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Tabajara Ruas: O dia em que Dorival encarou a guarda

– Ô praça, venha cá!

O soldadinho estremeceu. Onze horas da noite, faltava meia hora para ser rendido, vinha essa voz atrapalhar sua paz. Calorzão medonho. Das piores noites de verão. Em Santa Catarina nunca faz tanto calor assim como neste tal Rio de Janeiro.

Por Tabajara Ruas

A fazenda áspera da farda provocava-lhe assadura nas partes, os coturnos apertados machucavam-lhe os pés acostumados com chinelas de dedo, o capacete estava molhado de suor por dentro, sentia-o deslizar pela nuca e pela testa. O único bacana era a metralhadora que lhe deram, novinha, leve. Quando chegava ao fim do corredor, onde estava a janela gradeada e a corrente de ar e onde demorava-se mais do que devia, olhava o luar que batia no cano dela e provocava um brilho esquisito enquanto saltavam estrelinhas e chispas do parafuso perto do carregador. Uma beleza. Agora essa voz, ainda por cima autoritária (parecia a voz do sargento) que vinha duma das celas. Aproximou-se vagaroso, desconfiado.

– Aqui.

Era a cela 12. Pela janelinha gradeada espreitava a cara sinistra, suada, dum baita dum negrão. O negrão sorriu, cintilou um clarão branco na sua cara, o soldadinho se assustou mais.

– Praça, seja camarada, me leva até o banheiro e deixa eu tomar uma ducha. Tô derretendo aqui dentro.

O soldadinho sorriu. Não era problema. Estava até pensando em coisa grave. Sacudiu a cabeça sério, otoridade.

– Não pode.

– Não pode por quê? Tô derretendo aqui dentro.

– São ordens.

– Ô, meu chapa, não custa nada. Há dez dias não tomo banho. Esta merda desta cela não tem nem janela. Tô sufocando. Em cinco minutos tomo uma ducha. Não consigo dormir com o calor. Não custa nada.

– Não pode.

– Porra, mas isso é uma idéia fixa. Por que não pode, caralho?

– Ordens.

– Que ordens, pô?

– Ordens são ordens.

– E quem deu a ordem?

– O cabo.

– Vai lá chamar o cabo.

O soldadinho arregalou os olhos. O caso se complicava.

– Chamo nada. Vai pro teu catre e fica quieto.

Antes que enchesse o peito, orgulhoso da resposta, viu a cara do negrão se contrair, seus olhos se arredondarem, as palavras saltarem da sua boca monstruosa sólidas como pedaços de tijolos jogados contra sua cabeça.

– Escuta aqui, catarina barata descascada, polaco comedor de sabão. Vai lá chamar esse cabo antes que eu faça um escândalo nesta espelunca! Eu começo a gritar aqui dentro que acordo até o general que é gerente deste hotel.

Agarrou-se às grades – o soldadinho nunca viu mãos tão grandes na sua vida – e pode ser apenas impressão sua, mas a porta de aço estremeceu. Não fazia nem uma semana, no seu dia de licença, tinha visto – e ficara profundamente impressionado – o magnífico filme King Kong (tão bem feito, parecia real!) onde um gorila gigantesco transforma em picadinho uma baita duma cidade dos Estados Unidos da América. O soldadinho recua um passo, apavorado. Tem a impressão apavoradamente nítida de que o que se encontra dentro da cela é nada mais nada menos que o King Kong, o brilho dos olhos do negrão é o brilho dos olhos do King Kong e sua boca feroz é a boca mortal do King Kong. Imagina, pensa – vê – (são sabe mais) que de dentro da cela desprende-se ruído de correntes, cheiro nauseante de selva, de carne humana decomposta. Dá as costas, desliza-lhe agudo frio pela espinha inteira, a porta vai ceder à pressão do monstro. Atravessa o corredor em cinco passadas.

– Cabo.

O cabo vira lentamente o rosto, o cigarro pende da ponta dos seus lábios, a metade do cigarro está transformado em cinza que a preguiça impediu de sacudir, franze a testa com desgosto e fecha os olhos por causa da fumaça, porra, aí vem esse catarina encher meu saco, agora que estava ficando boa a historinha do Drácula.

