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Jaime Sautchuk: O Bisneto de Chopin

Eu ia subindo a rua Dr. Murici quando me deparei com um cartaz que anunciava a apresentação de um pianista num restaurante que ficava lá no alto da Av. Batel. Era um cartaz normal e só me chamou a atenção porque tinha escrito, em letras bem grandes, o nome de Chopin, um compositor que sempre despertou meu interesse. Fui ver de perto e fiquei estupefato: o pianista era André Dalinowsky.

Por Jaime Sautchuk*

Vou primeiro explicar o porquê do meu espanto. Meu nome de batismo é Ladislau Dalinowsky e o André, esse tal que ia interpretar Chopin no restaurante, não poderia ser outro senão o meu irmão André, de quem não se tinha notícias havia mais de vinte anos. Vocês sabem como é quando uma família estilhaça? Duvido que vocês não conheçam alguma família que virou mil pedacinhos, feito um copo de cristal que cai na pedra dura! Pois com a nossa, minha e de André, foi bem assim.

A família de meu pai tinha vindo da Polônia no último quartel do século 19 e se estabeleceu na Colônia Lamenha, nas cercanias de Curitiba. Meu avô morreu logo depois que meu pai tinha completado dez anos. Dizem que morreu de pneumonia, mas deve ter morrido de cirrose, pois, segundo nos contavam, bebia aguardente como se fosse água, o dia inteiro.

Minha avó morreu logo depois, provavelmente de desencanto com a vida. Da família de minha mãe, nada sabíamos, a não ser raras referências que ela fazia a seus pais, já então falecidos. Pelo que eu me lembro, eles moravam no município da Lapa.

Logo que meus pais se casaram, foram morar em União da Vitória, porque, segundo minha mãe, meu pai não sossegava em lugar nenhum. Mas lá até que os dois aquietaram e tiveram dez filhos de enfiada. Era um Deus-nos-acuda!

Às vezes meu pai sumia de casa, que ele vivia mesmo de biscates, e só reaparecia meses depois. Às vezes, quando ele voltava, a família já tinha aumentado. A gente vivia de trocados, de ajuda de famílias amigas e do salário que minha mãe tinha como cozinheira de um restaurante da cidade.

É de se imaginar o que era aquilo. Os mais velhos cuidavam dos mais novos e ajeitavam a casa. A comida era sopa de osso de vaca – e nas refeições era inevitável uma estrondosa briga pelo tutano – ou, então, sobras que vinham do restaurante. Restos que cansaram de nos dar muitas alegrias e de provocar muitas brigas. Lembro-me do peru de uma coxa só, em época de Natal…

Mas isso não vem ao caso. O fato é que um dia houve um entrevero muito maior que os de costume entre meu pai e minha mãe. Aliás, eu mesmo nunca entendi porque duas pessoas que se odiavam tanto conseguiram se casar e, de quebra, jogarem no mundo dez miseráveis. Mas, naquele dia ele tinha um revólver na mão e bradava por explicações. Era a respeito de um caso que ela teria com um sujeito que, pelo que da conversa se depreendia, mexia com contrabando. A zoeira foi grande demais.

A resposta de minha mãe foi de que ela tinha mesmo o tal caso e que ia embora com o sujeito. A essa altura, muitos vizinhos já tinham chegado, mas, mesmo assim, quase que meu pai a matava com os dois tiros que deu – me lembro até hoje que um deles fez um rombo no fogão de lenha.

Ela gritava que, se ele podia ter uma parceira em cada esquina, por que não seria esse um direito também dela? No meio da confusão, ela pegou algumas peças de roupa e saiu porta afora. Nunca mais apareceu, nem para pedir notícias.

Meu pai, com muita razão, esperou uns dois meses e se deu conta de que não tinha a menor possibilidade de criar aquele bando de filhos. E assim sucedeu que nós fomos jogados no mundo feito quirera em terreiro de pintos. Um foi pro seminário, pois o vigário local interveio, e os demais mandados para casas de amigos ou conhecidos – ou até mesmo de desconhecidos que, por complacência de alguém, se dispunham a fazer uma caridade.

