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Bravura Indômita busca reerguer ânimos da América em guerra

Rooster Cogburn, personagem lendário do cinema e do western, foi criado em 1968 pelo escritor Charles Portis, que trocou o jornalismo por uma profissão melhor. Nascido em El Dorado, no Arkansas, Sul dos Estados Unidos, Portis pôs no romance True Grit toda a sua energia de pesquisador. O romance investiga modos, brios e linguagem da América do século XIX e funciona como seu inventário irônico.

Por Rosane Pavam, em Carta Capital

No ano seguinte ao da publicação, o livro foi transformado em película pelo grande diretor de estúdio norte-americano Henry Hathaway. Traduzida literalmente, a expressão que dá nome à obra equivale a autenticidade, ao “grão verdadeiro”.

Sob a rara e dura perspectiva feminina, Bravura Indômita, como intitularam o filme nestes trópicos, mostra que Mattie Ross, menina de 14 anos interpretada por Kim Darby, precisa de um falante John Wayne, na pele de Cogburn, para vingar a morte do pai. Tudo, claro, por um punhado de dólares.

Velho, bêbado, caolho e divertido, mas também cruel, o agente federal Rooster Cogburn tem de lidar com a valente, chata e impiedosa Mattie em um duelo sem armas. Os dois são farinha do mesmo saco, grãos da mesma verdade, iguais porque diferentes. Na versão de 1969, John Wayne está cerca de 20 anos acima da idade pedida pelo romance de Portis e Kim Darby interpreta Mattie oito anos à frente. Mas isto não diminui o filme. Grande porque seco, ele jamais cede ao que é sentimental, nem mesmo nas cenas em que a menina presencia um enforcamento coletivo na praça e reconhece, na funerária, o corpo do pai.

O filme de Hathaway olha para o western como um gênero morto, do qual zombará em busca de restabelecer seu sentido. Nele, por exemplo, tem um pequeno papel o ator Dennis Hopper, como o jovem e perdido bandido Moon, revivido na versão de 2010 por Domhnall Gleeson.

Pois naquele mesmo ano Hopper surgiria em Easy Rider para constatar que procurara pela América sem encontrá-la. Em 1969, Bravura Indômita tenta explicar o estranho povo americano ao próprio povo americano, que vive de se redescobrir e se reinventar. Como esperado, é também um filme de época empenhado em descrever a própria época. Enquanto a Guerra do Vietnã corria, o presidente Richard Nixon ligava para John Wayne e lhe agradecia por seu trabalho, com o qual se identificara.

Por que, então, insistiriam os irmãos Ethan e Joel Coen, peças resistentes do cinema contemporâneo de qualidade, em refazer uma obra que tanto dissera a seu tempo e, vingadora solitária, jamais precisaria retornar ao julgamento público? Esta pergunta lhes fez Jeff Bridges, ator-símbolo dos Coen, no momento em que foi apresentado ao projeto. E ele ouviu dos irmãos que fariam algo muito diferente do esperado. Eles não refilmariam a obra de Hathaway. Estariam atentos ao livro de Portis e se colariam em sua riqueza.

Bridges acreditou neles e topou participar. Mas o filme novo não se distanciou tanto assim daquele que era original, já bastante respeitoso (na medida em que a fidelidade cinematográfica é possível) ao livro. Os Coen também caminharam pela estranheza americana com muito humor, embora tenham sido um pouco mais grandiosos e até sentimentais do que Hathaway fora.

O western dos Coen não tem as mesmas belas paisagens, as mesmas cores em contraste, a mesma trilha sonora de Elmer Bernstein que a todo tempo se eleva, nem mesmo os modernos cortes dos figurinos de 1969, mas é igualmente um filme em que os matadores mais falam do que agem, mesmo que a língua lhes falte. É um filme no qual o caubói durão movimenta o corpo lenta e desajeitadamente em busca de atirar nas palavras, à moda do que faria um Groucho Marx.

O filme, candidato a dez Oscars neste ano, é, por seus méritos de ritmo e equilíbrio, um sucesso inesperado de bilheteria, com 150 milhões de dólares já arrecadados, à frente de blockbusters anunciados como A Rede Social, de David Fincher. Os caubóis antiéticos do Vale do Silício precisam comer feijão para rumar até Monumental Valley.