– Qualé?

– O preso da cela 12!

– Qualé?

– Quer falar com o senhor, meu cabo.

– Qualé, qualé? – Faz gestos com as mãos, esse catarina obtuso não desenvolve os assuntos, porra.

– Vai fazer um escândalo, vai começar a gritar, aliás, já começou. É um negrão deste tamanho.

– Um negrão deste tamanho? E você se encagaçou porque ele é um negrão deste tamanho? Você é um homem ou um rato? Vem interromper minha leitura porque um negrão deste tamanho dentro duma cela fechada a chave começou a gritar?

– Mas, cabo…

– Nada de mas nem meio mas! Eu vou lá dar um sossego no negrão deste tamanho.

O cabo joga a revista do Drácula no banco encostado à parede com gesto enfastiado. Tira as pernas de cima da mesa como Clint Eastwood em Por um punhado de dólares. Aperta o cinturão. Põe o capacete. Torna a dependurar o cigarro, agora sem a cinza, no canto da boca. Começa a caminhar lentamente pela rua principal de Dodge City. O sol cai no horizonte. Aproxima-se da cela 12. Tá lá a facha do negrão. Cruzes. Esse comuna de merda não vai ganhar nenhum concurso de beleza.
Aproximou corajosamente o rosto das grades, exemplo pra esse praça frouxo.

– Qualé?

– Cabo, eu queria pedir licença pra tomar um banho. Coisa rápida. Estou derretendo aqui dentro. Não deixam eu me banhar há mais de dez dias. Mas hoje está insuportável, palavra.

O cabo franze a testa, semicerra os olhos. (Tem um cara antigão que faz assim nos policiais que dão na TV.) Mal move os lábios.

– Você sabe onde está, ô cara?

– Sei, cabo, mas…

– Senhor cabo. Respeito é bom e otoridade merece.

– Senhor cabo. Acontece que eu…

– Acontece que tu tá em cana, crioulo, e malandro que é malandro chia mas não geme. Cala essa matraca e vai dormir.

– Mas, cabo…

– Senhor cabo, já disse.

– Cabo e merda pra mim é a mesma coisa.

– Quê?!

– Viado.

O cabo deu um salto para trás. O negrão, tranqüilo, continua:

– Bicha. Tu não me engana com essa pinta não. Já te manjei, sarará. Teu negócio é dar o rabo pros recrutas. Aposto que quem te enraba é o catarina aí. Tá falando com macho, entendeu? Abre essa porteira que eu quero tomar banho.

– Macaco não toma banho. E não me faz perder a paciência, crioulo, senão eu abro essa jaula e te mostro com quantas bananas se faz um piquenique.

– Então, abre. Boneca de catarina.

O cabo cuspiu o cigarro pra um lado. Olhou de relance para o praça paralisado. Aprumou os ombros.

– Tu tá com sorte, negão. Vai dormir. Não abro essa joça porque tenho ordens pra não abrir. Se não tu ias ver o que é bom.

– Ordens? Que ordens?

– Ordens, pomba!

– Ordens de quem?

– Não interessa. Ordens são ordens.

– Tu é tão pé-de-chinelo que não sabe nem de quem recebe ordens?

– Do sargento.

– Vai chamar o sargento.

– Tu tá doido, crioulo.

– Olha aqui, boneca, vai chamar esse sargento ou dou um escândalo tão grande nesta merda que vão te rebaixar pra recruta outra vez e aí babaus, não vai ter catarina que queira comer rabo de recruta.

O cabo olhou firme nos olhos do negrão, o olhar de Kojak ao descobrir o policial corrupto, e dá-lhe subitamente as costas. Afasta-se pisando forte.

– Tu vai entrar por um cano, crioulo…

O sargento ergueu dois olhos entediados. Aí vem o cabo e esse praça com pinta de otário para lhe encherem o saco. Perdeu o ensaio na Escola porque logo hoje caiu de serviço. Baixa o volume do radinho de pilha, acomoda-se melhor na cama onde está estendido. Saco. O ventilador em cima do armário não resolve. Quando vão botar ar-condicionado para sargento também? O tenente lá no quarto dele tem refrigeradorzinho, toca-disco; livrinhos de capa grossa e, claro, ar-condicionado.