Meu pai, eu soube, morreu tempos depois de nos largar. Desde cedo, eu havia decidido não fazer esforço para reencontrar meus irmãos – o acaso é que deveria se encarregar disso. Portanto, não sabia da sorte deles. Mas eu passei maus pedaços nessa vida.

Para começar, a família que me alojou era muito pobre e só o fez para atender a pedido de um irmão do dono da casa, que era amigo de meu pai em União da Vitória. Meus hospedeiros moravam no Boqueirão, num barraco até ajeitado, mas de poucos recursos.

Eu vim para Curitiba por bondade de um motorista de caminhão, também amigo de meu pai, que me deixou na casa em que eu ia ficar. Era domingo de tarde. Valenciano e Dona Maria da Paz, meus hospedeiros, me passaram, logo na chegada, as regras do jogo. Eu teria ali um teto para dormir e uma vaga na escola pública mais próxima – o resto seria por minha conta. Eu mal havia completado dez anos!

Eles não tinham culpa. Os filhos, já crescidos, tinham caído no mundo, e os dois saíam cedo para o trabalho, só voltando tarde da noite. Não havia mesmo como cuidar de um estranho em tais condições. No mesmo dia em que cheguei, descobri uma saída para aquela situação e, com a ajuda de seu Valenciano, fiz uma caixa de engraxar sapatos. Ele me forneceu três latas de graxa (preta, marrom e incolor), uma escova e uma flanela. No dia seguinte, pela manhã, eu já estava no centro da cidade, todo desajeitado, tentando ganhar a vida.

Em pouco tempo, aprendi todas as manhas da profissão de engraxate e do ofício de pivete. Não foram poucos os dias em que, por falta de dinheiro para voltar para casa, dormi, envolto em jornais, no Passeio Público ou sob algum banco de praça. Desde os primeiros tempos, as professoras da escola do Boqueirão não me viram por aqueles lados.

Os ganhos de um engraxate, se vocês não sabem, são muito instáveis. Um dia chove e ninguém engraxa, outro dia a sorte abandona, e assim vai. Há, também, os pivetes maiores, que não raro limpam os menores no final do dia – e babau dinheiro.

Assim, muitas vezes, para comer era preciso roubar. Supermercados e mercearias eram os principais alvos. Chocolates, biscoitos e produtos enlatados eram os preferidos. Bom mesmo eram os cigarros, que dava pra vender. Mas tinha dias em que a sorte não ajudava.

Cansei de sentar defronte daquela pastelaria ali da Praça Generoso Marques e chorar o choro desesperado de um pequeno vivente. Nunca tive certeza se chorava pela vontade de comer um pastel ou pela angústia que enchia aquele coração abandonado.

Cada vez tornaram-se mais raras minhas idas ao Boqueirão para dormir e não foram gastos dois anos para que meus hospedeiros fossem abandonados de vez – do jeitinho que eu aprendi: sem dar a menor satisfação.

Tinha tudo para estar hoje mofando num presídio qualquer ou descansando em algum cemitério, depois de varado a balas pela polícia. Mas dei sorte. Numa manhã de domingo, a banda do Corpo de Bombeiros estava tocando no coreto do Passeio Público e eu cheguei perto para ver.

Usei minha caixa de engraxar como banqueta e fiquei sentado em frente à banda, admirado. Passei duas horas de olhos pregados no saxofonista. Aquele instrumento – o saxofone – me encantou profundamente.

Não saberia descrever com exatidão o sentimento que me tomou. O fato é que o som rouco, ágil, deslizante do saxofone, coisa que eu nunca tinha visto na vida, tomou conta de mim, enchendo aquela pobre alma de alegria. Na doce ilusão infantil, meti na cabeça que aquele instrumento, uma vez em minhas mãos, faria o mesmo som que dele tirava o bombeiro da banda. Dono de certas habilidades no ramo, planejei roubá-lo.

Os bombeiros terminaram a apresentação e seguiram desordenadamente em direção ao ônibus que os aguardava. Ficaram do lado de fora, conversando e ajeitando a roupa. Entre eles estava o saxofonista, que, como os demais, descansou o instrumento no chão.

Eu senti, ali, a chance. Fui quieto por detrás do ônibus. Quando já estava perto do homem, desatei uma carreira e, na passagem, peguei o estojo que guardava o saxofone e continuei na corrida. Ainda não tinha percorrido cinqüenta metros quando senti uma pesada mão me segurar pelo colarinho.

