Preto Zezé: Pelo fim da invisibilidade

Empossado nesta semana como o novo presidente da Central Única das Favelas (Cufa), Francisco José Pereira de Lima, o Preto Zezé, deu entrevista ao jornal O Povo. No material publicado nesta segunda-feira (21/02), o cearense fala sobre família, infância, hip hop e sua atuação na entidade. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Preto Zezé, cearense presidente da Cufa - O Povo

Homem de nome comum e comportamento singular. Nascido e criado na Comunidade das Quadras, quarteirão de casas populares margeado pela avenida Senador Virgílio Távora e pelas ruas Beni de Carvalho, Vicente Leite e General Tertuliano Potiguara, no Dionísio Torres, Francisco José Pereira de Lima, 34, teve uma trajetória surpreendente. Enquanto criança, precisou equilibrar o desenvolvimento na escola à proximidade com o crime e as drogas. Enquanto buscava afirmação entre os amigos, sonhava em ser surfista. Do mar, veio o palco.

Durante a adolescência, período que considera a primeira grande virada de sua vida, conheceu o movimento hip hop. Com o tempo, percebeu que o hip hop não era tudo e tornou-se um executivo social, como se define. Assim, em 2005, participa da implantação da Central Única das Favelas em Fortaleza. Passados seis anos, Zezé hoje não é mais uma voz local da instituição. Desde a última quarta-feira, 16, o Preto das Quadras de Fortaleza é presidente nacional da Cufa.

No Twitter, você se denomina: “Amante das coisas simples, otimista, pai do Malcom Jonas, rapper, escritor, documentarista, educador e coordenador da Cufa”. Como administra toda essa versatilidade?

Essa versatilidade dialoga uma coisa com a outra. Na medida em que eu faço uma música, eu quero ver um videoclipe, um documentário, escrever um livro sobre os bastidores dele, produzir um evento, cuidar do filho, viver com os amigos, viver as coisas mais simples do dia a dia. São os ingredientes de uma vida simples, porém não medíocre. Tem que ter metas, tem que ter vivência, tem que ter ideologia.

Como é o Preto Zezé pai?

Já fui melhor. O Malcom hoje tem 13 anos. Ele morou um tempo comigo, agora fica mais com a mãe. Ficamos distantes devido às viagens, mas estamos sempre nos conectando pelo Orkut. Quero passar a mensagem que ele não tem que ser um Zezézinho, ele tem que ser ele. Ainda bem que ele gosta de break e não de rap e hip hop como eu, já tem opinião própria, quer torcer time diferente, usar um brinco. Ele é a minha bússola do que está acontecendo hoje na periferia da Cidade, do que essa juventude está pensando.

Como foi a sua infância?

Somos quatro irmãos homens e uma irmã mulher. O povo costuma chamar lá nas Quadras de filho da dona Fátima e do seu Chico Macumbeiro. A vivência na periferia é muito injusta. Muitas vezes, você tem que escolher entre estudar e trabalhar. As notas que você tira não dão a mesma empolgação do que o dinheiro que leva para casa. E é uma cultura estranha essa de assumir responsabilidade de adulto quando adolescente. Combato muito isso com o meu filho. Porque na comunidade, quem não trabalha logo é vagabundo. Uma hora dessas, jovens de classe média estão no cinema, em casa na internet, no teatro, estão lendo, tendo acesso a outras culturas. E na periferia a gente é muito pressionado. Eu tive sorte porque, ao mesmo tempo em que fui obrigado a esse cotidiano, eu pude viver muita coisa: soltar raia, brincar de carimba, pescar peixe Beta, ir pro baile funk. Ainda tive muita vivência, e também muita sorte, porque da minha época, de mais ou menos uns 20, 30 adolescentes que nem eu, hoje sobram poucos adultos. E grande parte dos que sobreviveram estão presos, outra parte, infelizmente, não está mais com a gente. E olha que nem tinha tanta incidência de arma, de crack. Sou um sobrevivente.

Você costuma dizer que o rap lhe encontrou, que salvou a sua vida. Como isso aconteceu?

Minha vida tem vários momentos da virada. A primeira foi a virada da rua pro rap. Uma tarde de domingo, chegou uns malucos lá em casa, uns caras da antiga pichação, com uns discos. Nossa referência era muito o surf, as roupas Ciclone, Redley. Eles botaram um disco de rap que chamava Cultura de Rua, que depois virou o nome de uns dos movimentos que eu criei. E aquilo causou um choque, foi a virada. A música era sobre violência policial. Jamais passaria na minha cabeça, naquele contexto, que alguém pudesse fazer crítica à Polícia, gravar um disco e fazer música com aquilo. Foi muito doido porque toda a minha referência era gangue, armas, meninas, marcas. O rap me ajudou a fazer essa leitura do entendimento de identidade, do negro, como se processa o racismo no Brasil, a invisibilidade da juventude. Aí, montamos o movimento. O MH2O (Movimento Hip Hop Organizado do Brasil, fundado em 1989 em Fortaleza) foi o primeiro. Depois montei o Movimento Cultura de Rua (MCR). Começamos o programa na Rádio Universitária (Se Liga: o Som do Hip Hop), retomamos as atividades nos bairros. Depois começamos a ver que o hip hop não era bastante. Foi a época da criação da Cufa. A gente era sempre o público alvo, era parceiro, mas a nossa pauta nunca estava no centro. O perfil do Celso (Athayde), do Zezé e do (MV) Bill são muito parecidos. Jovens que eram invisíveis e que hoje tomaram a frente da Cufa.

