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Hyde: direito autoral cerca cada vez mais o que antes era comum

O ensaísta americano Lewis Hyde, pesquisador do Centro de Internet e Sociedade da Universidade de Harvard e professor de escrita do Kenyon College, está de olhos atentos ao Brasil, mais precisamente no nova fase do Ministério da Cultura. Tudo por causa de seu interesse nos dilemas da propriedade intelectual e na relação entre artista e mercado.

O assunto ganhou maior visibilidade no país desde a posse da ministra ministra Ana de Hollanda, que resolveu fazer da revisão do anteprojeto da nova Lei de Direito Autoral um dos temas principais do início de sua gestão. Com isso, Ana não apenas desagradou a setores que apoiavam a reforma debatida ao longo das gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC como também chamou atenção para a dificuldade existente, ainda hoje, para definir os limites e funções da propriedade intelectual.

Nesta semana, a ministra e compositora afirmou à revista CartaCapital que pensa o direito autoral como “uma questão trabalhista” (“Se o criador perder o direito a receber pelo seu trabalho, vai viver do quê?”, perguntou). Essa posição, defendida por parte da classe artística, provocou críticas dos defensores da flexibilização da atual legislação, entre os quais estão muitos artistas também.

Autor do recente Common as air (Comum como o Ar, inédito no Brasil), que discute a história da propriedade intelectual do século 18 até os tempos de Creative Commons, Hyde conversou por e-mail com o jornal O Globo sobre os impasses contemporâneos na legislação sobre propriedade intelectual. Ao analisar os debates sobre o tema no Brasil, o ensaísta criticou a postura de Ana de Hollanda na polêmica sobre direitos autorais.

O Globo: Em A Dádiva, você especula sobre relações entre propriedade intelectual e culturas baseadas na dádiva. Como a noção de “dádiva” pode ajudar a pensar a propriedade intelectual?
Lewis Hyde: Por trás de sua pergunta há outra: o que é “propriedade”? Em Comum como o Ar, respondo com uma antiga definição: “propriedade é um direito de ação”. Se sou o proprietário de uma casa, há muitas ações que posso tomar em relação a ela (pintá-la, vendê-la, emprestá-la a um amigo…) e também há ações que não posso tomar — como, por exemplo, usá-la para estocar armas nucleares.

Se tenho o direito de dar algo, então isso também é um tipo de propriedade, baseada na dádiva. Normalmente falamos de “propriedade intelectual” só em termos de um direito de excluir, mas poderíamos facilmente pensá-la em termos de um direito de doar. Muitos pesquisadores entendem que não há como ganhar muito dinheiro com suas ideias; eles preferem vê-las em circulação.

Artigos publicados em periódicos acadêmicos são, por isso, chamados de “contribuições”. São propriedades baseadas na dádiva. No livro, tento esclarecer até que ponto muito do que pensamos hoje como “propriedade intelectual” é também propriedade comum, baseada na dádiva.

O Globo: O livro trabalha com a noção de “bens culturais comuns” (cultural commons). Como você a define?
LH: Os bens culturais comuns são aquele grande estoque de arte e ideias que herdamos e que continuamos a criar. Os escritos de Shakespeare, Mark Twain, Tolstói, José de Alencar; o conhecimento sobre como fazer aspirinas e motores a vapor ou transístores; tudo isso e mais.

O Globo: Em Comum como o Ar, você defende a importância de conhecer o debate por trás da noção contemporânea de “propriedade intelectual”. O que é preciso saber sobre a história desse debate?
LH: Esse argumento é desenvolvido em mais de cem páginas — então é difícil dar uma resposta breve. Mas aqui vai um resumo. No século 18, se o Estado lhe dava direitos sobre uma obra, ele não estava reconhecendo um direito natural à propriedade, estava conferindo um monopólio. Você tinha o privilégio, por um tempo limitado, de controlar a expressão que havia criado.

O limite de tempo era importante porque, na experiência europeia, o controle perpétuo da expressão havia sido frequentemente uma ferramenta de despotismo. Postos em termos positivos, os limites ao monopólio ajudaram a criar uma esfera pública de debate aberto e deliberação, que, por sua vez, ajudou a criar nações autogovernantes.

O Globo: E como as leis atuais de direito autoral afetam a circulação daquelas obras e ideias que você considera bens culturais comuns?
LH: O direito autoral se expandiu imensamente desde sua invenção no século 18. Em sua origem, esse direito garantia até 28 anos de controle sobre cópias integrais de uma obra. Além do mais, para garantir esse controle o autor tinha que registrar a obra, pagar uma pequena taxa, e colocar uma notificação de direito autoral no livro impresso.

