88 deputados de um total de 454 cadeiras (19,38%).
A parceria estratégica que o Egito mantém com os Estados Unidos tem diversos objetivos. O maior deles é o controle do Canal de Suez, por onde passa boa parte dos petroleiros e navios transoceânicos de luxo de todo o mundo. Boa parte da economia mundial depende dessa passagem que liga o Mar Vermelho ao Mediterrâneo. O Canal era explorado pela Inglaterra, mas foi nacionalizado por Nasser em 1956, na mais firme e heroica atitude tomada por um dirigente árabe em toda a história.
Além disso, a mais estratégica passagem entre o Egito e a Faixa de Gaza, a cidade de Rafah, está sob total controle do governo Mubarak. Para asfixiar Gaza e os palestinos, Mubarak mantém com mão de ferro o total controle dessa fronteira, fazendo o jogo de Israel, que lhe pede repressão maior a cada dia. O exército americano está, inclusive, construindo uma muralha de aço para separar a fronteira egípcia e palestina.
Em recente declaração do vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Bidden, este confessou em público o que todos sabem: afirmou com todas as letras que Mubarak não pode ser chamado de ditador. Que seria ele então?
O exemplo tunisiano e algumas imolações ocorridas também no Cairo foram a gota d’água para as manifestações. A imprensa insiste em vincular isso com a questão islâmica, mas isso é um equívoco. O levante é popular e não islâmico. Isso está claro. São cidadãos egípcios que saem às ruas para pedir um basta à ditadura Mubarak, que até outro dia era chamado de “presidente” por essa mídia internacional e também a brasileira, hipócrita como sempre.
O que vimos a imprensa chamar de Revolução Egípcia pode, sim, ter características de revolução, a depender de quem a dirija e dos rumos que ela possa tomar de ora em diante. Não há como negar que os Estados Unidos lutam com todas as suas forças e armas para ter o controle de um processo de transição que não faça com que o aliado histórico se afaste de sua órbita de influência (mais abaixo comentarei sobre Israel ainda). O próprio Lênin dava as características de uma situação que pode ser revolucionária, quando ele dizia que “os de cima não mais conseguem governar como antes e os de baixo já não aceitam mais ser governados como antes”. É o caso do Egito.
Ainda assim, a chamada revolução egípcia ainda não dá sinais de que tem caráter antiamericano, anti-Estados Unidos. É sim, de forma clara, uma revolução anti um regime apoiado abertamente pelos Estados Unidos, mas isso é diferente. Sigo de acordo com a opinião da imensa maioria dos analistas internacionais cujos despachos pude ler, qual seja, de que qualquer regime que suceda Mubarak tem muito pouca probabilidade de ser serviçal e dócil com os Estados Unidos. Nesse sentido, e por si só, isso já representa uma derrota para o império norte-americano e sinaliza problemas para Obama, mais dos que ele os têm, tanto no front interno quanto externo. É como se Washington tentasse, a todo custo, sequestrar a revolução egípcia, realizando uma transição pacífica e de colaboração que preserve o futuro de Mubarak e seus aliados e os interesses norte-americanos e israelenses. E que o modelo neoliberal seja preservado.
Aqui, registro algumas observações:
Não há uma animosidade contra os Estados Unidos; sintonizo o tempo todo ao vivo a TV Al Jazeera e não vi uma bandeira norte-americana sendo queimada; tampouco vejo animosidade contra os estrangeiros em geral; os cartazes não me parecem ser antiamericanos;
Como diz Fisk, os egípcios deram gargalhadas quando viram Barak Obama na TV “conclamar” que Mubarak “abrace a democracia”, depois desse ter servido fielmente com sua ditadura aos interesses estadunidenses;
Soa profundamente hipócrita, segundo Borón, tanto Obama como sua secretária Hilary Clinton apelando para que um regime corrupto e repressivo como poucos no mundo inteiro trilhe agora um caminho de reformas democráticas, econômicas e sociais;
O movimento popular não mirou, em nenhum momento, como seus alvos estratégicos – como diz Chossudóvsky – a embaixada norte-americana no Cairo, os escritórios nacionais do FMI e do Banco Mundial, ou mesmo as bases americanas no Egito;
Vive-se, na visão de Pepe Escobar, uma espécie de Intifada egípcia, nos moldes das duas que ocorreram na palestina, em 1987 e 2000;
Os que protestam
Como dissemos, a oposição vivia momentos de quase total desmobilização; milhares de seus líderes encontram-se ainda encarcerados e muitos foram cooptados pelo próprio regime. A juventude toma, como sempre, a dianteira. No entanto, os repórteres que acompanham de perto as manifestações na Praça da Liberdade, registram que são, além de estudantes e desempregados em geral, operários, integrantes da classe média, como advogados, juízes, médicos, professores, doutores da mais antiga universidade do mundo, a Al Azhar, camponeses, teólogos, jornalistas e tantas outras profissões. Quanto à sua religiosidade, temos muçulmanos em sua maioria, mas cristãos cooptas. Mas, em momento algum se viu caráter religioso nas manifestações.