Logo, formou-se uma roda de bombeiros em volta de mim – e eu desesperado, porque sempre me disseram que bombeiro era primo de policial. Sentado no chão, pelo forte impacto que sofrera, eu imaginava que dias amargos passaria, apanhando feito um condenado. O bombeiro dono do sax e da mão que me havia apanhado gritou com voz nervosa, braço levantado contra mim:

— O que você ia fazer com isso, seu bostinha?

Eu olhei para cima, com os olhinhos cheios de lágrima e disse, com toda aquela sinceridade que só uma criança, por mais largada que seja, pode transmitir:

— Eu queria tocar!

A resposta foi num tom tão direto, forte, embora acompanhada de incontrolável pranto, que causou um profundo silêncio naquela pequena multidão que estava ao meu derredor. De modo que o bombeiro dono do instrumento não teve coragem de consumar seu ato e baixou o braço lentamente. O maestro da banda aproximou-se de mim, acocorou-se ao meu lado e perguntou:

— Onde é que tu mora?

— Em lugar nenhum – respondi.

— Quem é teu pai?

O nome dele é Pedro. Pedro Dalinowsky, mas eu não sei onde ele se meteu.

— Tu vive sozinho? – insistiu o maestro.

— Sim.

— Estuda?

— Desde que saí de União da Vitória não estudo mais, não senhor.

— Tem quantos anos?

— Não sei direito, mas acho que é doze… ou treze… tá no papel…

— Então venha comigo. – ordenou ele.

Eu, obviamente, imaginei que estava sendo levado para o Juizado de Menores. Mas, por falta de alternativa melhor, deixei que ele me puxasse pelo braço em direção ao ônibus. Na outra mão, ele levava minha caixa de engraxar, que alguém havia lembrado de entregar quando me conduziam. Parece mentira, mas a partir dali minha vida mudou completamente.

Quando eu entrei no ônibus, meu semblante deveria ser o mesmo de um boi a caminho do abatedouro. Um sentimento muito mais triste no rosto de uma criança. É certo que as preocupações daquela pobre alma, até então, não eram muitas. Era ter um lugarzinho para se acomodar à noite, a refeição do dia seguinte, esconder o dinheirinho arrecadado e fugir da polícia na hora certa. Uma vida banal, portanto. Mesmo assim, eu sentia uma tristeza medonha por vê-la jogada num reformatório de delinquentes, numa daquelas prisões sobre as quais ouvia falar horrores.

Foi por isso que eu senti como se tivesse nascido de novo quando o maestro, depois de uns quinze minutos que o ônibus andava pela cidade, rompeu o silêncio. Me abraçou pelos ombros e perguntou ao meu ouvido:

— Tu quer uma casa pra morar como se fosse gente?

Eu não sabia o que responder, até porque meu hábito era desconfiar das pessoas, e só interrompi meus soluços para dizer um “sim” meio sem graça. Não tardou muito para que chegássemos à casa do maestro Antônio Lempki. Ele contou o caso à sua mulher e aos dois filhos já adultos. Disse que eu, se me comportasse, ficaria morando com eles. Logo, fui adotado formalmente, passando a usar o sobrenome deles.

Foi desta forma que fui para a escola, para continuar os estudos regulares e para aprender música. Fui, sem falsa modéstia, um dos mais destacados alunos do conservatório de música. Depois, toquei por vários anos na Orquestra Sinfônica e, hoje, meu saxofone é esse que vocês conhecem no Brasil inteiro, através dos discos gravados e das apresentações que faço por aí afora. Da casa do maestro, saí quando completei 18 anos e senti que, sozinho, daria conta de enfrentar a vida de novo. Mas mantivemos os laços que havíamos criado.

Eu peço desculpas por tomar esse tempo de vocês com detalhes da minha vida, mas é importante. É importante porque, quando vi aquele cartaz e li nele o nome de André Dalinowsky, quase não acreditei. Essa história voltou todinha à minha cabeça naquele momento.

Deduzi de pronto que o André, justamente o irmão ao qual eu era mais ligado, tinha seguido a mesma trilha que eu e se tornado um amante da música. Uma baita coincidência, sem dúvida alguma. E das mais agradáveis.