Tudo isso mudou. Na maioria dos países, a exigência de registro caiu e o termo de propriedade pode durar até um século. Nesse e em muitos outros sentidos, o direito autoral se expandiu incessantemente, e cada expansão significa um cerceamento do que antes era comum.

O Globo: Na sua opinião, o que organizações como o Creative Commons podem fazer para modernizar as leis atuais de propriedade intelectual?
LH: Muitos projetos procuram ampliar o conceito de bens culturais comuns trabalhando dentro da lei. O Creative Commons é o mais conhecido, oferecendo já há uma década um pacote de licenças que permitem que os proprietários publiquem suas criações sob termos mais liberais do que os oferecidos pela lei de direito autoral padrão.

Um compositor amador pode, por exemplo, lançar suas canções sob uma licença “Atribuição — Uso Não Comercial” que diz, essencialmente: “Qualquer um é livre para copiar essa música, remixá-la ou adaptá-la, desde que me cite como autor e não a use para fazer dinheiro”. Ou um poeta que se preocupa com a integridade de seus textos pode usar a licença “Atribuição — Uso Não Comercial — Não a Obras Derivadas”, que diz a mesma coisa, mas acrescenta que usuários “não podem alterar, transformar nem acrescentar nada à obra”.

As licenças Creative Commons permitem que milhões de obras circulem sem os problemas de permissão e taxas que automaticamente afetam todo material protegido por direitos autorais. Devo dizer que não entendo a ordem recente da nova ministra da Cultura brasileira, Ana de Hollanda, para a retirada da licença Creative Commons do site do ministério. Para dizer o mínimo, a mudança oferece a oportunidade de discutir os propósitos do direito autoral.

O Globo: Além do Creative Commons, que outras iniciativas você destacaria?
LH: Aplaudo o movimento pelo “Livre Acesso” (“Open Access”) encontrado hoje em muitas instituições de ensino superior. Nos Estados Unidos, muitas universidade, incluindo Harvard, pedem que os professores coloquem suas pesquisas na internet para download grátis. A adesão é voluntária, mas o Acesso Livre está se tornando um procedimento padrão nas publicações acadêmicas.

Outro movimento importante exige o “uso justo” (“fair use”) dos direitos. As leis americanas estipulam que “o uso justo de obras protegidas por direito autoral… para fins como crítica, comentário, jornalismo, ensino (incluindo múltiplas cópias para uso em sala de aula) e pesquisa não infringe o direito autoral”. Muitas comunidades criativas têm trabalhado nos últimos anos para esclarecer esses direitos.

Em alguns sentidos, o Brasil está à frente dos Estados Unidos nessa questão do “uso justo”. Nos Estados Unidos, é ilegal contornar as restrições de DRM (sigla para “Digital Rights Management”, ou “Gestão de direitos digitais”), mesmo que para uso considerado “justo” em circunstâncias normais. Até onde sei, no Brasil é possível quebrar o DRM sem quebrar a lei, desde que não se cometa violação de direito autoral. Além disso, um detentor de direitos que usa DRM que restringe ações permitidas pela lei brasileira está sujeito a multa.

O Globo: Em A Dádiva, você fala sobre a dificuldade de conciliar as esferas da prática artística e do mercado, mas diz que, ainda assim, é preciso buscar essa conciliação, sem prejudicar a porção de “dádiva” da arte. Que conciliação é possível?
LH: Há três ou quatro respostas possíveis. Assumindo que existe uma verdadeira incongruência entre ganhar a vida e fazer arte, muitos artistas escolhem uma vida de pobreza voluntária. Vivem com pouco e constroem sua obra.

Em segundo lugar, há sociedades que reconhecem esse problema e apoiam artistas de maneiras não-mercadológicas. O patronato era uma forma arcaica desse tipo de apoio, e hoje temos fundações privadas e bolsas públicas.

Em terceiro lugar, muitos artistas têm um segundo emprego, removendo da arte o fardo de ter que pagar suas contas. Até ensinar a própria arte é uma espécie de segundo emprego (eu mesmo ensino escrita, o que não é a mesma coisa que escrever). Por fim, existem aqueles poucos felizardos que vivem diretamente de seu trabalho, romancistas, pintores e dramaturgos de sucesso. Bravo para eles.