Formam-se neste momento, por todo o país, os chamados comitês populares. O Partido Comunista Egípcio emitiu nota contundente condenando toda a repressão, conclamando o “Fora Mubarak” e a formação de um governo de unidade nacional. O povo nas ruas grita que “exército e povo são aliados”. O slogan que mais se escuta nas manifestações é “não a outro mandato; não a uma república hereditária”, em uma alusão à possibilidade de Mubarak indicar seu filho, Gamal, para assumir o poder em setembro (em árabe La lil-tamdid; La lil-tawrith). Nas paredes pichadas, como que lembrando Maio de 1968, lê-se “queremos derrubar o sistema”. Cidadãos comuns, unidos, carregam a bandeira egípcia com orgulho. Quiçá isso retorne e desemboque na volta do nacionalismo e o pan-arabismo das décadas de 1950 e 1960 do século passado. Ouve-se ainda “Mubarak, vá-se para sempre! Mubarak, mostre alguma dignidade!” (em árabe isso até rima).
A oposição
Como tem dito a grande imprensa, parece que a revolução egípcia não tem rosto, não tem líderes, os partidos quase não aparecem. Quero comentar aqui alguns deles:
Associação Nacional pela Mudança: é liderada pelo ex-presidente da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), Mohammed El Baradei, Prêmio Nobel da Paz. Baradei, um técnico de prestígio internacional e de carreira na Organização das Nações Unidas (ONU), passou quase 15 anos fora do país. Ninguém atinge um posto desse sem ter sido de confiança quase que absoluta dos Estados Unidos. No entanto, nos últimos dois anos de seu segundo mandato à frente da AIEA, Baradei desalinhou dos Estados Unidos quanto ao programa nuclear do Irã. Cumpriu um papel positivo, no sentido de afirmar ao mundo que os técnicos da agência não atestavam o programa iraniano com objetivos de fabricar a bomba. É claro, ele é um político moderado, independente. Mas, já está tentando se cacifar, pelo menos neste momento de transição, e recebeu autorização de cinco partidos para tentar formar um gabinete de transição; pode emplacar ou não.
Partido Al Ghad: de linha republicana, liderado por Ayman Nour, que disputou com Mubarak a presidência em 2005, sendo esmagado pela fraude eleitoral; de linha centrista.
Partido Wafd: sob a liderança de Al Sayed Al Badawi, de linha liberal e moderada.
Movimento “6 de Abril”: uma organização juvenil, de centro-esquerda.
Kefaya: movimento laico, integrado por sindicalistas e intelectuais de classe média.
Irmandade Muçulmana: disputam apenas o parlamento e nunca passam de 20% dos votos. Seu atual líder é Mohammad Badias. A Irmandade tem estado discreta nas manifestações, mas sabemos que participa ativamente. O Ocidente quer mostrar que é um pavor a tomada do poder pelos muçulmanos, mas isso apenas uma forma de jogar terrorismo e preconceito na cabeça das pessoas. Até porque, esse agrupamento não propõe – assim como o Hamas na Palestina e o Hezbolláh no Líbano, nunca propuseram – um Estado islâmico (o Hamas, na sua fundação, propunha, mas mudou de posição). Essa Irmandade egípcia, que inspirou todas as outras nos países árabes, é na verdade uma organização moderada na política. Não falam em ruptura com o modelo capitalista e defendem a propriedade privada. É conservadora também do ponto de vista da moral e dos costumes. Presta mais serviços sociais de apoio à população pobre com baixa atuação na classe média de alta escolaridade e com intelectuais.
Partido Comunista Egípcio: fundado em 1922, fará, tal qual o PCdoB, 89 anos. Atua na mais absoluta clandestinidade, tem influência em setores sindicais e estudantis. Possui muitos de seus quadros dirigentes encarcerados, mas atua na linha de frente das amplas manifestações deste janeiro.
