Sem categoria

O compromisso literário e político de Victor Hugo

Victor Hugo foi autor de um conjunto de obras em que se destacam dois romances que permanecem muito populares, O Corcunda de Notre Dame e Os miseráveis. Porta-voz do romantismo, colocou sua obra a serviço da causa republicana e democrática.

Por José Carlos Ruy

Em 1831 – há 180 anos portanto – foi publicado na França um dos romances mais populares que se conhece, O Corcunda de Notre Dame, que se tornou muito popular desde seu aparecimento mas que ganhou as massas, principalmente as crianças depois que foi transformado em um desenho animado pelos Estúdios Disney em 1996.

Leia também:

Foi o primeiro grande romance histórico escrito pelo escritor Victor Hugo (1802-1885) e já traz, em sua trama, a crítica social e política que amadureceria trinta anos depois na obra prima daquele autor, o romance Os miseráveis (1862).

Victor Hugo é considerado por muitos como o principal escritor francês. Publicou, entre romances, livros contos e poesia, 53 títulos, sem contar as obras póstumas. Ele foi um autor pioneiro ao aliar, em suja obra, o rigor artístico e literário com a militância libertária e republicana.

Suas origens familiares o ligaram à corte francesa do período da Restauração (1815-1830), mas já em 1827 ele incomodava a direita ao proclamar, no prefácio a um de seus romances (Cromwell) a necessidade de rompimento formal com o classicismo em busca de uma expressão mais completa das contradições da vida.

Aquele texto foi encarado como uma espécie de manifesto do romantismo e Victor Hugo como o principal porta-voz desse movimento literário. Esta foi também uma época de mudança política para Victor Hugo, que supera o conservadorismo em que foi educado, transformando-se num democrata e republicano.
 
E suas obras passam a refletir desde então o novo ideário, que culmina no romance notável e ainda hoje extremamente popular, Os miseráveis, que descreve os pobres de Paris a partir de um ponto de vista que se pode considerar utópico: é pela colaboração e não pela luta que podem superar sua imensa miséria. Mesmo assim, este ponto de vista não é obstáculo para a crua e realista descrição da situação em que viviam os trabalhadores de Paris às vésperas da Comuna de Paris, de 1871.

Politicamente, Hugo foi deputado representando os republicanos de Paris e, depois, senador. Apoiou a revolução de 1848 e, mais tarde, foi um decidido oponente do golpe de Estado de Luiz Napoleão, em 2 de dezembro de 1851, descrito por Marx em 18 Brumário de Luiz Bonaparte: chegou a lutar nas barricadas em Paris e, quando Luiz Napoleão proclamou-se imperador, foi para o exílio; em 1852 escreveu uma obra que daria origem a um apelido depreciativo daquele dirigente francês: Napoléon le Petit (Napoleão o pequeno).

Seu radicalismo não o tornou um socialista mas, mesmo assim, apoiou a Comuna de Paris em 1871, embora criticamente. Seu significado, escreveu, " é imenso, ela poderia fazer grandes coisas, mas na verdade faz somente pequenas coisas”. Dizendo-se “um homem de revolução”, condenou a repressão sangrenta contra os communards: "Alguns bandidos mataram 64 reféns. Replica-se matando 6000 prisioneiros!".
 
E, quando a Comuna foi derrotada, registrou seu significado dizendo: “O cadáver está na terra, mas a ideia está de pé”. Era senador em 1876 quando fez uma intensa defesa da anistia aos communards. Continuou apoiando os trabalhadores franceses e a última reunião pública que dirigiu teve o objetivo de recolher recursos para que 126 delegados operários pudessem comparecer ao primeiro congresso socialista na França, realizado em Marselha.

Era um escritor e um político célebre. Quando completou 79 anos de idade, mais de 700 mil pessoas marcharam diante de sua residência comemorando a data. E, quando deixou de viver, mais de um milhão de pessoas compareceram a seu funeral.