Qual o papel da cultura hip hop em Fortaleza? Há poder de mudança?

Trabalho muito pelo tipo de hip hop que a Cufa faz, porque o entendemos como uma linguagem necessária para um setor da juventude. Por que o hip hop? Porque é o único que traz esse discurso do negro, a maioria dos movimentos culturais musicais abandonou isso. As bandas antigas, como a Reflexo, falavam da África, depois tiraram o conteúdo africano, depois o próprio negro e botaram o pessoal pra rebolar a bunda e beber cerveja. E o rap acabou sendo a única coisa que nos sobrou, que ainda conseguimos decidir, escrever e produzir a nossa leitura de mundo. Até costumo dizer que o rap é a maior produção intelectual literária das favelas. O hip hop pode ser uma janela. O cara vem pra cá porque gosta de rap e pode aprender o audiovisual, a construir um blog, ser produtor de um evento, participar de um projeto, mas nós não somos uma entidade hip hopista. Ele é a nossa origem, mas é necessário que se dialogue com outras questões, como a segurança pública, a saúde, as correntes culturais e musicais da comunidade como o funk, o samba, brega.

Que dificuldades você enfrentou na sua trajetória?

Uma coisa que é difícil é a invisibilidade. O que é um jovem invisível? É aquele que só a Polícia vê. E aí, quando é que o resto da sociedade vê esse jovem? Quando ele comete um ato de violência. E aí, a invisibilidade recai sobre esse jovem, individual e coletivamente, e recai sobre o seu território. A Comunidade das Quadras, durante muito tempo, viveu nas páginas policiais. Você ia procurar emprego e o cara perguntava: “Onde você mora?”. A gente até mentia. “Na comunidade do Santa Cecília”. “Ah, do Santa Cecília? Mas aonde é?”. “Ali, perto do Colégio Santa Cecília”. “É na Quadra né? Ah, então depois a gente te chama”. E nunca mais chamava. Cansei de chegar nos lugares e a pessoa dizer: “Não, nós estamos esperando o diretor da Cufa”. “Não, mas o diretor da Cufa é esse cara aí, o Preto Zezé”. Ou então você para numa blitz e o cara perguntar de quem é o carro. O carro nunca pode ser seu. É uma questão no Brasil que não avançou, de um lugar pré-estabelecido pra gente, mesmo que a gente tenha dinheiro. Mas as pessoas começaram a ver o Preto Zezé. Não é porque o cara é preto, negão, contra o branco. Daqui a pouco nem tem mais cor. Nossa lógica começa a transformar isso em carisma em vez de ficar só na denúncia, na crítica, naquela coisa rancorosa e começar a conquistar o espaço sem perder o nosso referencial.

De onde surgiu o apelido Preto Zezé?

Eu coloquei de propósito, pra constranger. 11 anos atrás, decidi que meu nome seria Preto Zezé. Às vezes, a galera ligava pra fazer entrevista e dizia “eu queria falar com o… como é o seu nome mesmo?”. “É Preto Zezé”. “Pedro?”. “Não, cara, Preto, preto da cor do gato preto”. E o cara, “não, não era isso que eu quis dizer”. No Brasil, é engraçado, diferente dos Estados Unidos, porque aqui se dá muito pela cor da pele. Se você olhar na história, as piadas brasileiras, tudo o que é negativo está relacionado às coisas negras. Essas construções parecem que não, pra quem não vive, mas pra nós é muito forte. Por isso que muitas pessoas dizem que racistas são os próprios pretos. Lógico que são. A nossa construção história não tem nada que nos faça ter orgulho disso.

É comum no teu discurso você dizer que não quer ser mais convidado para discutir a pobreza, mas a distribuição de renda.