Pelo fato da Irmandade ser o agrupamento mais importante na política egípcia, vale a pena saber quais seriam as suas propostas neste momento. Defendem a nomeação de um 1º Ministro interino, que uma comissão de juízes faça uma imediata revisão da constituição, e que eleições livres e gerais sejam convocadas para o parlamento e para a presidência. Poderiam aceitar o moderado Baradei na linha de frente desse governo provisório de união nacional.
Mubarak ainda não deu sinais, apesar da pressão popular, da opinião pública e mesmo das pressões norte-americanas para uma transição mais abreviada, ainda que controlada, de que vai deixar o poder. E ainda nomeou um vice-presidente. Não poderia ter sido pior, pois indicou um tenente-coronel do exército, vinculado ao setor de espionagem e informações, um homem avesso à democracia e ao processo de transição, conhecido torturador. Parece-nos que isso seria uma decisão parecida com a que tomou o Xá do Irã, Reza Pahlevi, em 1978, um ano antes de sua queda e fuga para o mesmo Egito atual, quando indicou um 1º Ministro chamado Shapour Baktiar. Mas, tal manobra não surtiu efeito, pois a partir de março de 1979, uma insurreição popular, dirigida pelos setores mais progressista da sociedade iraniana, derrubou o governo despótico do Xá.
A cobertura da mídia
A mídia procurou esconder as manifestações iniciadas em Túnis, capital da Tunísia. De um modo geral, tanto no Brasil, como no mundo, o Oriente Médio é deturpado e mesmo desconhecido. Reforça-se um imenso preconceito contra esse povo e sua religião majoritária, o Islamismo. Estereótipos são reforçados, mostrando-se os muçulmanos como radicais e mesmo terroristas. A ombudsman da Folha, Susana Singer, em sua coluna de domingo (30), criticou a cobertura do próprio jornal, dizendo que demorou para enviar correspondentes e nunca explicou bem aos seus leitores o significado daquela região do mundo. E agora, recebendo material e despachos das grandes agências, procura ficar na superficialidade e não mostra a questão central, política e ideológica.
Os jornalões brasileiros em particular, só despertaram para enviar correspondentes depois de quase um mês de manifestações e da queda do ditador tunisiano. Descobriram depois de 23 anos na Tunísia e 30 no Egito que ambos os países eram uma ditadura. Chamaram, até uma semana atrás, os respectivos ditadores Ben Ali e Mubarak de “presidente” (sic). E, mesmo quando enviaram correspondentes para a região, estes passaram a cobrir com prioridade o que eles chamaram de atos de vandalismos e saques, desconsiderando o conteúdo político e mesmo revolucionário das manifestações.
Essa mesma imprensa, como diz Fisk, omite que tais saques e vandalismos são feitos por agentes e milicianos ligados ao governo Mubarak, chamados de battagi que em árabe quer dizer literalmente “bandidos”. São, em sua maioria, ex-policiais, viciados em drogas. Como diz o competente jornalista Antônio Luiz Costa, da Carta Capital, “a mídia Ocidental cobre os protestos do Cairo com muito menos entusiasmo do que os ocorridos em Teerã em 2009; protestos só interessam quando são pró-ocidentais e a democracia só convém quando a preferência dos eleitores coincide com a de Washington”. Uma conclusão correta e clara.
Ditadores e Legitimidade
Ninguém gosta de ditadores. Mas, como disse em longa entrevista que concedi à Rádio CBN de notícias no último dia 30 de janeiro, não se trata de escolher um ditador melhor que o outro. Todos sabem que Saddam Hussein, quando era amigo dos Estados Unidos, e bombardeou o Irã em uma guerra absurda em que morreram um milhão de pessoas de ambos os lados, era chamado pela imprensa norte-americana de “presidente” Saddam. Depois que passou a atacar os Estados Unidos, passou a ser “ditador” Saddam.
A legitimidade de um governo não provém nem emana sempre das eleições ditas democráticas nos moldes que conhecemos no Ocidente. A prova disso é que a democracia norte-americana é uma farsa. Praticamente só dois partidos concorrem e só tem chance quem tem bilhões de dólares para pagar a propaganda nas mídias.
Gamal Abdel Nasser praticamente nunca foi eleito nos 16 anos em que esteve à frente do governo do Egito. No entanto, era adorado pelos egípcios. As tarefas que ele executou, o conteúdo e o caráter de classe do Estado e do governo egípcios eram claramente antiimperialistas. Sua morte, em 1970, levou um milhão de egípcios às ruas em seu funeral e outros milhões em todas as capitais árabes. Ele nunca foi chamado de ditador pela esquerda e pela imprensa árabe.
