Sem categoria

Enfrentar a crise da dívida na Europa

Um dos avatares da crise do setor financeiro que começou em 2007 nos Estados Unidos e se estendeu como rastilho de pólvora na Europa, é a energia que os os bancos deslocaram do oeste europeu (sobretudo alemães e franceses, mas também belgas, holandeses, britânicos, italianos, luxemburgueses, irlandeses…) para utilizar os fundos emprestados ou doados maciçamente pela Reserva Federal (Banco Central dos EUA) e o Banco Central Europeu (BCE).

Por Damien Millet e Eric Toussaint*, em Cubadebate

Com eles conseguiram aumentar, entre 2007 e 2009, seus empréstimos a vários países da zona do euro (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha), dos quais obtiveram esplêndidos lucros produzidos por elevadas taxas de juros. A título de exemplo: entre junho de 2007 (começo da crise dos subprime) e setembro de 2008 (quebra do Lehman Brothers), os empréstimos bancários privados da Europa ocidental para a Grécia tiham aumentado 33%, passando de 120 bilhões a 160 bilhões de euros.

Os banqueIros da Europa ocidental se acotovelaram para outorgar empréstimos à periferia da União Europeia, que desejava endividar-se. Não contentes de arriscar-se de maneira extravagante do outro lado do Atlântico no mercado dos subprime com o dinheiro confiado pelos poupadores, repetiram a mesma operação na Grécia, em Portugal, na Espanha… Efetivamente, o pertencimento de alguns países da periferia à zona do euro convenceu os banqueiros dos países do oeste europeu de que os governos, o BCE e a Comissão Europeia os ajudariam em caso de problemas. E não se equivocaram.

Quando a zona do euro foi sacudida por fortes turbulências, a partir da primavera de 2010, o BCE emprestava a juros vantajosos de 1% aos bancos privados, que por sua vez exigiam a países como a Grécia juros superiores, entre 4% e 5% para empréstimos com prazo de três meses, e de cerca de 12% para os títulos com vencimento para 10 anos.

Os bancos e os outros investidores institucionais justificaram tais exigências pelo risco de cessação de pagamentos que pesava sobre os chamados países de risco. Uma ameaça tão forte que as taxas de juros aumentaram consideravelmente: o empréstimo concedido pelo FMI e pela União Europeia à Irlanda em novembro de 2010 alcançava 6,7%, contra 5,2% concedido à Grécia seis meses antes.

Em maio de 2011, a taxa de juros para a Grécia, para empréstimos com prazo de 10 anos, ultrapassava 16,5%, o que obrigou este país a tomar empréstimos com prazos de três a seis meses, ou dirigir-se ao FMI ou a outros países europeus. Desde então, o BCE deve garantir as dívidas dos bancos privados comprando-lhes os títulos dos Estados… aos quais, em princípio, está proibido de emprestar diretamente.

Para tratar de diminuir os riscos, os bancos franceses diminuiram em 2010 sua exposição na Grécia, que se reduziu em 44%, passando de US$27 bilhões a US$15 bilhões. Os bancos alemães efetuaram um movimento similar: sua exposição direta baixou 60% entre maio de 2010 e fevereiro de 2011, passando de US$16 bilhões a US$10 bilhões. Foram o FMI, o BCE e os governos europeus os que substituíram progressivamente os bancos e outras entidades financeiras privadas. O BCE possui de forma direta 66 bilhões de euros de títulos gregos (ou seja, 20% da dívida pública grega) que adquiriu no mercado secundário aos bancos. Ainda que, até maio de 2011, o FMI e alguns governos europeus já tenham emprestado 33 bilhões de euros, seus empréstimos continuaram aumentando.

Mas isso não para por aí. O BCE aceitou dos bancos gregos 120 bilhões de euros em títulos da dívida grega como garantias (colaterais) de empréstimos que tinha concedido com uma taxa de juros de 1,25%. O mesmo procedimento se reproduziu com a Irlanda e Portugal.

Portanto, encontramo-nos diante de todos os ingredientes da gestão da crise da dívida do Sul, mediante o Plano Brady. No início da crise que eclodiu em 1982, o FMI e os governos das grandes potências, Estados Unidos e Grã-Bretanha à frente, foram ao resgate dos bancos privados do Norte que tinham se arriscado enormemente emprestando, de forma compulsiva, aos países do Sul, sobretudo na América Latina. Quando países como o México se encontraram à beira da cessação dos pagamentos como resultado do efeito combinado do aumento das taxas de juros e do descenso nas receitas de exportações, o FMI e os países membros do Clube de Paris lhes concederam empréstimos, com a condição de que continuassem reembolsando suas dívidas e que aplicassem planos de austeridade (os famosos planos de ajuste estrutural).