Uma coisa apenas me intrigava naquele cartaz: ao lado do nome de André, entre parênteses, estava escrito: “bisneto de Chopin”. Se aquele era mesmo o meu irmão, e se Chopin era mesmo seu bisavô, também eu seria bisneto do compositor polonês. Saí caminhando lentamente, remoendo aquilo.

Pelo que eu sabia, Frédéric Chopin, nos 39 anos que viveu, só tinha mantido relações amorosas com a escritora George Sand. E isso já foi quando ele morava em Paris, sem falar que não há registro de algum filho ou filha nascida dessa relação.

Nada me autorizava, porém, a não acreditar no que estava escrito no cartaz. Chopin poderia muito bem ter tido relação com alguma ancestral nossa, e com ela ter tido algum descendente que veio a ser nosso bisavô ou bisavó, sei lá!

O fato é que este detalhe pouco me preocupava. O que mais me interessava era, depois de tantos anos, ter de volta alguém da minha família, alguém com quem eu passei aqueles que, bem ou mal, foram os melhores anos da minha infância. Uma angústia tal cresceu em meu peito que eu tive que ancorar num daqueles bares da Praça Tiradentes para tomar um conhaque e raciocinar com calma.

Que alegria!

Passei um dia imprestável. Fui para casa na hora do almoço e contei o sucedido para Diva, minha mulher. Acertamos um esquema para que a empregada ficasse com as crianças à noite. Tínhamos que ir ao tal restaurante no alto da Avenida Batel. No almoço, pouco comi e passei a tarde toda bebendo para controlar os nervos. Nem os exercícios no sax eu consegui fazer.

O concerto estava marcado para nove da noite, mas às oito eu e Diva já estávamos no restaurante, tomando vodcas e beliscando alguma comida polonesa. Eu apenas me certifiquei da presença de André Dalinowsky, mas não quis tomar nenhuma outra atitude, pois quem é do ramo sabe muito bem o quanto uma conversa desse tipo pode atrapalhar uma apresentação.

O restaurante era muito apresentável, com as mesas bem dispostas num salão grande. Ao fundo, um pequeno tablado dava abrigo a um piano de cauda. Era preto, brilhante. Fiquei alegre ao ver todas as mesas ocupadas, e deduzi ser esta a razão de o som que viria do piano não ser apenas acústico, já que havia dois microfones junto ao instrumento e caixas-de-som espalhadas pelo restaurante.

Muitas palmas brotaram e meu coração quase explodiu quando um locutor meio improvisado anunciou “mais uma grande performance de André Dalinowsky, o bisneto do próprio Chopin”. As luzes foram apagadas. Ficaram acesas apenas as luminárias que imitavam velas em cada mesa.

Um holofote acompanhou a entrada em cena de um senhor bastante calvo, mas de longos cabelos grisalhos caídos sobre os ombros, roupas e sapatos pretos – apenas a gravata era branca. Apesar de estar muito mais envelhecido do que eu imaginava, e embora ele tivesse seis anos a mais do que eu, não havia dúvidas: era o André!

Eu fiquei mudo, fortemente emocionado, quando ele ajeitou a banqueta e sentou-se ao piano. Talvez pelo tamanho do palco, o instrumento ficava meio de viés. Isto, por um lado, era ruim, porque é sabido que, em concertos de piano, para o público, é importante ver o teclado. Por outro, era bom, porque André ficava quase de frente para a platéia, com um holofote em seu rosto, de modo que eu o podia admirar.

André puxou um dos microfones para junto de si, acotovelou-se sobre o piano e começou a falar:

— Gente, é com muito orgulho que eu, um descendente de Frédéric Chopin, venho aqui interpretar algumas composições daquele que foi um dos maiores compositores que o mundo já viu. Chopin, como vocês devem saber, nasceu em uma pequena cidade da Polônia, chamada Zelazowa-Wola, em 1810, e ali viveu até completar vinte anos de idade. Já aos sete anos, ele compôs sua primeira música…

Assim, ele discorreu alguns minutos sobre a vida do compositor polonês. De início, parecia aquelas coisas decoradas, ao estilo dos guias infantis que eu havia visto em Olinda, no Pernambuco. Mas essa impressão desabou quando alguém da platéia interveio.
André falava sobre as polonaises, e um rapaz de bigode denso, sentado à uma mesa próxima ao palco, pediu se poderia fazer uma pergunta. Diante da resposta afirmativa, ele perguntou:

— Professor André, por que, se as polonaises são aquelas músicas que Chopin compôs na Polônia, e ele saiu da Polônia em 1830, há registros de polonaises compostas por ele depois desse ano?