Agora, o sargento Marcão, pai de dois crioulinhos, vivendo maritalmente com a mulatinha Ana Neusa – de parar o trânsito e fechar o comércio – não tem nada disso não. Sargento tem é que se ralar. E se é preto, pior ainda.

– Dá licença, sargento?

– A porta tá aberta…

O cabo se enquadra.

– Sargento…

– Quem é que tá de guarda no corredor?

O cabo se vira, dá de cara com o recruta de Santa Catarina.

– Qualé, qualé? Que tá fazendo aqui? Vai pro teu posto, imbecil!

O soldadinho sai em passo acelerado. Quando afastou-se o suficiente, o cabo prepara o olhar-de-momento-grave para o sargento, olhar fatal, de decidir se aperta-ou-não-o-botão-vermelho e aí adeus humanidade.

– Sarja, o crioulo da cela 12 tá a fim de bagunçar o coreto. Digo, desculpe sarja, o preso da cela 12.

– Quer bagunçar qual coreto? O teu?

O cabo se curva, confidencial, grave:

– O de todos, sargento, o de todos.

– Que que ele quer?

– Tomar banho.

– Não pode.

– Eu disse pra ele.

– Então? Assunto encerrado.

– Mas ele prometeu armar um escândalo, começar a gritar.

– A esta hora da noite?

– O senhor vê.

– Mas tu disse que não pode tomar banho?

– Disse. Ele tem ordem para não tomar banho.

– Ele não tem ordem para não tomar banho. Existem ordens para que ele não tome banho.

– Pois é. Ordens são ordens.

– Ele ameaçou gritar?

– Ameaçou. É um baita dum negrão deste tamanho. Desculpe, sarja. Tem um vozeirão que vou lhe contar. Sai da frente. Se começa a gritar se ouve até lá na Mangueira.

Lá na Mangueira, pensou o sargento, melancólico. Lá na Mangueira a coisa tá animada. E eu aqui, agüentando estes imbecis.

O sargento sentou-se na cama com esforço.

– Porra…

Afivelou o cinturão, suspirou, não se pode ter descanso numa noite quente dessas. Caminhou pelo corredor arrastando os pés. Com certeza vai chover, cair um tremendo temporal, acabar com o ensaio. Falta pouquinho pro Carnaval. Não posso mais perder ensaio, tem nego de olho grande na minha vaga. Não dá pra dormir no ponto.

Aproximou-se da cela 12, puxa que crioulo feio.

– Qual é o plá?

– Sargento, eu queria pedir ao senhor licença pra tomar uma ducha.

– Não pode.

– Não pode por quê?

– Não pode porque não pode. Ordens.

– Ordens de quem, pô?

– Não interessa.

– Mas, sargento… Não dá pra esquecer essas ordens só por um minutinho? Eu tomo uma ducha num instante. Tô derretendo aqui dentro. Um sufoco brabo. Há dez dias que…

– Não pode.

– Sargento, não tô pedindo nada demais, pô.

– Chega de papo. Ordens são ordens. Amanhã a gente fala nisso.
– Amanhã tem outro na guarda.

– Então outro dia.

– Tu tá é com medo.

O sargento mostrou um sorriso tolerante. O cabo e o praça se entreolharam.

– Vai dormir que isso passa, rapaz. Não procura sarna pra te coçar. Meu lema é…

– Tu não tem lema. Pau-mandado não tem lema.

O praça e o cabo tornaram-se sombrios, olho no sargento.

– Olha aqui, rapaz. Devagar. Relax. Não tenho nada contra ti. Eu sou sargento aqui e posso…

– Sargento e merda pra mim é a mesma coisa.

– Olha, crioulo, que eu posso te dar um pau.

– Vem.

– Eu sou cara de paciência, moreno.

– Então me deixa ir tomar banho.

– Não pode.

– Por quê?

– Já disse.

– Quem deu a ordem?