Como diz Juan Cole em seu blog, o “Estado nasserista com todos os seus problemas, teve legitimidade porque era visto como um Estado para a grande massa dos egípcios, tanto para os de fora como os de dentro do país; o atual, de Mubarak, é visto no Egito como um Estado para os outros – Estados Unidos, Reino Unido, França e Israel – e é um estado para poucos: os ricos e neoliberais”.
Isso vale para o presidente Bashar El Assad, da Síria. Ele “herdou” o governo de seu pai, Hafez El Assad, morto em 1999 (governava desde 1970). A Síria hoje é o país que mais enfrenta o imperialismo norte-americano, ao lado do Irã. Na sua capital, Damasco, grupos revolucionários, de esquerda, progressistas e patrióticos mantêm livremente seus escritórios. É o país árabe que mais apoia a causa palestina. No entanto, as eleições ocorrem nos mesmos moldes que as egípcias. Não há comparação de um com o outro.
Na ciência política marxista costumamos dizer que o que assegura o caráter de classe de um Estado pode ser respondido quando a seguinte questão estiver clara: contra quem (qual classe social) e a favor de quem age a máquina do Estado? Respondido isso, sabe-se o caráter de classe de um Estado. Não estou entre os que veem na democracia um valor universal.
Problemas para Israel. O fortalecimento do Irã
Também sobre isso não tenho a menor dúvida. Quem mais perde neste momento, nesta situação pré-revolucionária ou até mesmo revolucionária, a depender do andamento do processo, é Israel e seu governo reacionário de Benjamin Netanyahu. E essa opinião minha coincide com a de diversos analistas, em especial M. K. Bradakumar, do Asia Times. E quem ganha é a República islâmica do Irã.
Mubarak é o principal parceiro de Israel. O Egito foi o primeiro país que assinou a paz em separado com Israel, seguido pela Jordânia. Nenhum outro assinou. Tecnicamente, Israel está em guerra com a Síria e o Líbano, pois confiscou terras desses países (respectivamente as colinas de Golã e as fazendas chamadas de Shebaa). Entre os dias 27 de dezembro de 2008 e 22 de janeiro de 2009, Israel bombardeou sem pena nem dó a Faixa de Gaza. Matou a sangue frio 1,5 mil palestinos, dos quais dois terços crianças, mulheres e velhos, sob o pretexto de atacar o grupo Hamas, legítimo representante do povo palestino. Que fez Mubarak? Ao invés de abrir a fronteira de Gaza para deixar passar alimentos, remédios e materiais de construção pela cidade egípcia de Rafah, acabou fechando-a de uma vez, forçando milhares de palestinos a construir túneis na região de fronteira, reforçando o contrabando e encarecendo os preços.
Já temos notícias que dezenas de diplomatas israelenses e seus familiares já deixaram, há muito, o Cairo. Impera na chancelaria e em geral no governo israelense, um nervosismo excessivo. Isso foi registrado por diversos analistas. Israel sabe que um novo governo egípcio poderá romper o acordo de paz de 1979 e isso fará com que o Estado judeu venha a ter que gastar muito mais em armamentos e despesas militares, pois há 32 anos ele desguarnece a fronteira sul com o Egito e concentra esforços com o front Norte do país, exatamente onde estão o Líbano, a Síria e Irã. Ruim para Israel.
Não tenho dúvidas que Israel vai ficando a cada dia mais isolado. E o Irã, que não é um país árabe (é persa), se fortalece a cada dia. Senão, vejamos os motivos que elenquei:
Papéis recentemente divulgados pelo WikiLeaks (Palestinian Papers) revelaram acordos e negociações secretas entre Israel e a Autoridade Nacional Palestina (ANP), do grupo Fatah, que fizeram enfraquecer ainda mais o grupo de Abbas e fortalecer novamente o Hamas, que tem apoio do Irã e da Síria.
O Hezbolláh acaba de conseguir formar um governo de maioria no Líbano, derrubando o governo pró-Estados Unidos e Israel de Saad Hariri; registre-se que tal governo é chamado de Bloco Patriótico e é composto, além do Hezbolláh do sheik Hasan Nasralláh, do Movimento Patriótico Livre, do general cristão Michel Aoun, mais o grupo Amal, de orientação xiita, cujo líder é Nabi Berri, presidente do parlamento, e pelo Partido Comunista Libanês.