Se você olhar no mapa da ONU, nós (Fortaleza) somos a quarta cidade mais desigual do planeta. Se é desigual, é porque há concentração de riqueza. Então, nós não somos tão pobres assim. Onde está essa concentração? Se você fizer uma pesquisa sobre desenvolvimento humano, infra-estrutura, qualidade de vida, com certeza a Beira Mar e o Meireles se igualariam a países da Europa. Aí, você desce mais algumas ruas e chega no Lagamar, no Tancredo Neves e vai ver indicadores de países da África. E as pessoas acham que esses dois universos vão viver sem ter conflito. É tão grave essa coisa, e aí a pobreza para se manter tem que estar mais visível em alguns territórios – que no Lagamar, por exemplo, de 2007 a 2009, morreram lá mais de 30 jovens e não foi notícia nenhuma. Quando o jovem do Lagamar mata um jovem da classe média, vira uma grande tragédia. Aqueles 30 e tantos jovens eram estatísticas, não eram vidas. Vida é vida independente da classe social que ela pertença. O negócio é o seguinte, setores ricos concentradores de Fortaleza: vocês vão ter que fazer um acordo pra dividir essas alegrias todas ou vão ter que conviver com a tragédia, porque nós estamos no mesmo planeta, na mesma cidade. E é isso que proponho. Não vou discutir pobreza porque senão vai terminar botando projetinho lá nas Quadras e isso não vai resolver. É necessário que a Cidade como um todo discuta a divisão das oportunidades.

As Quadras estão num bairro nobre da Cidade, circuncidada por uma escola particular, uma concessionária de carros e vários condomínios. Como funciona esta relação?

Quando decidi abrir a Cufa Fortaleza nas Quadras, foi pra dizer o seguinte: essa tese é correta? É. Você começa a fazer ações de visibilidade coletiva positiva, porque até então, as Quadras só eram lembradas como campo de bandido, de gangue. Então começamos esse processo de positividade da imagem da Cufa. Resultado: conseguimos tirar as Quadras das páginas policiais e colocar nos cadernos sociais, culturais, até de negócios. Nosso maior investimento é na emoção das pessoas. Então, a partir do momento que aquela comunidade se vê motivada, emocionada, valorizada, ela passa também a mudar o seu comportamento. A gente começou construindo essa ponte, porque o abismo também é no preconceito. Aí caiu o muro. E o legal é que caiu da quadra para o asfalto e do asfalto para com a quadra. Começou a vir todo mundo para os shows organizados nas Quadras.

Quem mora na Comunidade das Quadras parece não querer sair dali. As casas viram duplex, triplex e o quarteirão cresce verticalmente. Houve tentativa de tirar as casas dali?

Acho que a Quadra avançou no sentido de estabelecer o seu espaço dentro da Aldeota. E a economia acompanhou. É uma comunidade que lutou muito. Era um monte de barraco de madeira. Hoje, tem saneamento básico, luz, água. Se você vir nas Quadras hoje tem pouco carro velho. E muita gente evoluiu também. O Foca era um cara de gangue, hoje é corretor de seguros. Tem o James que era um cara que trabalhava com insufilme, hoje já tem a própria empresa e emprega gente da comunidade. Então, as relações do asfalto com a quadra vão além da contratação de mão de obra, da compra da droga ou da eleição. Passa a estabelecer um diálogo interessante de questões culturais, sociais, de debate sobre a cidade, da ampliação de inclusão.

Em quanto tempo você filmou o Selva de Pedra e como foi a experiência?

Primeiro, começamos a fazer o Falcão (Meninos do Tráfico, dirigido por MV Bill), com gravações aqui em Fortaleza. Depois percebemos o deslocamento de duas drogas do sul do País. Uma era a merla, que era muito forte em Brasília, que estava se deslocando pro Maranhão, e o crack, que era uma droga só de São Paulo. E fomos estudar esse processo. Só que eu não queria fazer como no Falcão, num lugar externo. Essa coisa vem de dentro da lata pra fora e partimos pra entrevistar os próprios usuários. Se tivesse outro nome o crack se chamaria segregação. Porque o cidadão segrega inclusive dele mesmo. Não come, não toma banho, não tem prazer. E você tem um grande problema, porque o cara bate na mulher, quer vender tudo dentro de casa, violenta os pequenos. Só que o problema, na verdade, está por trás do crack. Sexualidade mal resolvida, relações de família mal feitas, frustrações afetivas e profissionais. E o mais complicado é que a mesma droga que mata e escraviza essas famílias, também sustenta, coloca feijão e arroz na panela. Então começamos a ver uma forma de humanizar esse contato que todo mundo tem medo. Pra gente ouvir o noiado. Por isso se chama Selva de Pedra – A Fortaleza Noiada. Porque a noia é da Cidade como um todo.

Com toda a visibilidade conquistada, existem pretensões políticas de candidatura?

Minha, de nenhuma parte. Muita gente está comentando, eu até agradeço. Me lançaram até como o Obama de Fortaleza, mas eu agradeço a confiança e a credibilidade. Não é a minha. Não serei candidato a nada, não sou nem filiado a partido que é pra ninguém dizer que eu já estava me preparando pras eleições. Mas assim, estamos também cumprindo missões. Então se um dia a Cufa decidir deslocar os seus quadros ou criar um partido, que acho ser o mais próximo, isso acontecerá. Mas não está em pauta, não é a nossa discussão hoje, pelo menos pelos próximos cinco anos. Pode ficar sossegado o povo da política que não vamos ser candidatos a nada.

Fonte: O Povo