André sorriu (aquele sorriso que eu admirava!), acendeu um cigarro e respondeu, com firmeza:

— Meu caro, esse é um engano que eu já vi muitas pessoas cometerem. O termo polonaise não classifica uma parte da obra de Chopin. É um estilo musical. Muitos compositores, antes e depois de Chopin, e dentro e fora da Polônia, foram autores de polonaises. É um estilo de música que se chama assim porque carrega nele toda alma da Polônia. São músicas baseadas nos cantos, nos ritmos, nas danças da nossa terra querida… – Fez, então, um breve silêncio, deu uma tragada no cigarro e arrematou:

— Viva a Polônia!

A resposta da platéia foi um “viva!” generalizado e um estrondoso aplauso. André apenas sorriu e voltou a se acomodar na banqueta. Em tom mais brando, esfregando as mãos, murmurou:

— Como falávamos há pouco da infância de Chopin, vou tocar em primeiro lugar a Polonaise nº 11, que foi sua primeira composição, aos sete anos de idade.

A música fluiu de modo magistral. Mas eu confesso que não estava nem um pouco interessado em ouvir Chopin naquela noite. Completamente embriagado pelo conhaque, pela vodca e pela alegria, eu queria era ver André. Eu o via apenas dos ombros para cima, onde a luz batia. Ele mantinha os olhos fechados, o corpo agitado e os cabelos esvoaçando com os movimentos bruscos da cabeça. Gestos e trejeitos típicos dos grandes intérpretes.

Ao fim da primeira música, foram calorosos aplausos – muita gente se levantou para aplaudir. Quando ele ainda agradecia as palmas, um dos garçons chegou junto dele e lhe falou qualquer coisa ao ouvido. Ele puxou o microfone, e disse:

— Com licença, é um minutinho só – levantou-se e saiu rapidamente pelo fundo do palco, por onde havia entrado.

Passaram-se uns cinco minutos, as luzes foram ascendidas e a voz do locutor quebrou a expectativa:

— Caros amigos, um minutinho de atenção. O nosso grande André Dalinowsky está com um problema pessoal e não poderá prosseguir sua apresentação desta noite. Ele pede desculpas a todos, e quer a companhia de vocês nas próximas apresentações.

Houve um certo rumor, mas quase todos os presentes se levantaram e aplaudiram , num gesto de compreensão. Eu me levantei e corri para fora do restaurante, no afã de ainda encontrar meu irmão, mas o que consegui foi apenas vê-lo partir num táxi.

Fui ao dono do restaurante, mas ele pouco podia ajudar. Disse-me que André havia recebido um telefonema urgente e que teve que sair após a conversa, sem explicações. Diante da minha insistência, ele alegou que André não deixava seu endereço. Seus contatos eram via telefone, cujo número eu anotei.

Diva e eu pagamos nossa conta e fomos embora, em completa desolação. Ainda naquela noite, liguei incontáveis vezes para o tal número, mas ninguém atendeu. No dia seguinte, voltei a insistir, mas nada. Restava o consolo de que, na semana seguinte, André voltaria a se apresentar no restaurante. Cabia somente o recurso da espera.

Naqueles dias, viajei para Porto Alegre, para algumas apresentações. Mas voltei para Curitiba na quinta-feira seguinte, véspera do novo concerto de André. Procurei localizá-lo por telefone, mas era um esforço em vão.

Na manhã da sexta-feira, uma boa coincidência. Um amigo meu, o pianista Arthur Limeira, chegaria ao Paraná e ficaria hospedado em minha casa. Era um compromisso marcado meses antes. Eu ia recebê-lo no aeroporto e auxiliá-lo nos afazeres que tivesse. Nos conhecemos nas andanças Brasil afora e forjamos uma amizade muito forte. Sua chegada quebrava a angústia que me tomava.

