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Pepe Escobar: como a al-Qaeda ganhou o domínio de Trípoli?

O terrorista da al-Qaeda que a CIA nomeou como comandante na Líbia: seu nome é Abdelhakim Belhaj. Alguns no Oriente Médio podem ter ouvido falar dele, mas poucos no ocidente o conhecem. Já é tempo de saber. A história de como um membro da al-Qaeda acabou por ser o principal comandante militar líbio na devastada Trípoli relaciona-se como a comprometedora propaganda de intervenção “humanitária” construída com todo o cuidado pela Otan.

Por Pepe Escobar *

A fortaleza de Muamar Kadafi, Bab-al-Aziziyah, foi essencialmente invadida e conquistada pelos homens de Belhaj – que estavam na vanguarda de uma milícia das montanhas a Sudoeste de Trípoli. A milícia chama-se Brigada de Trípoli, treinada em segredo durante dois meses pelas Forças Especiais dos EUA. Ela se revelou como a mais efetiva milícia dos rebeldes em seis meses de guerra tribal/civil.

Na última terça-feira, Belhaj já regozijava a batalha vencida, com as forças de Kadafi escapando como ratos (note-se que é a mesma metáfora utilizada pelo próprio presidente líbio para designar os rebeldes).

Abdelhakim Belhaj, também conhecido como Abu Abdallah al-Sadek, é um jihadista líbio. Nascido em maio de 1966, aperfeiçoou suas qualificações na década de 1980 com os mujahideen no Afeganistão.

Na lista de organizações terroristas do CS da ONU. Ele é o fundador do Libyan Islamic Fighting Group (LIFG) e é de fato emir – com Khaled Chrif e Sami Saadi como seus representantes. Após a tomada do poder em Cabul, em 1966, o LIFG manteve dois campos de treino no Afeganistão, um deles a 30 quilômetros ao norte de Cabul – dirigido por Abu Yahya – era estritamente para jihadis ligados à al-Qaeda.

Após o 11 de Setembro, Belhaj transferiu-se para o Paquistão e também para o Iraque, onde auxiliou nada menos do que o ultra-asqueroso Abu Musab al-Zarqawi – tudo isto antes de a al-Qaeda prometer lealdade a Osama bin Laden e Ayman al-Zawahiri e turbo-carregar suas práticas pavorosas.

No Iraque, os líbios constituíram o maior contingente de sunitas estrangeiros da jihadi, perdendo apenas para os sauditas. Além disso, os jihadis líbios sempre tiveram super-estrelas nos escalões de topo da al-Qaeda "histórica" – Abu Faraj al-Libi (comandante militar até a sua prisão em 2005, agora mofando como um dos 16 detidos de alto valor no centro de detenção estadunidense em Guantánamo) até Abu al-Laith al-Libi (outro comandante militar, morto no Paquistão no principio de 2008).

O momento de uma "rendição" extraordinária

O LIFG esteve nos radares da Central Intelligence Agency dos EUA desde o 11 de setembro. Em 2003, Belhaj foi finalmente preso na Malásia – e então transferido, estilo "rendição" extraordinária, para uma prisão secreta em Bangkok e devidamente torturado.

Em 2004, os americanos decidiram enviá-lo como uma prenda à inteligência líbia – até que foi libertado pelo regime Kadafi em março de 2010, juntamente com outros 211 "terroristas", num golpe de relações públicas anunciado com grandes fanfarras.

O orquestrador foi nada menos do que Saif Islam al-Gaddafi – a face modernizadora da London School of Economicas do regime. Os líderes do LIFG – Belhaj e seus representantes Chrif e Saadi – emitiram uma confissão de 417 páginas alcunhada de "estudos corretivos" no qual declaravam ultrapassada (e ilegal) a jihad contra Kadafi, antes de serem finalmente libertados.

Um relato fascinante de todo o processo pode ser visto numa reportagem chamada "Combatendo o terrorismo na Líbia através do diálogo e da reintegração" ("Combating Terrorism in Libya through Dialogue and Reintegration"). É de notar que os autores, "peritos" em terrorismo com base em Singapura que foram recebidos pelo regime em jantares regados a vinho, "mais profunda apreciação de Saif al-Islam Gaddafi e do Gaddafi International Charity and Development Foundation por tornarem possível esta visita".

Crucialmente, ainda em 2007, o então número dois da al-Qaeda, Zawahiri, anunciou oficialmente a fusão entre o LIFG e al-Qaeda no Islamic Mahgreb (AQIM). Assim, para todas as finalidades práticas, desde então o LIFG/AQIM uma e a mesma entidade – e Belhaj era/é seu emir.