O Irã tem boa influência no governo do 1º ministro xiita do Iraque, Nur El Maliki.
Desde os primeiros momentos, o Irã deu seu total apoio ao levante popular no Egito; Israel entrou em profundo mutismo e silêncio, o que reflete, na verdade, o seu imenso pavor de que todos os regimes árabes moderados e pró-Ocidente sejam derrubados no que alguns autores vêm chamando de Revolução de Jasmim ou Primavera Árabe.
O Irã tem profundas ligações com a Fraternidade Muçulmana, que Israel tem pavor que assuma o comando do país (do meu ponto de vista, esse agrupamento vai participar do novo governo, mas não defenderá um governo o islâmico; o Egito é fortemente laico).
Todos os fracassos seguidos de Washington de barrar o programa nucelar iraniano para fins pacíficos – apoiado pelo Brasil inclusive – que agora deixa de ser o foco no Oriente Médio; Israel perde seu discurso central.
A questão palestina e seu Estado nacional, a paz volta a ser o centro das negociações e Israel não vai ter como sair disso.
Conclusões preliminares
É um jogo ainda em andamento. As cartas estão na mesa e os jogadores se posicionando, articulando. Não se pode prever exatamente os resultados. Mas quero arriscar alguns palpites:
Obama perde nesse processo. Seu discurso do Cairo em julho de 2009, estendendo a mão para os muçulmanos, provou-se uma farsa, uma hipocrisia. Não deu passo algum para respeitar os muçulmanos e os árabes em geral. Insiste em classificar, quase que à revelia da maioria dos países, os partidos políticos Hamas e Hezbolláh como “terroristas”; são movimentos de resistência e de libertação nacional.
Qualquer governo, por mais moderado que seja, não terá, jamais, as mesmas relações de subserviência com os norte-americanos como sempre teve Mubarak. O que tanto os Estados Unidos sempre tiveram pavor poderá mesmo acontecer concretamente, que é a participação com destaque da Irmandade Muçulmana no futuro governo egípcio; isso não dará caráter religioso ao governo.
Israel sai profundamente derrotado e isolado. Perdeu seu discurso de que o maior inimigo é o Irã, de que este precisaria ser derrotado e bombardeado, e de que seu programa nuclear visa à construção da bomba atômica (fala como se ninguém soubesse que tem pelo menos 200 ogivas).
Ganham os palestinos, que devem se fortalecer na sua luta e na busca de seu Estado nacional. Eu só lamento ainda a existência da divisão entre o Hamas e o Fatah e outras organizações. Espera-se até meados do ano eleições gerais, ou pelo menos municipais.
Um novo Oriente Médio será construído e isso é perfeitamente possível. O modelo neoliberal pode sofrer abalos. Deverá crescer a democracia mais ampla, os partidos terão maiores liberdades, bem como a imprensa. Eleições gerais devem ocorrer em curto prazo no Egito e na Tunísia. O Oriente Médio nunca mais será o mesmo depois desse imenso tremor político ocorrido; mudanças profundas podem ocorrer inclusive nas monarquias da Arábia Saudita, da Jordânia, do Kuwait, entre outras.
Considerações finais
De minha parte, espero, com sinceridade que avancem as massas populares, no rumo de uma verdadeira revolução democrática, popular, patriótica e nacional. Que avancem os partidos comunistas e socialistas e de feições populares, independente da confissão religiosa de seus dirigentes. São todos árabes, sejam muçulmanos, cristãos ou mesmo judeus dos 22 países árabes.
Termino este artigo com uma frase de Helena Cobban, de seu blog, muito ferino contra os Estados Unidos: “no caso da política de Obama para o Oriente Médio, são cegos guiando cego e cegos aconselhando cego no salão oval da Casa Branca”, em uma clara alusão a Bill Daley, Ben Rhodes, Tony Blinken, Denis McDorough, John Brennan e Robert Cardillo, assessores e conselheiros de diversos cargos de Obama, todos, indistintamente, militantes fanáticos pró-Israel e a serviço do lobby judaico. Como diz ela, que venham os arabistas de Washington.
Nota:
Esclareço aos leitores que este é um típico artigo de Internet. Ele pode se dar ao luxo de ser longo, mas é datado, ou seja, vale para este momento histórico, em que a terra treme, no sentido político. De um dia para outro, a conjuntura pode ser alterada completamente.
*Lejeune Mirhan é sociólogo, professor, escritor e arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e da International Sociological Association e colunista da Revista Sociologia da Editora Escala.