Veja abaixo um trecho da famosa obra de Victor Hugo:

O Corcunda de Notre-Dame
Victor Hugo
Capítulo 1

A grande sala

No dia 6 de janeiro de 1482, os parisienses acordaram ao som de todos os sinos soando com força na cidade. O que emocionava o povo era a celebração do Dia de Reis e da Festa dos Loucos. Haveria fogueiras na Praça da Greve, a plantação de uma árvore na Capela de Braque e a representação de um mistério – a forma teatral mais popular da época – no Palácio da Justiça.

A multidão de burgueses movimentava-se por todas as direções desde a manhã e as casas e as lojas estavam fechadas nas proximidades de cada um dos locais dos festejos. Deve-se dizer que a maior parte das pessoas dirigia-se ou para as fogueiras, muito comuns naquela época, ou à representação teatral.

A peça começaria apenas ao soar a décima segunda badalada do meio-dia no relógio do Palácio e seria representada sobre uma plataforma com muitos ornamentos dourados. Já era tarde para um espetáculo teatral, no entanto, a platéia o aguardava desde a manhã, aumentando sem cessar. O desconforto, a impaciência, as brigas que ocorriam constantemente e a fadiga de uma longa espera davam um clima ácido e amargo ao murmúrio da multidão encurralada, irritada e sufocada.

Ouviam-se apenas reclamações e maldições contra os embaixadores flamengos que haviam chegado há dois dias para preparar o casamento do delfim (como eram chamados os príncipes herdeiros) com a princesa Margarida de Flandres. Falava-se mal também do chefe dos comerciantes, do cardeal de Bourbon, do meirinho do Palácio, dos sargentos, do frio, do calor, do mau tempo, do Papa dos Loucos, do bispo de Paris, dos pilares, das estátuas, desta porta fechada, daquela janela aberta, de tudo, enfim.

Bandos de estudantes espalhados pela multidão misturavam ao descontentamento geral suas caçoadas e malícias, espetando, por assim dizer, com golpes de alfinete o mau humor geral. Houve um grupo mais exaltado que, após quebrar os vidros de uma janela, sentou-se audaciosamente sobre o parapeito e dali lançava, alternadamente, olhares e gozações para a multidão do salão e da praça.

Por suas paródias e risos ruidosos e pelos nomes zombeteiros com os quais eles se chamavam, era fácil constatar que esses estudantes não partilhavam o cansaço do restante do público. Eles sabiam muito bem transformar o que tinham diante dos olhos em um espetáculo tão prazeroso quanto aquele pelo qual aguardavam.

Todos gritavam e se cumprimentavam e assim que o irmão do magistrado do Palácio, Gilles Lecornu, apareceu, explodiram gracejos contra ele, que, suando e bufando, perdeu a calma:

– Que horror estudantes dizerem tais coisas a um burguês! No meu tempo, eles teriam sido castigados com um feixe de varas e queimados em seguida.

A alegria e a zombaria tornaram-se mais intensas. Enfim, soou meio-dia e o tumulto
deu lugar ao silêncio. Todos os olhares se moveram em direção ao palco, mas ninguém surgiu sobre ele. Desta vez, era demais.

Esperou-se um, dois, três minutos, um quarto de hora e nada se passou. A plataforma continuava deserta; o teatro, mudo. No entanto, a impaciência foi seguida pela cólera.

Os comentários irritados circulavam, ainda em voz baixa, é verdade. "O mistério! O mistério!", murmurava-se surdamente. As cabeças se agitavam e um clima de revolta, que ainda apenas ressoava, pairou sobre a multidão.

– Saquear! Saquear! – ouviu-se por toda parte.

Neste instante, a cortina do fundo foi levantada, dando passagem a um personagem que anunciou que iria representar o papel de Júpiter na peça:
– Assim que o eminentíssimo cardeal chegar, nós começaremos.

Mas sua voz se perdeu numa tempestade de vaias.

– Comecem o mistério, agora! – gritou o público.

A cólera popular estava prestes a explodir com violência redobrada, quando um personagem que era ninguém menos do que o autor da peça, Pierre Gringoire, tomou o lugar de Júpiter e deu-lhe ordem de começar imediatamente.

– Viva! – gritou o público.