Arthur estava na cidade para gravar um programa de televisão. Tivemos, pois, muito com que nos entreter durante toda a manhã e um pedaço da tarde. Depois, fomos para casa, onde almoçamos, bebemos e conversamos longamente. Expliquei a ele que tínhamos um programa para aquela noite, sem muitos detalhes, e acertamos de irmos ao restaurante do Batel. Ele concordou.

À noite, eu e Diva repetimos o que fizéramos na semana anterior, agora com a companhia de Arthur. Chegamos ao restaurante às oito, escolhemos uma boa mesa, pedimos bebidas e comidas para beliscar. Eu importunei os garçons o quanto pude para saber se a apresentação de André Dalinowsky estava confirmada. Todos eles sublimavam minha angústia dizendo que sim.

De fato, às nove em ponto as luzes se apagaram e André entrou no palco sob o feixe de luz do holofote. Quando a apresentação começou, com a mesma preleção sobre a vida de Chopin, seguida da Polonaise nº 11, Arthur havia ido ao banheiro e, desta forma, perdeu o primeiro número. Ele havia se acomodando à mesa quando André anunciou o segundo número. Seria, conforme disse, a Polonaise nº 5, em fá sustenido menor, composta por Chopin em 1840.

Nos primeiros momentos da interpretação, Arthur nos distraiu com algumas informações a respeito daquela peça que estava sendo tocada. Explicou que, nela, Chopin misturou duas formas de música popular polonesa. Súbito, porém, ele silenciou e ficou prestando atenção no som do piano. Em instantes, chegou ao meu ouvido e sussurrou:

— Lau, ouve bem. Aí sou eu que estou tocando!

Eu, que tinha minha atenção inteiramente voltada para o André, e não para a música, fiquei intrigado e apenas retruquei:

— Que é isso Arthur? Você deve ter bebido demais. O cara está ali, na sua frente, tocando.

Ele silenciou por mais alguns segundos e se levantou, abruptamente, derrubando a cadeira para trás e gritando:

— Esse sujeito é um louco, é um impostor! Essa interpretação é minha, está gravada em disco. Isso é um absurdo!

Em meio a gritos de “fica quieto”, “xô-xô, maluco”, pratos e pedaços de comida que voavam sobre ele, Arthur resolveu recuar, mas não se deu por vencido. Bateu no meu ombro, no estilo “volto já”, e saiu pela porta da frente do restaurante. E eu, atordoado. Não sabia se ia atrás do amigo ou se ficava vendo o irmão. A música já era, para mim, apenas um zumbido.

Terminado aquele número, André anunciou e começou a tocar a Polonaise nº 7, mas já visivelmente nervoso com o entrevero criado. E criado justamente por mim!

Em alguns minutos, Arthur voltou e sentou-se ao meu lado, sob o olhar intenso dos circundantes. Disse que tinha ido atrás de alguém que explicasse aquilo, mas que não tinha obtido sucesso. Àquela altura, eu já havia caído na real e via meu irmão tocar e ouvia a interpretação magnífica do amigo que estava ao meu lado. Era uma situação confusa demais. Quando Arthur se levantou novamente, chegou um grupo de policiais, chamados pelo dono do restaurante.

Em meio ao burburinho, eu percebi que André havia se levantado e saído correndo pela porta dos fundos, embora a música continuasse a ecoar nas caixas-de-som. Eu pedi à Diva que segurasse Arthur e que me aguardasse ali. Saí correndo pela porta da frente, abri meu carro, que era o primeiro da fila, e gritei:

— André, entra aqui!

Ele vinha em desabalada carreira pelo estacionamento e, até por falta de alternativa, no desespero, entrou no meu carro. Eu dei a partida e perguntei:

— Pra onde você vai?

— Pra qualquer lugar. – disse ele, olhando para trás para ver se alguém nos seguia. Eu prossegui:

— Então, posso te levar pra minha casa?

Ele ficou uns instantes em silêncio, depois perguntou se poderia confiar em mim. Eu disse que sim e fomos em frente. Rodamos um bocado em silêncio até que eu tomei a iniciativa da conversa:

— Que encrenca você arrumou aí, hein, rapaz?!

