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Jorge Julio López: O desaparecido da democracia argentina

Jorge Julio López saiu de sua casa em 18 de setembro de 2006 e nunca mais apareceu. Segundo familiares, este pedreiro de 77 anos se dirigia pela manhã ao Palácio Municipal da cidade de La Plata, onde ocorria a apresentação da acusação no julgamento contra o ex-comissário de polícia e repressor, Miguel Osvaldo Etchecolatz, pelos crimes de tortura e desaparições durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). López era um dos acusadores.

Por Francisco Luque, em Carta Maior

Jorge López havia testemunhado dias antes diante desse mesmo tribunal. Em seu relato, havia detalhado, passo a passo, sua experiência na unidade de detenção n° 9 e os procedimentos ilegais de que foi objeto quando, em outubro de 1976, foi detido por um grupo a mando do ex-policial Etchecolatz.

Naquela operação foram detidas também outras 12 pessoas, todos membros da unidade básica militante “Juan Pablo Maestre”, pertencente à organização de esquerda peronista, Montoneros. A sede da organização foi crivada de balas e queimada, e López ficou desaparecido durante 180 dias. Alguns de seus companheiros foram liberados posteriormente. Outros permanecem desaparecidos.

Com suas declarações, López envolveu uma grande quantidade de ex-policiais repressores nos processos abertos na cidade de La Plata pelo desaparecimento e torturas no denominado “Circuito Camps”, uma rede de centros de detenção que envolvia grande parte de Buenos Aires, e que era dirigida pelo general Ramón Camps, chefe da Polícia da província de Buenos Aires durante a ditadura militar. O ex-comissário Etchecolatz era sua mão direita e um dos agentes repressores mais conhecidos.

Por que Julio López desapareceu? Em agosto de 2003, o Congresso da Nação aprovou a lei 25.779, que provocou a anulação das leis de impunidade que, desde a chegada da democracia, estavam em vigor na Argentina, leis como a de Obediência Devida e Ponto Final. Posteriormente, em 2005, a Corte Suprema de Justiça revolveu que tais leis não só eram nulas como também inconstitucionais e inválidas. Esse fato possibilitou a reabertura de casos de desaparições que envolviam ex-membros dos aparatos de segurança da ditadura.

Em 1986, Etchecolatz já havia sido sentenciado a 23 anos de prisão acusado de torturar 91 pessoas. No entanto, a Corte Suprema da época anulou a sentença com base na Lei de Obediência Devida, que livrava da responsabilidade penal os subalternos, que só obedeciam ordens. A revogação dessa lei possibilitou a abertura de outros processos contra o ex-policial e Julio López se somou a eles como querelante. Graças a suas declarações, Etchecolaz foi sentenciado à cadeia perpétua por crimes de lesa humanidade no marco do genocídio.

Para a advogada Guadalupe Godoy, a desaparição de Julio López ocorreu no momento em que os acusadores foram capazes, ao longo dos três meses que durou o julgamento, de estabelecer uma série de elementos e conceitos que apontavam diretamente contra a impunidade que existe no país.

"As forças de segurança, desarticuladas, mas latentes, sabiam que acusaríamos Etchecolatz de genocídio e Julio López tinha que estar presente na sala para que pudéssemos fazer a alegação". A advogada lembrou que, quando as organizações de direitos humanos e o mundo popular tomam parte nos julgamentos contra os repressores, López somou-se espontaneamente como acusador.

Um acusador que tinha um papel ativo e que queria a condenação de Etchecolatz. “Quem foi vítima de terrorismo de estado sempre esteve sob um clima de medo. López assumiu seu papel e a mensagem foi que não permitiriam que avançássemos contra a impunidade. Aqui estamos, nos disseram. Ainda tempos poder”.

A mensagem foi clara. Nenhuma vítima sobrevivente ou testemunha do terrorismo de estado poderá viver sem o terror da ameaça de voltar a reviver a experiência. Os trabalhadores desempregados da repressão estatal dos obscuros anos da ditadura cívico-militar argentina seguiam presentes.

Logo após a desaparição de López, a tarefa de seus familiares e advogados foi tornar o fato visível. Ainda que, em um primeiro momento, o governo de Néstor Kirchner tenha desconhecido suas implicações, com o passar dos dias e a irrefutabilidade das evidências, o governo passou a fazer parte da causa.

“Sentimos todos essa dor. Esperamos resolver um fato que nos afeta e machuca profundamente. E quero dizer aqui, porque isso simboliza a unidade e a concepção de solidariedade de todo o povo argentino: Esperamos que, como Estado, possamos devolver o cidadão López a seu lar para que desapareçam definitivamente da Argentina esses fantasmas que tantos danos nos causaram”, assinalou Néstor Kirchner, no Colégio Militar da Nação, em dezembro de 2006.

Cinco anos se passaram desde seu desaparecimento e seus familiares e organizações de direitos humanos continuam à sua procura. O caso de Jorge López está classificado como “sequestro” e o governo de Buenos Aires ofereceu uma recompensa de um milhão e meio de pesos para quem apresente uma informação pertinente ao esclarecimento do caso, até o momento, sem êxito.

Em janeiro deste ano, dados fornecidos por um testemunho reservado deram conta de movimentos de terra no Parque Pereyra Iraola, na cidade de La Plata, e da suspeita da presença de restos humanos no lugar. As tarefas de escavação em busca do corpo de Julio López não tiveram resultados positivos. Rubén López – filho do pedreiro desaparecido – diz que é lamentável que depois de cinco anos ainda não se tenha notícias e sequer uma pista que possa dizer onde está seu pai. E muito menos de saber quem foram os responsáveis pelo seu desaparecimento.

No dia 18 de setembro, organizações sociais e de direitos humanos marcharam pelas ruas de Buenos Aires e de La Plata para reclamar – uma vez mais – a aparição com vida de Julio López e exigir do governo nacional o fim do “encobrimento do fato”. A presidenta da Associação de Ex-Presos Desaparecidos, Nilda Eloy, sustentou que o processo que investiga a desaparição de Jorge López está estagnado, o que significa que a impunidade está consagrada.

“O governo nacional é responsável pela impunidade e pelo encobrimento dos criminosos”, disse Myriam Bregman, advogada de López durante o julgamento de Miguel Etchecolatz, acrescentando que “todas as pistas e indícios que apontavam para a possível responsabilidade de policiais de Buenos Aires no desaparecimento foram deixados de lado”. “Mantêm-se em seus cargos a todos os efetivos das forças de segurança, de inteligência e das Forças Armadas que atuaram durante a ditadura”, disse Bregman.

O Prêmio Nobel da Paz e integrante da Comissão Provincial pela Memória, Adolfo Pérez Esquivel, sustentou que “não temos nenhuma certeza de onde está Jorge López”. Após cinco anos, a investigação de seu caso não saiu do zero. Segundo Esquivel, o desaparecimento de López “foi uma verdadeira extorsão praticada contra as vítimas sobreviventes, testemunhas e a sociedade em seu conjunto”. Não obstante, para ele, a sinistra mensagem inscrita na desaparição não atingiu seu objetivo. “Passaram-se cinco anos, mas não conseguiram matar a memória nem nos silenciar. A resistência continua”, concluiu.

No dia 27 de outubro, se completarão 35 anos da primeira desaparição de Jorge López. Seus familiares e amigos voltarão a pedir que ele apareça com vida.