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Resistência: samba paulista dialoga com o “progréssio”

Nos anos 1950 e 1960, os arranha-céus tomaram de assalto as ruas da capital paulista. Os trabalhadores — unidos por atividades sindicais, movimento negro e rodas de samba — reagiram criativamente, compondo letras que escancararam o braço de ferro entre a urbanização e a população mais pobre: a última levou a pior e foi expulsa das regiões centrais para a periferia.

Por Christiane Marcondes

samba paulista

O arquiteto, professor e urbanista Marcos Virgílio da Silva resgatou o fato histórico em uma tese de doutorado, ilustrada pelas letras desses sambas e os destinos dos seus compositores

A pesquisa mostra que, no começo dos 1950, as esquinas e becos paulistas eram musicais. Principalmente as esquinas no Brás, no chamado “Bixiga”, originalmente Bela Vista, e no centro. Não havia a sombra da indústria fonográfica para assanhar vaidades e os músicos de rua tocavam por puro deleite. Muita letra dessa produção popular, notadamente assinada por compositores negros e pobres, denunciava a repressão policial: a batucada foi proibida por lei na época. Marcos Virgílio conta os grupos negros iam para as ruas tocar e a polícia chegava, dispersando.

Mesmo assim, a turma do samba de raiz da ancestralidade afro, consagrou seus espaços. Por exemplo, o Largo da Banana, na Barra Funda. Os trabalhadores ferroviários encerravam jornada e iam batucar no local até que o viaduto do Pacaembu atropelou a alegria. Os sambistas se mudaram.

Um deles, Geraldo Filme, fez da repressão uma inspiração e lançou duas músicas com jeito de adeus, mas recado de resistência: O último sambista e Vou sambar noutro lugar. A letra da segunda diz em alto e bom som: “não tem mais lugar pro samba, vou embora da Barra Funda”.

Samba da Barra Funda – Geraldo Filme

Na baixa dos engraxates

Marcos diz que essa expulsão na Barra Funda é emblemática, porque o Largo da Banana era um local de referência do samba, mas a dispersão já vinha de antes. Quando foi aberta a avenida 9 de julho, no final dos anos 1930, uma multidão de negros musicais foi varrida das imediações do córrego da Saracura, próximo à Praça da Bandeira. Parte dos sambistas formou uma trincheira de enfrentamento e continuou no Bexiga, dando origem à escola de samba Vai-Vai.

Outra parte migrou para a zona lesta da cidade, fixando-se no Peruche, onde fundaram a Unidos do Peruche.

Avançando na história, chegamos à Praça da Sé, restaurada no quarto centenário de São Paulo, em 1954. Com a construção da catedral, os engraxates que encerravam expediente na cadência do samba, usando as ferramentas de trabalho como instrumentos, foram tocar ou calar em outras vizinhanças.

A lembrança do samba tocado em caixa de graxa ficou intocável na homenagem de Germano Mathias, que emprestou o toque dos engraxates a algumas criações suas. Muitos desses músicos se perderam no espaço e no tempo, mas suas músicas ficaram como registro do desaparecimento desses núcleos socioculturais.

“Eles são predominantemente negros e há alguns como o Adoniran e o grupo Demônios da Garoa, que têm ligação com os italianos do Bixiga, mas a associação mais forte é com a classe trabalhadora. O Jorge Costa, por exemplo,é alagoano e encontrou a sua turma em São Paulo”, explica Marcos.

Fronteiras da elite

Já o Paulo Vanzolini, segundo Marcos, é um caso à parte, porque integrava uma elite intelectual. É um exemplo de que o samba paulista transcendeu as camadas populares, ainda que nunca tenha avançado nas fronteiras burguresas: Vanzolini é que freqüentava a boemia ao lado dos trabalhadores, foi um dos grandes cronistas da cidade.