– Não interessa.

– Então vou começar a berrar aqui dentro.

– E vou aí dentro e te dou um pau.

– Vem.

O sargento suspirou. Era um negro baixote, ratacão, razoável meio-pesado quando tinha vinte anos e ainda não fora absorvido pela bateria da Mangueira e pelo boteco da esquina. O praça e o cabo estavam extasiados com o espetáculo. O sargento considerou os prós e os contras, sacudiu a cabeça, tornou a suspirar e começou a afastar-se, vagaroso, arrastando os pés, saco, esses galhos só acontecem comigo.

– Sargento.

Esse negão tá querendo levar. Voltou-se, com um brilho maligno nos olhos.

– E o meu banho?

– Vou falar com o tenente. Ele que resolva.

O sargento Marcão não gostava de falar com o tenente. Talvez ninguém gostasse de falar com o tenente. Não que o tenente fosse grosseiro. Nada disso. O tenente era uma moça, como dizia o coronel. O tenente não maltratava ninguém. O tenente tinha a rara qualidade de saber dizer obrigado, passe bem, boa noite, como foi o ensaio? O tenente era educadíssimo. O sargento Marcão não gostava de falar com o tenente – talvez ninguém gostasse de falar com o tenente – porque, no mel dos seus vinte anos, o tenente Otílio tinha tão e de tal modo azuis os olhos que quem os encarasse muito tempo sentia frio como acometido de pressão baixa ou tristeza, dessa fininha, que só dá quando se está muito longe de casa.

Justo quando o tenente começava ler o capítulo sobre Gauguin Bateram na porta.

– Entra.

O sargento. A cara de desânimo brilhando de suor. O sargento Marcão sempre estava com cara de desânimo e brilhando de suor. E um ou outro botão fora da casa. Parecia as negras gordas que aquele pintor mexicano pintava. Um certo Rivera. Ou seria Ramires? Pintava murais da revolução mexicana. Devia ser comunista. Melhor fingir que não vê os botões por abotoar, o cinturão frouxo na cintura.

– Com licença, tenente.

– O que há, sargento?

– Tem um preso fazendo confusão. Quer tomar banho.

– Tomar banho? A está hora?

– Ele não toma durante o dia.

– Por quê?

– Ordens.

– Ah.

O tenente pensou um pouco.

– Ele tem ordens de não tomar banho só durante o dia?

– Não está especificado, tenente.

– Bem… Acho que se não pode durante o dia não pode também durante a noite.

– Assim me parece, tenente.

– Então, está resolvido o caso.

O sargento descansou numa perna, fez o vago ar de que não-é-bem-assim.

– É que ele tá querendo confusão mesmo, tenente. Ameaça gritar e acordar todo mundo e tal e coisa.

– Quem é esse preso?

– Um líder sindical. Foi preso em Osasco. Trouxeram pra cá para uma acareação.

– Perigoso?

– Bem, terrorista parece que não é… Mas não tem boa pinta. É muito atrevido. Desacatou o praça de guarda e o cabo.

O tenente olhou pensativo as páginas do livro. Será que o sargento Marcão entende a arte moderna? O tenente não conhecia ninguém que entendesse de arte moderna. O tenente também não entendia de arte moderna. Por isso lia tanto esses livros. Olhou a página aberta. -A pintura de Gauguin pode ser entendida através de auto-retratos e de suas cartas.- Fechou o livro.

– Vamos lá.

O cabo e o praça esperavam no início do corredor. Enquadraram-se, deixaram o tenente e o sargento passar. O quarteto rompeu pelo corredor num passo marcial. Pararam frente à cela. O tenente não teve certeza, por um momento pensou que sonhava, porque o rosto sinistro dentro da cela olhou com desprezo o livro que carregara inadvertidamente e sussurrou, intelectual e merda pra mim é a mesma coisa. O tenente olhou escandalizado para o sargento. O sargento tinha cara de quem não ouviu nada. O cabo e o praça idem. (Por que não deixei o livro no quarto? Meu analista vai insinuar que é necessidade de afirmação, tenho certeza).

– Qual é o problema?