Mas, como o endividamento do Sul aumentava como uma bola de neve (como está ocorrendo neste momento na Grécia, Irlanda, Portugal, e em outros países da União Europeia), puseram em marcha o Plano Brady (do nome do então secretário do Tesouro dos Estados Unidos) que implicou uma reestruturação da dívida dos principais países endividados mediante um intercâmbio de títulos. O volume da dívida se reduziu em 30% em certos casos e os novos títulos (os títulos Brady) garantiram uma taxa de juros fixa de cerca de 6%, o que foi muito favorável para os banqueiros. Isso também assegurou a execução das políticas de austeridade sob o controle do FMI e do Banco Mundial.

Contudo, a longo prazo, o montante da dívida aumentou e as somas a reembolsar foram enormes. Se se tem em conta somente o saldo líquido entre as somas emprestadas e as reembolsadas desde a implantação do Plano Brady, os países em desenvolvimento transferiram aos credores o equivalente a mais de seis planos Marshall, quer dizer, cerca de US$ 600 bilhões. Não seria necessário evitar que suceda algo similar? Por que se deve aceitar que os direitos econômicos e sociais dos povos sejam uma vez mais sacrificados no altar dos banqueiros e de outros atores dos mercados financeiros?

Segundo os bancos de investimentos Morgan Stanley e J.P. Morgan, em maio de 2011, os mercados consideravam que havia 70% de probabilidade de que a Grécia entrasse em cessação de pagamentos, contra 50% dois meses antes. Em 7 de julho de 2011, o Moody’s colocou Portugal na categoria de dívidas de alto risco. Uns dias depois, os especuladores atacavam a Itália. Portanto, temos uma razão suplementar para pedir a anulação: é necessário auditar as dívidas, com participação cidadã, a fim de anular a parte ilegítima.

Se não se toma esta opção, as vítimas da crise sofrerão perpetuamente uma dupla condenação em benefício dos verdadeiros culpados, os banqueiros. Vê-se isto perfeitamente na Grécia: as curas de austeridade se sucedem sem que melhore a situação das contas públicas. O mesmo ocorrerá com Portugal, Irlanda, Espanha… Uma grande parte da dívida é ilegítima, uma vez que provém de uma política que tem favorecido uma ínfima minoria da população em detrimento de uma esmagadora maioria de cidadãos e cidadãs.

Nos países que assinaram acordos com a Troica, as novas dívidas não são apenas ilegítimas mas também odiosas e isto se deve a três razões:

1) Os empréstimos estão eivados de condições que violam os direitos econômicos e sociais de uma grande parte da população.

2) Os credores fazem chantagem a esses países (não há uma verdadeira autonomia de vontade do país que necessita do empréstimo).

3) Os credores enriquecem de forma abusiva impondo taxas de juros proibitivas (por exemplo, a França e a Alemanha tomam empréstimos a 2% nos mercados financeiros e emprestam a mais de 5% à Grécia e à Irlanda; os bancos privados obtêm empréstimos a 1,25% do BCE e emprestam a Grécia, Irlanda, Portugal a mais de 4% por três meses). Estes países ou os do Leste europeu (e, fora da União Europeia, países como a Islândia), ou seja, aqueles que são submetidos à chantagem dos especuladores, do FMI e de outros organismos, como a Comissão Europeia, deviam recorrer a uma moratória unilateral do pagamento da dívida pública. É um meio inevitável para conseguir criar uma correlação de forças favorável. Esta proposta é cada vez mais popular nos países mais afetados pela crise.

Também, se deveria efetuar, sob controle cidadão, uma auditoria da dívida pública. O objetivo da auditoria é conseguir uma anulação/repúdio da parte ilegítima ou odiosa da dívida pública e reduzir fortemente o que reste de dívida.

A redução radical da dívida pública é uma condição necessária mas não suficiente para que os países da União Europeia saiam da crise. É necessário completá-la com toda uma série de medidas de grande amplitude nos diferentes âmbitos (fiscal, transferência das finanças ao domínio público, ressocialização de outros setores-chave da economia, redução do tempo de trabalho com a manutenção dos salários e contratação compensatória, etc.).

A flagrante injustiça que domina as políticas regressivas atualmente implantadas na Europa alimenta a poderosa mobilização de indignados na Espanha na Grécia ou em outras partes. Graças a estes movimentos, que se inspiraram nos levantes populares do Norte da África e do Oriente Médio, estamos vivendo uma aceleração da história. A questão da dívida pública deve ser enfrentada de maneira radical.

*Damien Millet é porta-voz do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM) na França e Eric Toussaint é presidente do CADTM na Bélgica.