Houve um som de palmas ensurdecedor e Júpiter entrou pela cortina, deixando para trás o salão a tremer com os aplausos. Logo, então, pôde-se admirar a peça, intitulada
"A provação da Virgem", uma obra muito bonita.

O público escutava com atenção, quando, de repente, bem no meio de uma cena, a porta da plataforma reservada,que até aquele momento estava fechada, se abriu e uma voz retumbante anunciou:
– Sua Eminência, o cardeal de Bourbon.

Pobre Gringoire! De tudo o que ele poderia temer, aconteceu o pior. A entrada de Sua Eminência pôs o auditório de pernas para o ar. Todas as cabeças se voltaram para a plataforma e nada mais se pôde ouvir.

– O cardeal! O cardeal! – repetiram todas as bocas.

Sua Eminência, então, parou um momento na entrada da plataforma e, enquanto olhava indiferente para o auditório, o tumulto aumentou. Todos queriam vê-lo melhor, mas só conseguiam aqueles que podiam colocar a cabeça sobre o ombro do vizinho.

O cardeal entrou, saudou o público e se dirigiu a passos lentos à sua poltrona de veludo vermelho, com um ar de estar pensando em outra coisa. Seu cortejo de bispos e abades apareceu em seguida, não sem um aumento ainda maior do tumulto e da curiosidade.

Após o cardeal de Bourbon, chegaram, dois a dois, os enviados do Duque da Áustria. Não era mais possível pensar no espetáculo teatral e o pobre Gringoire ficou agitado, sem poder, imediatamente, juntar-se aos comediantes e reconduzir a atenção ao que acontecia em cena.

Entre os recém-chegados destacavam-se os burgueses flamengos, ao mesmo tempo dignos e severos, de famílias parecidas com aquelas a quem o pintor Rembrandt retratou com tanto talento no quadro Ronda noturna. Estavam ali, entre outras pessoas, Guillaume Rym e Jacques Coppenole. Este último, um burguês que não negava a origem humilde – era fabricante de meias -, chamou a atenção de todos desde que se pôs a falar com familiaridade a um mendigo chamado Clopin Trouillefou. O pedinte subira num galho ao lado do palco, sem se preocupar com o protocolo, de onde gritava várias vezes:
– Caridade, pelo amor de Deus.

Tudo ia de mal a pior, porque Jacques Coppenole, enquanto os atores retomavam seus papéis, levantou-se de repente e se pôs a discursar para o público:
– Senhores burgueses e fidalgos de Paris, o que fazemos aqui? Vejo sobre este palco atores fingindo que querem brigar. Não sei se é a isto que os senhores dão o nome de mistério, mas não é divertido. Eles brigam com palavras e mais nada. Já faz um quarto de hora que aguardo o primeiro golpe e nada acontece. São covardes que se arranham apenas com injúrias. Deviam fazer vir lutadores de Londres ou de Roterdã e, no momento certo, os senhores teriam socos que ouviríamos da praça. Não está acontecendo aquilo que me haviam dito que ocorreria. Prometeram-me uma Festa dos Loucos, com eleição do papa. Nós também temos nosso Papa dos Loucos em Gand e nisso não estamos atrás, mas vejam como fazemos. Reunimo-nos em multidão, como aqui. Depois, cada um mostra a cabeça através de um buraco e faz uma careta aos outros. Aquele que fizer a careta mais feia é aclamado por todos e eleito papa. É muito divertido. Os senhores desejam que nós façamos a eleição de seu papa da mesma forma que em meu país?

Gringoire quis protestar, mas a indignação e a ira lhe tiraram a voz. Aliás, a proposta do fabricante de meias foi acolhida com tal entusiasmo pelos burgueses, lisonjeados por terem sido tratados como fidalgos que qualquer resistência seria inútil.

Num piscar de olhos, estava tudo pronto para a execução da idéia de Coppenole. Burgueses e estudantes colocaram mãos à obra: a pequena capela situada diante da mesa de mármore foi escolhida para ser o teatro de caretas e uma vidraça quebrada do vitral sobre a porta deixou livre um círculo de pedra através do qual se decidiu que os participantes enfiariam a cabeça. Para isso, era necessário apenas subir em dois tonéis, empoleirados um sobre o outro, que haviam sido trazidos não se sabe de onde.