Em 2007, a LIFG estava a apelar a uma jihad contra Kadafi e também contra os EUA e variados "infiéis" ocidentais.

Avançou rapidamente em fevereiro último quando, como homem livre, Belhaj decidiu reverter ao modo jihad e alinhar suas forças com o engendrado levantamento na Cirenaica.

Toda agência de inteligência nos EUA, Europa e mundo árabe sabe de onde ele vem. Ele já garantiu na Líbia que ele próprio e a sua milícia só ficarão satisfeitos com a lei da sharia.

Não há nada "pró-democracia" quanto a isto – nem com qualquer esforço de imaginação. E um membro não podia ser desprendido da guerra da Otan só porque ele não gosta muito de "infiéis".

A morte em Julho do comandante militar rebelde, general Abdel Fattah Younis – pelos próprios rebeldes – parece apontar a Belhaj ou pelo menos a pessoas muito próximas dele.

É essencial saber que Younis – antes de desertar do regime – fora encarregado das forças especiais da Líbia que combateram ferozmente o LIFG na Cirenaica entre 1990 e 1995.

O Conselho Nacional de Transição (CNT), segundo um dos seus membros, Ali Tarhouni, tem estado a propalar que Younis foi morto por uma brigada duvidosa conhecida como Obaida ibn Jarrah (um dos companheiros do Profeta Maomé). Mas a dita brigada agora parece ter-se dissolvido no ar.

Cale a boca ou corto-lhe a cabeça

Não por acaso, todos os principais comandantes rebeldes são LIFG, desde Belhaj em Trípoli a um Ismael as-Salabi em Bengazi e um Abdelhakim al-Assadi em Derna, para não mencionar um activo chave, Ali Salabi, que tem assento no núcleo do CNT. Foi Salabi que negociou com Saif al-Islam Gaddafi o "fim" da jihad do LIFG, assegurando então o brilhante futuro destes renascidos "combatentes da liberdade".

Não é preciso uma bola de cristal para descrever as consequências de o LIFG/AQIM – tendo conquistado poder militar e estando entre os "vencedores" da guerra – não estar nem remotamente interessado em abrir mão do controle só para agradar os caprichos da Otan.

Enquanto isso, em meio ao caos da guerra, não está claro se Kadafi está a planear emboscar a brigada de Trípoli na guerra urbana; ou forçar o grosso das milícias rebeldes a entrar nas enormes áreas tribais dos Warfallah.

A esposa de Kadadi pertence aos Warfallah, a maior tribo da Líbia, com mais de um milhão de pessoas e 54 subtribos. O que se diz à boca pequena em Bruxelas é que a Otan espera que Kadafi combata durante meses, se não anos. Daí o prémio estilo Texas-George W. Bush pela sua cabeça e o desesperado retorno ao plano A da Otan, o qual sempre foi de pô-lo para fora.

A Líbia pode agora estar a enfrentar o espectro de uma guerrilha Hidra de duas cabeças; forças de Kadafi contra um fraco governo central do CNT e botas da Otan sobre o terreno – e a nebulosa LIFG/AQIM numa jihad contra a Otan (se forem marginalizados do poder).

Kadafi pode ser uma relíquia ditatorial do passado, mas não se monopoliza poder durante quatro décadas por nada e sem os seus serviços de inteligência aprenderem uma ou duas coisas.

Desde o princípio, Kadafi disse que isto era uma operação apoiada pelo estrangeiro e al-Qaeda. Ele estava certo (embora se tenha se esquecido de dizer que isto era acima de tudo uma guerra do neo-napoleonico presidente francês Nicolas Sarkozy, mas isso é outra história).

Ele também disse que isto era um prelúdio para uma ocupação estrangeira cujo objetivo era privatizar e apossar-se dos recursos naturais da Líbia. Ele pode – mais uma vez – estar certo.

Os "peritos" de Singapura que louvaram a decisão do regime Kadafi de libertar os jihadis do LIFG qualificaram-na como "uma estratégia necessária para minimizar a ameaça colocada à Líbia". Agora, o LIFG/AQIM está finalmente pronto para exercer suas opções como uma "força política indígena".

Dez anos após o 11 de setembro, é difícil não imaginar certa caveira decomposta no fundo do Mar Arábico rindo descaradamente do reino que vem aí.

Fonte: Resistir.Info