— Pois é, a gente tem que se virar, né? — retrucou ele. E prosseguiu:

— Você conhece a história de que, quando chegou a Paris, Chopin fez um concerto usando o nome de Franz Liszt? Pois é. Liszt, que era húngaro, já morava na França e era muito conhecido em toda a Europa. Contam que ele, para ajudar Chopin, concordou em fazer um concerto numa sala escura. As pessoas foram para ver Liszt, mas, quando as luzes foram acesas, quem estava tocando era Chopin, que, assim, teve acesso à panelinha de Paris.

Eu tentei ser compreensivo, mas perguntei:

— Sim, mas o que tem isso a ver com essa apresentação, com esse negócio de dizer que é bisneto de Chopin?

— Nada – respondeu ele. Só que eu usei esse caso, adaptei à minha situação e resolvi ganhar uns trocados com isso…

No caminho de casa, respondendo a perguntas que eu ia fazendo, ele me contou parte da sua vida. Tinha caído no mundo, feito eu, e foi de tudo um pouco: motorista de caminhão, passador de maconha, camelô em São Paulo e, por fim, entrara para um circo, onde aprendeu pantomima. Saiu do circo para viver com uma psicóloga, durante alguns anos, e com ela aprendeu a gostar de música. Nunca tocou instrumento algum, mas conhecia a obra e a vida de compositores famosos. E arrematou:

— Ajuntei toda essa experiência e resolvi vir para Curitiba, pra ganhar uns trocados com a polacada daqui.

E assim chegamos em casa. Coloquei a chave para abrir a porta, mas estanquei. Olhei firme nos olhos de André e perguntei:

— Você está me reconhecendo?

E devolveu um olhar meio indefinido e disse:

— Sinceramente, não.

Eu peguei no braço dele e insisti:

— Você é filho do Pedro Dalinowsky, lá de União da Vitória?

— Sou. Como é que você sabe? – ele retrucou.

Eu apertei o seu braço mais firmemente e disse:

— Pois eu sou Ladislau, seu irmão!

Ele colocou as duas mãos espalmadas suavemente sobre o meu rosto, deslizando-as lentamente pescoço abaixo para me abraçar, e desatou a chorar. Ficamos a eternidade de alguns minutos abraçados, até que eu abri a porta e entramos. Eu o levei até o estúdio onde ele dormiria. Ajeitei o banheiro e lhe dei uma toalha, para que tomasse banho, enquanto, expliquei, eu voltaria ao restaurante para apanhar minha mulher e um amigo, que lá haviam ficado. Ele que ficasse tranqüilo!

Quando cheguei ao restaurante, Arthur estava ao piano, tocando, a melhor maneira de afirmar que estava falando a verdade e, não, querendo armar confusão. A polícia já havia descoberto o sistema de toca-fitas utilizado por André e os presentes, agora, aplaudiam um pianista de verdade. Aliás, o melhor intérprete de Chopin que se conhece.

Eu disse ao dono do restaurante que, de nossa parte, deixaríamos o caso por aquilo mesmo, e fomos embora. Diva seguiu calada, com um olhar ao mesmo tempo curioso e compadecido. Fiz comentários sobre o ocorrido, dei explicações, mas nada falei sobre o paradeiro de meu irmão. No fundo, eu estava radiante por resgatar um pouquinho, migalhas que fossem, do meu passado.

Ao chegarmos em casa, eu abri a porta e André estava no mesmo lugar onde eu o havia deixado, sentado num sofá, com a toalha sobre os ombros. Arthur sorriu e o cumprimentou de modo singelo, elegante. Diva o abraçou e beijou seu rosto. Fomos para a mesa da cozinha e engatamos uma alegre conversa que foi até o dia seguinte. Conversamos sobre tudo, menos sobre nossa família, assunto que, desde logo, senti que André evitava. E fomos dormir, dia já alto.

Quando acordei, encontrei o paletó e a gravata de André sobre a mesa da sala. Junto, um bilhete com os dizeres:

“Desculpem o fiasco. Um abraço bem forte, do André”.

* Jaime Sautchuk trabalhou nos principais órgãos da imprensa, Estado de S. Paulo, Globo, Folha de S. Paulo e Veja. E na imprensa de resistência, Opinião e Movimento. Atuou na BBC de Londres, dirigiu duas emissoras da RBS