Combinou-se que cada candidato, homem ou mulher (porque poderíamos ter uma papisa), deveria cobrir o rosto, permanecendo escondido dentro da capela até o momento de fazer sua aparição. Em menos de um instante, o lugar estava cheio de competidores, atrás dos quais a porta foi fechada.

As caretas começaram. A primeira figura que surgiu na janela, com os olhos revirados, a boca escancarada e a testa enrugada fez com que explodisse uma gargalhada interminável. Uma segunda e uma terceira careta se sucederam, depois outra e mais outra e sempre os risos e as alegres batidas de pés no chão aumentavam.

De repente, uma tempestade de aplausos, misturada a uma aclamação prodigiosa, aconteceu. O Papa dos Loucos havia sido eleito.

– Viva! Viva! – gritaram as pessoas por toda parte.

Era uma careta maravilhosa que irradiava no buraco do vitral. Após todas as figuras extravagantes que se sucederam na janela, nenhuma outra poderia conseguir os votos além da careta sublime que acabara de deslumbrar o público. O próprio Coppenole aplaudiu.

A aclamação foi unânime. Uma multidão entrou na capela e fez com que saísse em triunfo o afortunado Papa dos Loucos, mas foi neste momento que a surpresa e a admiração atingiram o ápice. A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriçada de cabelos ruivos; entre os dois ombros, uma Corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos; pés grandes, mãos monstruosas e, apesar da deformidade, uma aparência formidável de vigor, agilidade e coragem. Poderíamos dizer que se tratava de um gigante que se partira, tendo sido mal colado. Assim era o Papa que os Loucos acabavam de escolher.

– É Quasímodo, o sineiro! – gritaram. – É Quasímodo, o Corcunda de Notre-Dame! Quasímodo, o caolho! Quasímodo, o aleijado! Viva!

Estamos vendo que o infeliz tinha sobrenomes de sobra para escolher. Quasímodo, objeto do tumulto, mantinha-se na porta da capela, de pé, triste e sério, e se deixava admirar.

Um estudante, Robin Poussepain, veio rir diante de seu nariz, e muito perto. O Corcunda limitou-se a levantá-lo pela cintura e a atirá-lo a dez passos de distância através da multidão, sem dizer uma só palavra.

Todos os mendigos e ladrões aos quais se juntaram os estudantes foram em procissão buscar no armário do tribunal a tiara de papel e a patética e grosseira veste de pele de ovelha do Papa dos Loucos. Quasímodo se deixou vestir sem pestanejar, com uma certa docilidade orgulhosa. Em seguida, colocaram-no sentado numa cadeira colorida que doze oficiais da Confraria dos Loucos levantaram em seus ombros. Então, uma alegria amarga e arrogante floresceu na face carrancuda daquela espécie de monstro mitológico, quando ele viu sob seus pés disformes todas as cabeças de belos homens, eretos e bem feitos.

Depois, a procissão estridente se colocou a caminho para fazer, de acordo com o costume, o passeio pelo interior das galerias do Palácio, antes de desfilar pelas ruas e cruzamentos. A multidão saiu à rua e neste momento outros gritos ressoaram:
– Esmeralda! Esmeralda! Ela está Iá! Ela está Iá!

– O que isto quer dizer: Esmeralda? – perguntou o único espectador da peça, Pierre Gringoire, desolado.

É preciso dizer que durante a eleição, a encenação do mistério continuou, pois os atores e Gringoire não interromperam a obra. Um brilho de esperança ressurgiu quando o autor viu o Papa dos Loucos e seu cortejo ensurdecedor saírem ruidosamente do salão, mas, infelizmente, aquela multidão era o público e, num piscar de olhos, o grande salão ficou vazio…

Era o último golpe e Gringoire recebeu-o com resignação.

– Azar de quem não assistiu a uma obra sublime! – disse aos atores. – Se eu for pago, acerto as contas com vocês.