E Bridges encara o desafio com a tranquilidade de fazê-lo parecer simples. Ele é um excelente ator de -comédia. -Provam-no -tentativas anteriores de se equivaler a Groucho, como em Starman, de 1984, no qual interpreta um alien desajeitado em corpo humano, andando como quem se agacha. Bridges é um ator mais completo do que John Wayne foi, embora a invenção do tipo Cogburn tenha de ser creditada ao ator republicano e conservador.

E, então, as razões para que os Coen tenham se agarrado a este projeto começam a aparecer. Aquele filme foi espeta-cular em 1969 porque leu a América de seu tempo. Os Estados Unidos estavam metidos em uma guerra que já parecia perdida. A nação, até então reconhecidamente superior, fracassava ao ponto da vilania. Seu povo andava cabisbaixo de orgulho. E Rooster Cogburn estaria por ali para erguê-lo. Embriagado e temporariamente desorientado, o personagem seria, ainda assim, imbatível. Seus fins justificariam métodos antiéticos, a corrupção e a tortura. Ele cairia para logo levantar. Principalmente, seu olho esquerdo estaria definitivamente coberto como opção política.

Note que, nesta refilmagem dos Coen, é o olho direito de Cogburn que se fecha. Não se sabe ao certo por que os irmãos sacaram desse artifício, mas é curioso que assim tenham feito. Bridges fala a uma outra nação e a um outro presidente. Barack Obama é líder de outro pulso, ademais democrata, mas o país continua em guerra, também aparentemente perdida, contra o Afeganistão. Fechar o olho direito para que ele não se abra a grupos como o Tea Party difere do que acontecia nos anos 60, quando os conservadores aplaudiam a intromissão no Vietnã e o olho de Wayne se fechava ao apelo esquerdista.

Esta nova versão para o livro de Charles Portis, como muitos dos filmes americanos recentes, trabalha para animar os cidadãos cujo governo ainda permanece sob pesadas críticas. Durante os tempos recentes, o diretor Jason Reitman tem se especializado em declarar com sinceridade a ética de seu país, ou simplesmente a ausência dela, em filmes como Obrigado por Fumar e Juno, que, no entanto, alertam para a liberdade construída mesmo nessas bases. A versão dos Coen para Bravura Indômita busca demonstrar que, se falharam em defender a democracia em anos recentes, os americanos precisam agora ser reavaliados sob outros prismas. Eles podem ser redescobertos e reinventados.

Neste filme, há a insistência, que não havia na versão de Henry Hathaway, de preservar instituições como a Justiça (a Mattie vivida por Hailee Steinfeld ameaça o mundo inteiro com o cumprimento da lei, e convence). Mesmo a polícia dos Estados Unidos sai dessa digna, ora encarnada à moda antiga, por Rooster -Cogburn, ora pela nova ética texana do ranger La Boeuf, interpretado por Matt Damon com exemplar maturidade. “Acabo de chegar de Yell County”, ele diz a Mattie, surpreendida no próprio leito por sua presença.

Vindo da região natal da menina, onde a aguarda sua família, La Boeuf (na primeira versão, interpretado por Glen Campbell) também deseja pegar o assassino de seu pai, embora os métodos texanos, algo modernos, diferem daqueles de Cogburn, um homem do velho Arkansas. “Eu não sabia que havia palhaços de rodeio em Yell County”, Mattie lhe retruca, para que La Boeuf constate: “Frases atrevidas não vão lhe fazer ir longe comigo”.

Mas Mattie perde a disputa verbal quando, enraizada no papel de cidadã das leis, busca adoçar o bandido Lucky Ned Pepper (nesta versão interpretado por um cínico Barry Pepper, enquanto, na anterior, Robert Duvall lhe dava elegância). Ao fora da lei, ela faz uma insinuação ou um convite: “Você precisa de um bom advogado?” E Ned Pepper lhe responde: “Não, preciso de um bom juiz”.

A filha de Dick Cheney diz que o pai adorou este Bravura Indômita. O ex-vice-presidente começa a enfrentar o julgamento público após o que realizou durante a administração de George W. Bush. É demasiado esperar que um grande pequeno filme como este possa, em alguma medida, amenizar sua responsabilidade histórica. Mais do que de um bom advogado, Dick Cheney precisará é de um bom juiz.