A cara do negro parecia uma dessas coisas modernas do Picasso, mas não era bem isso.

– Tenente, eu queria pedir licença ao senhor para tomar uma ducha, tô derretendo aqui dentro.

– Não pode.

O negrão suspirou.

– Não pode por quê, tenente?

– Isso não é da sua conta.

– Tenente, não me leve a mal, mas é da conta de quem, então? Sou eu quem não deixam tomar banho, logo é da minha conta saber por que não me deixam tomar. E com um calor desgraçado desses.

O tenente considerou a colocação. Pareceu-lhe justa.

– São ordens.

– Ordens! Ordens de quem?

– Isso já não é da sua conta.

O negrão bufou: já não era mais suspiro.

– Tenente, seja humano. Que custa me deixar tomar uma duchazinha rápida? Cinco minutos.

Ninguém vai saber.

– Ordens são ordens.

– Me diga uma coisa, tenente: sinceramente, o senhor sabe quem deu essa ordem?

– Vou dar um conselho pra teu próprio bem, rapaz: vai dormir. Você está nervoso. Amanhã isso passa.

– Se não diz é porque não sabe quem deu.

– Amanhã eu converso com o capitão sobre o teu banho.

– Se não sabe quem deu a ordem e obedece é um boneco. Não é um homem, é um boneco.

– Me respeita, negro! Me respeita.

– Tenente e merda pra mim é a mesma coisa.

O tenente gelou. O negro sorria, debochado. O sargento, o praça, o cabo aguardavam. Se não reagisse ficaria desmoralizado. Olhou a imensa figura debochada, precisou achar uma boa razão para odiá-lo, buscou com desespero em sua memória, achou uma frase do seu pai no alto do cavalo, na fazenda.

– Cafre miserável, vou te dar uma lição!

Então, Dorival inclinou a cabeça – sem fazer cálculo nem pontaria – e deu uma cuspida enviesada, infernalmente certeira – genial – bem no olho azul do tenente Otílio.

Os quatro homens maravilhados, como quem presencia um encantamento. O sargento reagiu primeiro. Com rugido assombroso para ele mesmo atacou com a coronha da metralhadora, bateu nas grades da janelinha, o negrão lá dentro deu um pulo para trás, vem, vem.

O praça de Santa Catarina sentiu uma vertigem: era King Kong. Lá dentro, a urrar, não estava um homem: estava King Kong em pessoa, despedaçaria a todos, comeria pedaços de sua carne; agoniou-o a tremura nas pernas e o aperto injusto dos coturnos. O cabo levou a mão à coronha do Colt. John Wayne em Rio bravo. O tenente ergueu bem alto o livro, como uma bandeira.

– Alto! Alto!

Todos pararam. O tenente transpirava. O tenente sentia uma coisa estranha agitar-se dentro de si, algo dentro de si ensaiava levantar vôo.

– Sargento.

– Pronto, tenente.

– Tem as chaves desta cela?

– Sim, tenente.

– Abra-a.

O tenente observou o sargento mexer nos bolsos nervosamente. Apanhou um molho de chaves.

– Sargento.

– Tenente.

– Espere um pouco.

O tenente ofegava. Vacilou.

– Traga reforços.

– Sim, senhor, tenente. Quantos homens?

O tenente encolheu os ombros.

– Bem… Traga dois. Dois bastam.

O sargento lançou um olhar enérgico para o cabo. O cabo lançou um olhar enérgico para o praça. O praça se enquadrou e saiu num passo acelerado.

O cabo, o sargento, o tenente e o negrão aguardavam. Uma coisa ameaçava levantar vôo dentro do tenente. Algo dentro do tenente palpitava. Um dia você ainda vai me matar, dissera-lhe a mãe numa voz cavernosa, você é igual a seu pai, tem um abutre por dentro.

O sargento mordia o lábio inferior, começava a inflar de raiva cega contra o provocador estúpido que ria dentro da cela, o tirara do conforto da cama, do ventilador, do radinho de pilha.

O cabo antegozava o momento, vou esperar que o filho da puta esteja bem agarrado, de dar-lhe um pontapé nos culhões. Vai ver o que é meter-se comigo, esse crioulo.