O samba Suicídio revela sua empatia com a má sorte dos negros, pobres e miseráveis, conta a saga de um coitado que decidiu se suicidar, em vão. Fez várias tentativas, em diferentes e clássicos pontos da cidade, mas acabou sobrevivendo. Com muito bom humor, o mesmo bom humor com que os trabalhadores enfrentaram despejos, a proibição da batucada e a urbanização selvagem de São Paulo. E enfrentaram, finalmente, o fim da era de ouro do samba paulista “de trabalhador”.

Samba do suicídio – Paulo Vanzolini

Uma brasa no caminho

No final dos anos 1960, Adoniran Barbosa compõe o samba Rua dos Gusmões , fazendo menção a um endereço próximo à Praça da República. Na letra, a mulher sugere ao marido que deixe o samba e vá fazer iê-iê-iê. Qualquer semelhança com a realidade sociocultural da época não é mera coincidência: o samba paulistano havia sido destronado pelo novo ritmo e o próprio Adoniran estava “fora do ar”. Ele se aposentou no rádio, passando de ator a cantor, e cerca de dois anos antes de encerrar carreira viveu o ostracismo, tinha emprego, mas nenhum espaço na grade de programação.

Adoniran faz nova reclamação em outro samba, no qual mostra simpatia pela moçada do iê-iê-iê, mas defende um espaço para a sua criação: “já fui uma brasa, se me soprarem, posso acender de novo”.
Na nova composição, mostra claramente que não queria concorrer, mas somar, e continuar produzindo sua música.

Já fui uma brasa – Adoniran Barbosa

Não adiantou espernear, o samba de Adoniran – que serviu de trilha sonora para a urbanização paulista – saiu da moda no final dos anos 1960. Ele bem que tentou continuar em cena, se inscreveu nos festivais de música, que estavam ganhando fama, e perdeu. Com ele, outros perderam a parada, caso de Germano Mathias —  que chegou a morar dois anos no Rio e acabou despejado de quarto de aluguel na Praça da Luz — e do Henricão, fundador da Vai Vai, que virou frentista de posto de gasolina e encarou miséria na velhice. Mas o samba de São Paulo não morreu, mudou de lugar!

O samba na avenida

A ideia para a pesquisa surgiu de um controvertido estereótipo, assim descrito no trabalho de Marcos Virgílio: “A cidade que assumiu no Brasil, ao longo do século XX, uma posição de inegável protagonismo político e econômico, não goza do mesmo prestígio no que diz respeito à sua cena musical popular – especialmente no que diz respeito ao samba”.

O arquiteto, professor e urbanista Marcos Virgílio da Silva resgatou o fato histórico em uma tese de mestrado, ilustrada pelas letras desses sambas e os “causos” dos seus compositores

Marcos, que nem sabe tocar instrumento, mas é admirador confesso do ritmo, foi em busca de argumentos que comprovassem a vocação paulista para o samba. E, assim, investigou o processo de urbanização da cidade de São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960, numa perspectiva “a partir de baixo” (from below), seguindo uma linha metodológica que remonta ao marxismo britânico.

As letras das músicas  ilustram a escalada do progresso, tratores devastando a fisionomia e personalidade da cidade. Essa urbanização desenfreada é registrada pelos músicos populares, que têm em comum a contemporaneidade e a origem social, muitos se consagraram como nomes emblemáticos na produção do samba paulistano da época.

A tese de Marcos dedicou especial atenção aos sambas de compositores e intérpretes como João Rubinato (Adoniran Barbosa), Paulo Vanzolini, Germano Mathias, Geraldo Filme, Noite Ilustrada, Jorge Costa, Osvaldinho da Cuíca e Demônios da Garoa.

Sobre a derrocada do samba popular no final dos anos 1960, Marcos a avalia por outro prisma: “Em 1968, houve o primeiro carnaval oficial de São Paulo. A prefeitura passou a garantir espaço, apoio financeiro e divulgação dessa festa popular. Eu defendo que o samba paulista de raiz popular e negra teve influência nessa decisão e defendo que foi uma conquista. Pela primeira vez, em São Paulo, o samba deixa de ser objeto de repressão e ganha a liberdade de expressão”, conclui.