O negrão aproximou o rosto das grades. Sorria.

– Tenente, quer saber quem deu a ordem?

Os três levantaram os olhos para o negrão.

– Foi o carcereiro. Porque não vai com minha cara. Na verdade não existe ordem nenhuma. Basta checar para saber. Vocês todos são é uns paus-mandados mesmo.

Passos no corredor. O praça aproxima-se com quatro soldados. Por um segundo de azar, o olhar do tenente cruzou com o do sargento. Mandaram chamar dois, mas já que vieram quatro… O grupo chegou e enquadrou-se. O tenente fez sinal para o sargento.

– Vamos dar uma lição nesse insubordinado – disse o sargento. – Que ninguém use arma de fogo sem receber voz de comando. É só umas porradas pra ele aprender a respeitar otoridade.

– Muito bem – disse o tenente. – Abra.

Os dois homens silenciaram frente à porta. O suor escorria por todos os rostos. A chave rangeu na fechadura. O praça de Santa Catarina vacilou com a vertigem, viu tudo escuro, dentro da cela brilhavam dois olhos ferozes. Baleia escancarando as mandíbulas terríveis, a porta abriu-se: boca gigantesca de pesadelo. Quem entra primeiro. Todos se entreolharam. Um a um, todos os olhares caíram no tenente. O tenente prendeu a respiração, cravou os olhos azuis no sargento, esse bruto homem com uma metralhadora na mão não toma a iniciativa, não é possível. Fez-lhe sinal com a cabeça. O sargento olhou duvidoso para o interior da cela. Escuro. Deu uns passos e entrou. O vulto estava imóvel no canto, rente à parede. O sargento criou coragem.

– Tu tá fudido, negão!

Saltou para dentro, num arranco, brandindo a culatra da metralhadora, exigindo a raiva brotar contra aquela sombra imóvel no canto que lhe atrapalhava a paz da noite.

– Segurem esse filho da puta!

Subitamente audaciosa, a soldadesca avançou. E estacou com um único calafrio de pânico porque Dorival junto à parede executou sutil movimento de anjo. Pesava cem quilos, media um metro e noventa, calçava quarenta e quatro e executou sutil movimento de anjo. E riu. O riso penetrou a espinha do catarina como um punhal, encheu o corredor como trovoada.

– Milico e merda pra mim é a mesma coisa!

Durante um segundo o tenente enlouqueceu:

– Segurem esse cafre, segurem esse cafre!

O primeiro que chegou perto esborrachou a cara contra o soco de trezentos quilos, o segundo voou com um pontapé no estômago, bateu contra a parede, escorregou até o chão contemplando um confuso bosque povoado de sangrentas borboletas metálicas, o terceiro acertou a coronhada no rosto de Dorival, o sargento atingiu-lhe a nuca com a culatra da metralhadora, o cabo um pontapé nas costelas, os outros caíram em cima, matilha batendo mordendo o soldadinho de Santa Catarina encostou-se à parede da cela vencido pela vertigem o tenente brandia o livro de arte folhas coloridas saltavam num impulso de alegria abandonou-se ao abutre ruflou as asas negras sobre o escombro pululante guinchava aprende a lição cafre aprende a lição.

– Limpem o sangue – disse o tenente.

Apanhou as folhas de livro espalhadas pelo piso, afastou-se em passos de sonâmbulo, pondo a camisa para dentro das calças.

Arrastaram Dorival pelos pés até o banheiro. Largaram-no debaixo do chuveiro, abriram a torneira. A água fria reanimou-o. Apoiou-se nos cotovelos, as costas encontraram a parede, de olhos fechados ficou gozando a água.

O sargento Marcão, agachando-se com um suspiro, acendeu dois cigarros e estendeu-lhe um, silenciosamente.

(*) Do livro "O Amor de Pedro por João", publicado pela primeira vez no Brasil pela L&PM Editores e reeditado pela Editora Record (1998). O texto aqui transcrito foi retirado da revista “Oitenta”, nº 6, Porto Alegre, LP&M, 1982.